Saiba por que Claudia Andujar é uma das principais fotógrafas do mundo em exposição gratuita no CE
Pinacoteca do Ceará traz multiplicidade da obra da artista naturalizada brasileira em 200 fotografias
Ao adentrar a exposição "Claudia Andujar. Minha vida em dois mundos", em cartaz na Pinacoteca do Ceará, o título já avisa: o que o público verá a partir das experiências da fotógrafa de 93 anos radicada no Brasil vai além de definições cristalizadas ou limitadas.
Dos registros de indígenas Yanomami feitos em diferentes tempos aos retratos de migrantes nordestinos retornando às cidades de origem em 1969, será possível acessar um recorte do olhar da artista em cerca de 200 obras expostas gratuitamente no equipamento cearense até dezembro deste ano.
"Se tem um erro aqui para mim, é no título. Eu não acho que sejam apenas dois mundos", reconhece o curador Eduardo Brandão, em visita guiada da reportagem à Pinacoteca. “Só percebi montando. Aqui tem um mundo, lá tem outro, lá tem outro”, diz o paulistano, apontando para diferentes obras expostas. “Parece que essa mulher permeia todos eles”, atesta.
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Da Europa aos EUA, e então ao Brasil
"Aqui tem uma exposição de uma mulher que tem 93 anos, tem várias décadas de abordagem, de fotografia, de humanidade, de resistência, de batalha por um lugar de humanidade", descreve o curador. Esse panorama é fruto de uma trajetória de vida que remonta à Europa dos anos 1930 e 1940.
Nascida sob o nome de Claudine Haas na Suíça e criada em uma antiga cidade húngara hoje pertencente à Romênia, a fotógrafa é de ascendência judaica e teve parte da família paterna morta durante a Segunda Guerra Mundial.
Com a mãe, católica, conseguiu ir para a Suíça e, depois, para os Estados Unidos. Lá, inicia na arte e se casa com um refugiado espanhol, assumindo então a alcunha de Claudia Andujar. Nos anos 1950, já separada e sem falar ou compreender a língua portuguesa, vem ao Brasil, onde a mãe já vivia.
“Claudia estuda arte em Nova Iorque e depois vem ao Brasil, pinta e dá aula de inglês para viver. Ganha uma máquina e começa a fotografar jornalisticamente, mas você vê que tem um conceito”, explica Eduardo.
Fotografia como novo vocabulário
Os “mundos” de Claudia não são contraditórios ou apartados, mas sim pautados em ambivalências e concomitâncias. É possível observar essa multiplicidade em fotos como as que ela fez, ainda nos anos 1960 e 1970, com finalidade jornalística para revistas como a brasileira “Realidade”.
Entre os registros da época, está o ensaio “Famílias Brasileiras”, no qual Claudia passou meses vivendo com diferentes núcleos familiares de diferentes partes do País. “Eu falei com um senhor baiano que era criança quando ela ficou três meses fotografando a família dele. ‘Ah, a gente via ela nadando e fotografando o tempo todo, mas falando, nunca’”, partilha o curador.
“Pela falta do oral dela e de ela não estar ajustada com a fotografia histórica do modernismo, ela tenta criar um novo vocabulário — talvez por ser alguém que não está entendendo muito o que está sendo falado e que não vai se comunicar e ser entendida”, arrisca Eduardo.
Na hipótese do curador, que acompanhou Claudia em diferentes exposições e viagens, o “lugar de onde ela fotografa” é o da “invisibilidade”, o “de não ser notada” — possíveis frutos das experiências de infância.
“A invisibilidade cai bem na vida da Claudia. Já viajei algumas vezes com ela e é uma prática: quando a gente está em um lugar movimentado que ela gosta, ela sempre arruma cadeira e a gente senta e fica horas sentado, vendo, sem falar nada, nem com máquina na mão. Virando paisagem, se misturando com o outro até pela inércia”
O processo demorado e investido na experiência é marca da artista, seja quando foi morar com os Yanomami nos anos 1970 — e, nessa convivência, tornou-se ferrenha ativista pelos direitos deles, sendo agente importante para a homologação da Terra Indígena Yanomami —, seja na viagem de sete dias que fez sozinha de São Paulo a Bahia no mesmo trem em que migrantes nordestinos estavam sendo enviados de volta às cidades de origem.
