Único registro de filme dos anos 1940 sobre Dragão do Mar é disponibilizado on-line pela Cinemateca
"Jangada", longa inacabado que contaria a história do líder jangadeiro cearense, teve cópias incendiadas em 1949
Um filme dos anos 1940 livremente inspirado no líder jangadeiro cearense Dragão do Mar, com diálogos assinados pela escritora Rachel de Queiroz e que destacaria a história do Ceará de maneira inédita foi visto, à época, como “a grande esperança do cinema brasileiro”.
Após dois “longos” anos de trabalho, às vésperas de ser finalizado, o longa de Raul Roulien teve a maior parte das cópias queimadas em um incêndio ocorrido nos estúdios da Pan-Filme do Brasil, em 1949. Mais de 70 anos depois, o pouco que restou da obra foi redescoberto, recuperado e digitalizado pela Cinemateca Brasileira, podendo ser acessado on-line.
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Projeto Nitratos
Os fragmentos remanescentes de “Jangada”, que somam pouco mais de 12 minutos, fazem parte da coleção de cinema brasileiro mais antiga da Cinemateca, com “valor artístico e histórico inestimável”, como descreve Gabriela Queiroz, diretora técnica da instituição.
Este acervo reúne obras produzidas da década de 1910 à de 1950, entre ficções, documentários, cinejornais, publicidades e filmes amadores em diferentes formatos. O projeto que possibilitou a recuperação e digitalização da coleção foi batizado de Nitratos, em alusão ao material das películas, que ao se degradar pode entrar em autocombustão.
1785obras da coleção foram catalogadas no projeto Nitratos
“Em 2021, quando a Sociedade Amigos da Cinemateca iniciou um projeto emergencial, após 16 meses de fechamento total da instituição, uma das principais preocupações era retomar as análises e os cuidados com essa coleção”, contextualiza Gabriela.
A partir de projeto inscrito na Lei Rouanet, a instituição conseguiu patrocínio do Instituto Cultural Vale e da Shell para “promover as análises dos materiais, a catalogação das obras e a duplicação dos materiais únicos”.
300títulos foram digitalizados no escopo do projeto
O trabalho da equipe de mais de 30 pesquisadores e técnicos de preservação e documentação contratados incluiu a identificação e contextualização das obras, além dos processos de laboratório que possibilitaram a digitalização de alguns dos filmes.
Conforme o site do projeto Nitratos, “Jangada” se inspirava “livremente” na história de Francisco José do Nascimento, o Dragão do Mar (1839-1914). “O filme é ambientado entre os jangadeiros, nas praias e dunas de Fortaleza do final do século XIX e narra a luta travada contra o sistema escravista”, diz a sinopse.
A produção é creditada como cearense e carioca, tendo Raul Roulien (1904-2000) na direção. Gabriela contextualiza que o cineasta “foi um importante ator, tendo feito carreira em Hollywood”.
“Jangada”, Nordeste e centralização geográfica
As aspas e informações destacadas no início deste texto vêm de diferentes registros da imprensa na época do incêndio.
As matérias lamentavam a perda de “um filme que pudesse levar ao estrangeiro todo o esplendor poético de nossa paisagem, toda a vivacidade e o sentido de luta de nosso povo”, como define a revista A Cena Muda de 4/10/1949.
Para o jornal Correio da Manhã, na edição de 18/9/1949, o longa traria destaque ao “nordeste, com sua extraordinária riqueza plástica” e ao “homem nordestino, talvez o mais brasileiro” (sic), ambos “praticamente virgens no cinema nacional”.
Os dois textos ressaltam repetidamente uma espécie de Nordeste romantizado, mítico e heroico. A possibilidade da região despontar no cinema nacional à época em uma obra do tipo contrasta com dados levantados pelo Projeto Nitratos em relação à centralização de obras no Brasil.
- 75% do Sudeste
- 10% do Sul
- 9% do Nordeste
- 3% do Centro-Oeste
- 3% do Norte
Dos mais de 1700 filmes da iniciativa, 75% são do Sudeste. Dos 25% restantes, 9% são de obras do Nordeste, que ocupa a terceira colocação entre as cinco regiões. Os números, Gabriela ressalta, “revelam algo que é sabido na história do país e de seu audiovisual”: a concentração de produção, exibição e preservação no eixo Rio-São Paulo.
Paralelos históricos
De acordo com o Correio da Manhã, a produção “tinha prontas as principais cenas, filmadas no Ceará”, ainda no começo de 1948. No entanto, a perda das películas foi, nas palavras de A Cena Muda, um “golpe cruel na carreira amarga” do diretor.
No texto da revista, há uma demanda forte para que o governo voltasse os olhos “para um dos mais sérios problemas do país: o cinema brasileiro”.
“Ajudá-lo, elevá-lo, firmá-lo definitivamente no conceito do nosso povo e do mundo. O cinema é uma arte, uma indústria, cuja grandeza e fôrça bem poucos conhecem. Roulien, pelo seu espírito de luta, pelas suas intenções sinceras, pelo seu esfôrço sobre-humano, merece concluir sua ‘Jangada’. E o Brasil, mais do que ninguém, necessita dessa ‘Jangada’”
As intempéries sofridas por “Jangada” há mais de 70 anos ecoam questões históricas e ainda atuais da preservação audiovisual do Brasil — afinal, como lembra Gabriela, a própria Cinemateca sofreu quatro incêndios relacionados à coleção de nitratos, em 1957, 1969, 1982 e 2016.
