Tal qual em "Soul", o jazz faz parte do reino dos desenhos animados
Gênero musical é terreno fértil à criatividade dos artistas da animação
"Soul" (ler crítica aqui) é a ponta de um generoso histórico no tocante a associações produtivas entre o jazz e a imagem em movimento. Sob a influência desta sonoridade, os artistas da área foram ágeis em explorar as possibilidades rítmicas e harmônicas. Como depõe David Meeker, em “Jazz on the Screen”, um marco pode ser situado na contribuição de Max e Dave Fleischer. Os irmãos, poloneses, perceberam o quanto a popularidade e inspiração dos músicos era rentável.
Segundo Meeker, os criadores da icônica Betty Boop produziram alguns de seus melhores trabalhos em torno de figuras como Cab Calloway (1907-1994), Louis Armstrong (1901-1971), Mills Bros. (John Jr., Herbert, Harry e Donald Mills), Boswell Sisters (trio formado por Martha, Connee e Helvetia "Vet" Boswell) e Don Redman (1900-1964).
Desta safra com Calloway e Betty Boop (inclua também Koko e Bimbo) estão "Minnie the Moocher" (1932), "The Old Man of the Mountain" (1933) e "Snow White" (1933). Nos dois primeiros, Calloway interage do ínicio ao fim. Os curtas começam com aparição "live-action" do astro e sua orquestra.
Em outras cenas ele surge cantando os temas das animações e assume as vozes dos personagens, sendo uma coruja e até o velho do título. Trabalho de primeira desse verdadeiro showman.
A técnica de unir imagens reais e desenhos acompanham a produção do Estúdios Fleischer. As Boswell participam de "Sleepy Time Down South" (1932). Considerados os reis da harmonia, os irmãos Mills trabalharam em "I Ain't Got Nobody" (1932), "Dinah" (1933), "When Yuba Plays the Rumba on the Tuba" (1933). Já Don Redman musicou "I Heard" (1933).
Armstrong e seu conjunto está em "I'll Be Glad When You're Dead You Rascal You" (1932). Para o cinéfilo Danny Reid, colaborador do ‘blog’ Pre-Code.com, os desenhos animados de Betty Boop que os Fleischer lançaram podem ser consideradas "estranhas raridades".
O projeto é dedicado a assistir e revisar todos os filmes da "era pré-código" de Hollywood. Trata-se do breve período em que o Código Hays de censura não era aplicado (algo entre 1930 e 1934).
Reid debate que os diretores Fleischer frequentemente exibiam cantores afro-americanos e artistas que raramente recebiam as mesmas oportunidades de tratamento que os colegas brancos. Ele destaca a respeito da animação com Louis Armstrong: "Como você pode imaginar na Hollywood da década de 1930, este não é o retrato mais racialmente sensível de um homem tribal africano".
Mudanças na criatividade
No que lhe concerne, o período também registrou atenção dos estúdios Disney, Walter Lantz, Warner Bros., Universal e MGM. David Meeker pontua que uma fase posterior começou quando os animadores produziram curtas que caricaturizavam celebridades do jazz como Paul Whiteman, Louis Armstrong, Fats Waller, The Mills Brothers e Benny Goodman.
Walter Lantz (1899-1994), o criador do Pica-Pau, entregou um trabalho memorável com "O Tocador de Trombone" (1945). Trata-se de uma paródia com o "Flautista de Hamelin", também conhecido como "flautista mágico", personagem fictício de um conto dos irmãos Grimm. Presta atenção na trama.
Uma série de ratos infestam uma pequena cidade. O prefeito tenta tirar a responsabilidade da jogada e não suporta mais ouvir telefonemas dos moradores revoltados. A situação é crítica. Em certo ponto ele responde uma ligação: "Chame o corpo de bombeiros, o departamento de saúde, chame qualquer um, mas pare de ligar para mim. Ratos, a cidade está cheia de ratos. Mas o que vocês querem que eu faça?".
É quando um tocador (caricatura do comediante e pianista Jimmy Durante), não de flauta, mas de trombone, oferece seus serviços para dar um jeito naquele caos. Ele toca o instrumento e consegue aprisionar todos os ratinhos. Na hora de receber o pagamento, o músico percebe que foi passado para trás. Recebeu um saco cheio de amendoins!
