Com escolas acessíveis, Fortaleza amplia inclusão de alunos com deficiência na rede pública
Isabel tem 11 anos e vai todo dia à Escola Municipal Herondina Lima Cavalcante, no bairro Vila Velha. Gosta de ver aulas de Português e História e, no recreio, de brincar de pega-pega com os amigos. Tanta energia gasta exige uma boa recuperação: “sábado e domingo eu tô de folga!”, desabafa. Dividindo a mesma sala e os mesmos professores, as únicas diferenças de Isabel para os colegas de turma são o Transtorno do Espectro Autista (TEA) e a baixa visão.
A menina é uma das quase 14 mil pessoas com deficiência, TEA, altas habilidades ou superdotação atendidas na Educação Especial da rede municipal de Fortaleza, cuja matrícula ocorre durante qualquer período do ano letivo.
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Desde 2008, quando foi criada a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI), o número de matrículas nessa modalidade cresceu 11 vezes na capital cearense.
Esta é a 3ª e última reportagem da série especial Sala de Futuros, que mostra como políticas públicas de educação em Fortaleza podem contribuir para efetivar direitos básicos e mudar a trajetória de vida de estudantes e suas famílias, reduzindo desigualdades e segregações por contextos de saúde ou renda.
O incremento nas matrículas desse tipo torna Fortaleza a 1ª cidade do Norte e Nordeste e a 3ª do Brasil nessa oferta – é superada apenas por São Paulo e Rio de Janeiro, que possuem mais de 20 mil alunos cada.
A ampliação da rede também permite à Prefeitura atender a 100% da demanda, comemora a coordenadora de Diversidade e Inclusão da Secretaria Municipal de Educação (SME), Mônica Costa. Todas as 620 unidades de ensino do município ofertam a modalidade.
“À medida que a credibilidade do trabalho é evidenciada por essa busca, é também uma resposta aos investimentos que são feitos para que essas crianças tenham suas demandas atendidas”, afirma, alinhada ao posicionamento da atual gestão municipal: "construir uma cidade mais inclusiva e acolhedora", tendo a educação como um dos principais pilares disso.
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Hoje, a rede municipal atende a pessoas com:
- Autismo: 8.869
- Deficiência Intelectual: 4.076
- Paralisia cerebral: 387
- Síndrome de Down: 243
- Deficiência auditiva: 116
- Outras deficiências: 119
Para acompanhar o crescimento da demanda, as escolas regulares abraçaram diversas melhorias. Os alunos contam com Atendimento Educacional Especializado (AEE) em 305 Salas de Recursos Multifuncionais (SRM) – um aumento de 70 unidades em relação a 2022, e de 177 em comparação a 2014, quando havia 129 salas do tipo.
Não adianta só matricular: temos que assegurar matrícula, permanência e sobretudo a aprendizagem de todos, indistintamente.
As SRM foram implementadas por resolução do Conselho Nacional de Educação (CNE) em 2009, priorizando o atendimento especializado das individualidades de pessoas com deficiência a partir de mobiliário, materiais didáticos e outros recursos pedagógicos próprios.
Segundo Mônica Costa, apenas 10 escolas ainda não contam com as salas especiais. “A meta é universalizar ainda esse ano”, ressalta. Para garantir o acompanhamento dos alunos nessas unidades, outras 7 instituições conveniadas à Prefeitura (veja lista no final da reportagem) prestam o atendimento diferenciado.
Validar a matrícula
Fortaleza permite a matrícula antecipada para estudantes da Educação Especial, meses antes dos demais. Desta forma, segundo a SME, a gestão municipal consegue identificar as necessidades específicas dos alunos, mapear as escolas mais próximas e fornecer suportes e recursos de acessibilidade física e pedagógica.
A Pasta frisa que a ausência do laudo ou relatório não inviabiliza a matrícula; o documento pode ser apresentado posteriormente e elaborado por uma unidade educacional que possua AEE.
Soraya Eli, coordenadora do Curso de Especialização em Educação Inclusiva da Universidade Estadual do Ceará (Uece), avalia a medida como positiva, pois permite o dimensionamento de turmas e maior preparo dos professores para atuar em sala de aula.
“Agora, com antecedência, ele sabe quantos alunos com deficiência vai ter para pesquisar como trabalhar com esses alunos. Também tem oportunidade de chamar as famílias para uma entrevista prévia, porque quem sabe melhor como funciona esse aluno é a mãe ou o pai”, explica.
É importante que a escola tenha vínculo com a família para saber do que a criança gosta e o que a estressa. Tudo isso é fundamental para ter um bom andamento durante o período escolar.
O avanço também é elogiado por Emerson Damasceno, presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa com Autismo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) Nacional e presidente da Comissão de Defesa dos Direitos da Pessoa com Deficiência da OAB-CE.