“‘Jangada’ é um dos exemplos de filmes que sobreviveram parcialmente, em função de eventos diversos e, claro, da ausência de ações e políticas de preservação na história do nosso audiovisual”, destaca Gabriela.
Recentemente, a própria Cinemateca Brasileira passou por “crise sem precedentes”, como define a diretora técnica, que incluiu fechamento por quase dois anos, falta de cuidado com o acervo, enchente e incêndio.
“A consciência sobre a necessidade de preservação foi muito tardia. Mesmo se pegarmos a história da Cinemateca Brasileira, maior instituição de preservação audiovisual do país, sua trajetória é marcada por tragédias e pela precariedade material, lutando sempre contra a falta de recursos e apoio para execução de seus trabalhos”, contextualiza.
“O que precisamos são políticas amplas e eficientes em todo o território nacional que nos permita salvaguardar a diversidade do nosso cinema”, segue a especialista. O projeto Nitratos veio nessa intenção e legou infraestrutura necessária à instituição.
Olhares para Chico da Matilde
Além de “Jangada”, outras duas obras da coleção são creditadas ao Ceará: o curta “Rio Grande do Norte, Ceará e Maranhão: viagem do sr. Ministro da Agricultura ao Norte do país” (1940) e o “Cine Jornal Brasileiro. V.2, N.088” (1941).
“Os dois filmes foram produzidos por órgãos oficiais da época, portanto possuem função determinada de promoção e divulgação de assuntos de interesse do Estado/Governo. Hoje em dia, precisam ser encarados a partir de uma perspectiva crítica, mas sem dúvida, são registros documentais únicos da realidade brasileira”, pondera a diretora técnica.
A visão com perspectiva crítica também é válida para os próprios registros do longa “Jangada”, que traz imagens que repetem determinado imaginário dos corpos negros escravizados.
É o que ressalta David Felício, historiador e técnico de preservação e digitalização do Museu da Imagem do Som do Ceará. No escopo do equipamento, o cearense se envolveu em uma iniciativa que buscou “rever” os parcos registros fotográficos históricos de Dragão do Mar.
Cópias de uma fotografia do último quarto do século XIX que mostravam o líder jangadeiro compunham os acervos do Museu do Ceará e do Acervo Nirez. No MIS, foram digitalizadas e ampliadas para ressaltar detalhes da imagem pouco registrada de Dragão do Mar. O processo e as reflexões da pesquisa aparecem no curta “Revendo Chico da Matilde” (2024), com direção de David e Natália Magalhães.
Os registros foram feitos em um encontro da Sociedade Cearense Libertadora, movimento abolicionista do Ceará — “um evento completamente embranquecido”, aponta o historiador, não somente pelas vestes do jangadeiro, mas pela ausência de outras figuras históricas negras dessa luta, como José Napoleão e Tia Simoa
“A partir dessa imagem a gente consegue ter uma dimensão do processo da abolição (no Ceará), principalmente a partir do rosto do Dragão do Mar, na perspectiva do que é poder vê-lo em detalhes e imaginar como foi esse dia, porque existem ausências de documentos audiovisuais desse processo”, aponta.
“As duas cópias da fotografia possibilitam entender o jogo de representações e reforçam o papel das instituições em preservar a memória, para que a gente possa revisitar esses acontecimentos”, avança.
O técnico defende que a salvaguarda do patrimônio audiovisual vai além dos filmes em si, ressaltando por exemplo a preservação do roteiro de “Jangada”, ao qual teve acesso em visita à Cinemateca.
“O filme reforça uma imagem do negro, da escravidão. No roteiro, a gente consegue entender um pouco melhor essa proposta. O pensamento romantizador da abolição no Ceará nele é possível de se acessar graças ao roteiro, o que demonstra a complexidade do papel dos preservadores audiovisuais”
David aponta a presença da escritora Rachel de Queiroz (1910-2003) na assinatura do roteiro como elemento “significativo do momento político da época”. “É sem tamanho a possibilidade de rever e se aprofundar em materiais e fontes históricas que revelam esse complexo histórico da nossa identidade e da nossa condição de reflexão do processo da abolição atualmente”, sustenta.
Cinemateca e Ceará
Para além da presença cearense nos acervos da Cinemateca Brasileira, a instituição tem buscado reforçar as trocas e intercâmbios com o Ceará a partir de diferentes parcerias. O movimento será reforçado em 2024 porque o ano é considerado como o marco do centenário do audiovisual cearense.
Uma itinerância com filmes do acervo resguardado foi realizada em parceria com o Cine Ceará no Estado. Além disso, a Cinemateca também efetivou parcerias com o MIS-Ceará e com o Cineteatro São Luiz.
"Na Cinemateca estão preservadas plantas originais do São Luiz Fortaleza, que serão digitalizadas para serem divulgadas ao público cearense. Alguns técnicos (do MIS) vieram fazer estágio na CB e outras ações serão desenvolvidas entre as duas instituições", adianta Gabriela.