A vingança é imediata. O tocador se fantasia de "Hank Soonatra" (tiração com Frank Sinatra) e cantando, consegue retirar toda a população do lugar, deixando o incompetente prefeito sozinho, com os sarcásticos ratos.
Jazz entre a criançada
Se existe uma produção animada capaz de apresentar o jazz para inúmeras gerações foi a turma do simpático Charlie Brown, cria de Charles M. Schulz (1922-2000). A maioria dos episódios trouxe composições assinadas pelo pianista Vince Guaraldi (1928-1976). Coisa fina.
As TVs do Brasil também contaram com as trilhas de abertura de "Manda Chuva", "Os Flintstones" e "A Pantera Cor de Rosa". Essa última, um sucesso imediato concebido às telonas por Henry Mancini (1924-1994).
Os Simpsons se destacam nessa lista. Em 1990, foi lançado o disco “The Simpsons Sing The Blues”. Um dos episódios mais memoráveis da franquia envolve uma desventura de Lisa Simpson, ela uma apaixonada por jazz e musicista de sax.
Em "A Lisa Tristonha" (da primeira temporada), conhecemos o saxofonista Murphy Gengivas Sangrentas, dublado pelo ator e cantor Ron Taylor (1952-2002). Melancólica e para baixo, Lisa não consegue identificar a origem de tanta tristeza. Tudo parece mudar quando a menina encontra o experiente músico e conta seus “dilemas”.
Depois de um belo dueto entre os dois, Gengiva diz: "Sabia que você toca muito direitinho para quem não tem problemas de verdade?". Liza prontamente responde: "É, mas eu não me sinto nada melhor". O jazzista fictício explica: "O blues não é para se sentir melhor, é para fazer outras pessoas se sentirem pior".
Da junção entre desenhos animados e o jazz, David Meeker extrai observação pontual: "A versatilidade e flexibilidade dos músicos de jazz, a qualidade abstrata, a forma livre de suas ideias e sua habilidade para improvisação os tornam eminentemente qualificados para trabalhar criativamente com diretores de animação. A arte do músico de jazz não é, como alguns diriam, tocar música 'jazz', mas sim criar linhas musicais imaginativas e livres - quanto mais próximo do conceito de arte do animador se poderia chegar?".
Longas animados
Oscar de "Melhor Filme Estrangeiro" por "Sedução" (1992), Fernando Trueba assina o elogiado longa animado "Chico & Rita" (2010). Trata-se de adaptação da HQ homônima roteirizada por Trueba e desenhada por Javier Mariscal. No final dos anos 1940, a música e o romance unem um pianista e uma cantora (o casal do título).
Rumba, bolero e, claro, muito jazz, embala esta jornada de paixão. A trilha é do compositor cubano Bebo Valdés (1918-2003) e reverbera o som de lendas como Thelonious Monk, Charlie Parker, Cole Porter e Dizzy Gillespie.
Em 2009, a Disney ambientou o legado das "princesas" da casa na efervescente cultura sonora de Nova Orleans com “A Princesa e o Sapo”. O resultado, no entanto, ficou aquém das expectativas.
No artigo “Era Uma Vez...: O Negro No Imaginário Encantado", os pesquisadores Amailton Magno Azevedo e Sheila Alice Gomes da Silva analisam as animações “Kirikú e a Feiticeira” e “A Princesa e o Sapo”, a partir da Lei: 10.639/03, das lutas históricas dos Movimentos Negros. A dupla busca identificar releituras nas representações das culturas das diásporas, sociedades africanas e do continente africano.
Da produção imaginada pela casa do Mickey Mouse, os autores constatam que alguns trechos da obra identificam debates relevantes, como a segregação urbano-espacial do negro em Nova Orleans e das áfricas da diáspora. No entanto, a animação “não traz representativamente uma releitura das narrativas hegemônicas e/ou eurocêntricas, e o discurso do colonizador perpassa muitas de suas cenas".
O filme, na visão dos pesquisadores, oferta um olhar míope e reafirma vozes dominadoras de uma "historiografia que silencia, classifica e exclui o que caracteriza diferente". Eles ainda acrescentam: "apesar da promessa que envolve sua chamada de lançamento: ‘A primeira princesa negra da Disney’ a animação não dá conta de todos os significados que esta máxima traz consigo”.