Porém, ele lembra que a educação inclusiva e a participação em sociedade são direitos constitucionais de alunos e alunas com deficiência. “Não existe de fato a inclusão sem convivência, por isso a educação inclusiva é fundamental para uma sociedade que quer ser justa e se entende diversa”, explica.
A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (nº 13.146/2015) estabelece como crime recusar, cobrar adicionais, suspender, adiar ou cancelar matrícula de aluno com deficiência, punível com reclusão de 2 a 5 anos e multa.
Cuidar do entorno
Facilitar o acesso físico às escolas é outro passo importante. Emerson Damasceno defende a retirada das barreiras arquitetônicas, para que um desenho universal permita a livre circulação de alunos com deficiência nos espaços de ensino; e das urbanísticas, na parte externa das escolas, com a padronização de calçadas e a instalação de pontos de apoio.
“Com certeza tem bairros ainda não asfaltados. Muitas vezes, a família não tem como levar a criança numa cadeira de rodas”, complementa a professora Soraya Eli. “A escola, de forma geral, tem que estar toda adaptada com portas mais largas, rampas, piso tátil para pessoas cegas e intérpretes para surdos”.
A professora Zilsa Santiago, doutora em Educação e docente do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Ceará (UFC), alerta que “não somente a sala de AEE dá conta do atendimento, a acessibilidade deve estar por toda a escola”.
Coordenadora de um grupo de trabalho que vistoriou 30 escolas municipais em 2017 e identificou reformas e ajustes necessários, Zilsa pontua que as instituições devem seguir um “checklist” para se adequarem, que inclui desde rampas até altura correta de mobiliários.
Pensando nisso, a Prefeitura de Fortaleza deve transformar o entorno de 24 escolas, até o fim de 2024, por meio do Programa Caminhos da Escola, criando espaços mais lúdicos com segurança viária e acessibilidade universal. Com a nova fase, a Capital terá 29 unidades modificadas pelo programa, iniciado em 2019.
A iniciativa vai instalar nova tecnologia semafórica para facilitar a travessia de pessoas com deficiência visual ou baixa visão, com botoeiras de sinalização sonora e mensagens de voz. O equipamento também tem placa com texto em braille e alerta vibratório, que melhora a compreensão da informação pelo tato.
Das unidades municipais já contam com algum tipo de acessibilidade, segundo a SME. Nesta gestão, já foram entregues 39 novas unidades e 23 requalificações com os recursos.
Em setembro deste ano, por meio da Lei nº 11.390/2023, a cidade também instituiu o Plano de Acessibilidade e Mobilidade Urbana Sustentável. Ele valoriza modos de transporte mais sustentáveis, como a pé, bicicleta, ônibus e metrô, a fim de reduzir desigualdades sociais no acesso às atividades diárias.
Uma das diretrizes norteadoras do Plano é a “priorização da mobilidade para pessoas com deficiência ou dificuldade de locomoção de forma acessível, protegida e segura”.
A professora Zilsa complementa, contudo, que uma educação realmente inclusiva deve ir além. “São muitos detalhes que denotam o cuidado e são decisivos para o acolhimento de pessoas com deficiência ou mobilidade reduzida. São tantos aspectos físicos, como sensoriais, além das atitudes”, finaliza a professora.
Universalizar o ensino ideal
Assegurar a acessibilidade física, porém, é só o primeiro passo dos muitos passos necessários rumo ao acesso amplo e pleno de crianças e adolescentes com deficiência à educação. No contexto de vida deles, outro ponto também é crucial: a rapidez com que se garante esses direitos.
Nos últimos anos, a rede pública municipal “evoluiu muito” no reconhecimento dessa obrigação, como destaca Mariana Lobo, supervisora do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas da Defensoria Pública do Estado – mas precisa aprimorar a celeridade das garantias.
Apesar dos avanços, ainda temos algumas dificuldades no lapso temporal entre a chegada da demanda e a garantia. Ainda existe uma demora de alguns meses. Seja na rede pública, seja na privada, existem obrigações de promover e assegurar esse acesso integral.
Além de acesso a plano pedagógico individual, a profissional de apoio exclusivo e a profissional de Atendimento Educacional Especializado (AEE), a busca por questões periféricas – como transporte escolar adaptado – também chega ao Núcleo, como pontua a defensora.
"Existem outras obrigações acessórias, que decorrem da obrigatoriedade do acesso à educação. As questões periféricas também fazem parte, recebemos algumas demandas disso", relata a defensora.
Estimular o desenvolvimento
Com a rede organizada, os ganhos são claros. A pedagoga Katiane Florêncio, 29, já percebe o progresso dos filhos Harley Kevin, 6, estudante da Escola José Moreira Leitão, no bairro Parque Santa Maria, e Hartur Kalebe, 10, aluno da Escola Manoelito Guimarães Domingues, no Ancuri. Ambos são autistas com grau de suporte leve e usuários da rede municipal de ensino.