"Ao mesmo tempo"
É possível perceber, como ensina o texto da exposição, que o experimentalismo na linguagem, já marca da obra dela, foi “instigado e ampliado” pela convivência que teve com os Yanomami. Para Eduardo Brandão, a realidade e a fabulação ocorrem de forma conjunta nas fotografias de Claudia.
“O fazer jornalístico e o experimentalismo vão juntos. Nos anos 1960, (era) o jornalismo experimental, ensaístico. Depois, nos anos 70, eu diria que é mais uma documentação da vida dos Yanomami. É difícil separar documento, jornalismo e experimentalismo nessas fotos. Na Cláudia, tudo vai acontecendo ao mesmo tempo”, reforça.
A série “Marcados” (1981-1983) evidencia esse “ao mesmo tempo” citado pelo curador. As fotos que a compõem são registros feitos pela fotógrafa durante expedições de saúde que ofereciam vacinação e outros serviços aos Yanomami, como forma de indicar quais indígenas já haviam sido vacinados anteriormente.
Produzidas como forma de documentação e organização, as fotografias saltaram dos registros médicos para as paredes de instituições artísticas em um gesto que reflete sobre a rotulação social. “O processo artístico é tudo junto. A obra está viva, começa como documentação e vira outra coisa por ansiedade nossa em dar nome às coisas. A questão não é da artista ou da obra, é mais nossa, em categorizar”, elabora o curador.
Experimentação na técnica
Entre o conjunto de cerca de 200 fotografias em cartaz, Eduardo explica que há diferentes técnicas utilizadas. “Aqui tem essa história da foto analógica e da digital, tem essa camada também técnica”, aponta.
“Claudia, é claro, lida com a diferença delas, mas você vê que não há preferência por uma. Ela é uma fotógrafa animada com o que está vindo”, afirma o curador, citando inclusive o uso “errôneo” que a artista fez, em diferentes momentos, de filmes infravermelhos.
“Ela usa como experimento”, explica Eduardo, que aprofunda: “Ela domina o erro. O que a gente chama de 'erro' na fotografia para ela é vocabulário”.
“Experimentar” é verbo norteador na obra da fotógrafa, que constantemente revisitou o próprio acervo. “Ela vai e volta. Fotografa e depois refotografa. Trabalha e retrabalha as imagens”, resume Eduardo.
A série “Sonhos Yanomami” (2002), por exemplo, traz reelaborações feitas por Claudia de diferentes registros feitos por ela nas décadas de 1970 e 1980. A técnica das imagens, como explica Thaís Rivitti — pesquisadora da exposição —, já foi descrita pela própria artista como “fusão”.
“Esse procedimento da fusão, essa técnica, tem um significado muito amalgamado com a própria cosmovisão Yanomami. A relação com a floresta é de outra ordem. quando junta a casca de árvore com o corpo, existe essa permeabilidade, intercambialidade”, reflete.
“O bonito é quando essa técnica se junta para dialogar com essa cultura, com essa cosmovisão. Essa fusão de imagem não é um efeito por si só, é também uma espécie de ponto de chegada desses dois mundos, o Yanomami e o mais fortemente impregnado por essa colonização europeia da metrópole”, avança a pesquisadora.
Em diálogo, o curador reforça: “Não importa a técnica, importa onde ela chegou, que foi na intenção de nos levar para a imaginação do outro”.
Claudia Andujar. Minha vida em dois mundos
- Quando: visitação de quinta a sábado, de 12 às 20 horas, e domingo, de 9 às 17 horas
- Entrada gratuita.
- Mais informações: no site da Pinacoteca e no Instagram @pinacotecadoceara