“É um trabalho conjunto de família, terapia, neuropediatra e escola. Só funciona se todos estiverem dançando a mesma música”, entende Katiane. Segundo ela, o caçula Harley a surpreendeu: não apenas fica sentado na sala como aprendeu a ler e a escrever - apesar de, às vezes, não querer ficar ou ir para a escola. “Tem que ser por livre e espontânea vontade”, diz.
“Gosto de brincar com os amigos, ir pro recreio, de ver coelhos (das historinhas), de desenhar e fazer as continhas de matemática”, garante o próprio menino, que já pensou em ser médico, bombeiro ou policial.
Embora tenha recebido um diagnóstico tardio, o irmão Hartur também se adaptou bem à rotina escolar e se sente bem acolhido. Aluno assíduo do 5º ano, apaixonado por Matemática e Português, ele quer a presença mesmo quando está doente.
É preciso ter um preparo e a eliminação das barreiras, inclusive pedagógicas e programáticas, para que esses alunos não sejam apenas um número, mas desenvolvam suas capacidades de acordo com suas características.
“A escola que ele está hoje foi uma segunda mãe porque fez ele evoluir bastante. Ele tinha muita fuga de sala, dificuldade na leitura e aprendizagem, mas mesmo com todas as dificuldades melhorou o nível”, conta Katiane.
Outro aluno da rede é Arthur Gomes, 9, que usa um implante auditivo desde os 4. Ele passou por escolas particulares, mas só se encontrou mesmo na Escola de Educação Bilíngue Francisco Suderland Bastos Mota, no bairro Dendê, criada em 2015. Hoje, a unidade recebe 78 estudantes para o ensino de Libras e Língua Portuguesa.
Segundo a mãe de Arthur, a social media Vladia Gomes, 29, ele entrou já sabendo ler e escrever, mas só oralizava palavras desconexas. “Quando começaram as aulas, parece que abriu uma janela. Ele verbaliza bem, com alguma dificuldade, mas consegue compreender e responder tudo, inclusive em libras. Crescendo, só vai melhorar”, acredita.
Vladia explica que ela e o marido também aprendem com o menino, aluno-destaque em frequência e aprendizagem e futuro professor de Libras. “Ele ama e se sente pertencente porque a escola bilíngue tem crianças surdas e outras que conseguem verbalizar, então isso estimula a fala. Na particular, ele era o único surdo. Agora, se sente muito igual”, celebra.
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De acordo com a professora Soraya Eli, da Uece, crianças com deficiência precisam interagir com outras sem deficiência para aprender e imitar novos comportamentos, ou correm o risco de não evoluir. “Se ela está numa escola com outros pares, tem outros exemplos de aprendizagem. Esse é o ganho da inclusão: conviver com a sociedade”, garante.
Esse processo precisa ser facilitado pelos professores, que devem avaliar o nível do aluno do AEE e pensar em estratégias para desenvolvê-lo. Pais e especialistas consultados pela reportagem defendem, de forma unânime, a ampliação do quadro desses profissionais para aprimorar a atenção à modalidade de ensino.
Fortalecer a rede
Hoje, 353 professores municipais estão lotados especificamente no AEE. Conforme a coordenadora de Inclusão da SME, Mônica Costa, eles recebem formação continuada mensal com temáticas da educação inclusiva.
O número de profissionais para esse público também aumentou em quase 38%, em apenas um ano. Em 2022, a rede municipal tinha 456 profissionais de apoio escolar e mais 569 assistentes de inclusão escolar; neste ano, são 644 profissionais de apoio e 766 assistentes.
Os profissionais de apoio, chamados informalmente de “cuidadores”, dão suporte àquelas crianças que têm maior dependência para se higienizar, se alimentar e se locomover. Já os assistentes de inclusão começaram a atuar no ano passado, como resposta à demanda crescente da rede.
“Tem salas com cinco estudantes com deficiência, e por mais que não demandem tanto cuidado, precisam de alguém que dê suporte. O assistente fica ali para o caso de uma crise, ou de um acolhimento, além de ajudar o professor nas atividades. É um profissional para fortalecer as ações inclusivas dentro da rede”, diferencia Mônica.
“A Secretaria conta ainda com atendimento multidisciplinar, com fonoaudiólogos, psicólogos e terapeutas ocupacionais”, completa a SME.
Para o advogado Emerson Damasceno, todas essas adaptações permitirão uma evolução da própria sociedade fortalezense em uma ou duas décadas. “Ela vai ser muito mais simpática, generosa e acolhedora do que a de hoje. Quando essa convivência é ampliada desde o início, não vamos cometer tantas atitudes capacitistas como infelizmente a gente ainda percebe”.
Instituições conveniadas com a Prefeitura para a oferta do Atendimento Educacional Especializado:
- Associação dos Cegos do Estado do Ceará;
- Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais;
- Associação Pestalozzi do Ceará;
- Recanto Psicopedagógico;
- Centro de Integração Psicossocial do Ceará;
- Instituto Filippo Smaldone;
- Instituto Moreira de Sousa.