Quem viveu, sabe: da topique fretada ao forró na chuva, memórias das casas de show de Fortaleza
Clube do Vaqueiro, Forró no Sítio, Cantinho do Céu, entre outros espaços, marcaram gerações dentro e fora do São João
O tempo das antigas casas de forró de Fortaleza e Região Metropolitana é desses acontecimentos incomparáveis e compartilhados por gerações de diversas tribos e classes sociais. Entre paqueras e amizades, topiques fretadas e arrasta-pé na chuva, memórias daquela época não cansam de apresentar novas histórias.
Naturalmente lotados, os espaços ganhavam ainda mais público durante o período junino, com repertório específico e balanço próprio. “Além de todos os forrós já conhecidos, tinha as músicas de São João. Era uma festa com um 'plus a mais'”, brinca a criadora de conteúdo Mila Costa, colunista do Diário do Nordeste.
Olhinhos de fogueira, na sequência forró tradicional. Todo mundo de quadriculado. Aos 32 anos, Mila conta que ia com as amigas para os festejos desde muito jovem. Cada casa tinha uma identidade. No Clube do Vaqueiro, as maiores festas; no Cantinho do Céu, multidão de universitários; Sítio Siqueira, apenas aqueles a fim de dançar.
Ela frequentava bastante o Clube do Vaqueiro, devido às festas temáticas. Na do Lombo, por exemplo, a regra já estava no nome: tinha que se pendurar no “lombo” da pessoa. “A entrada era show demais, uma humilhação sem precedentes”, gargalha a influenciadora. “Mas era muito bom. A Festa do ‘Quem não aguenta, bebe água’, eita pau!”.
Se chovesse, a dança acontecia debaixo d’água mesmo. “Era o Batista Lima saindo do limão e a gente lá embaixo da chuva, dançando”. Tudo começava às 22h e seguia até o amanhecer. Mila não dispensava um minuto de todo esse tempo. “Era uma época que a gente alugava uma topique e todo mundo ia junto, porque esses lugares eram longe de casa”, recorda.
“Uma época que não volta mais. Hoje a gente vive uma realidade diferente, com filhos, casa… Aquilo simbolizou uma era mesmo, nem sei se alguém mais faz isso”. Na visão dela, atualmente há bem menos empreendimentos dedicados exclusivamente ao forró na Capital. No lugar deles, emergiram os locais voltados ao sertanejo.
“As festas de forró mesmo ficaram como os saudosos Forró das Antigas. Acho que faz muita falta. Se tivesse, eu iria de novo, com certeza – nem que fosse um festival pra reviver isso tudo. Alugaria até topique outra vez”.
Sá-ba-do e festa todo dia
Um dos nomes mais respeitados no segmento, o apresentador João Inácio Júnior é outro cuja vivência nas antigas casas de forró tem muito a dizer. “Foi um tempo lindo!”. Fortaleza, à época – entre 1980 e o início dos anos 2000 – era considerada a cidade mais festeira do Brasil e a capital internacional do forró.
“E era mesmo! Em cada bairro havia um ou mais clubes – como eram chamadas as casas de forró. Incrível, havia festas todos os dias na cidade, fato só encontrado aqui. De segunda a segunda, em clubes grandes e pequenos, gente de todo o país tinha diversão garantida”.
João cantou em todos os recantos – e inúmeras vezes – a partir das bandas das quais era empresário: Malícia, Forroça (O Forró da Roça) e As Tigresas (que também se transformaram em banda). Ou seja, ele ocupa esse contexto desde quando o forró virou uma força, tornando-se o ritmo predominante nas casas de espetáculos.
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Mas mesmo antes do gênero musical se transformar em fenômeno, já atuava como cantor e empresário. “Quando o forró ‘explodiu’, o número de casas de show aumentou exponencialmente. Então, eu já estava na área”, sublinha. “Em qualquer época do ano, em qualquer dia da semana, os forrós eram lotados”.
Aos sábados e domingos, havia festas que começavam às 14 horas e seguiam noite adentro. As maratonas de forró geralmente duravam 24 horas, com diversas bandas. Todos os estilos eram tocados. Os forrozeiros apaixonados chamavam de Forrozão ou Forró pé de serra. Havia ainda o Forró Universitário, Forró Eletrônico e Forró Xote.
“Essas eram formas livres de expressão, sem uma conceituação técnica”, ambienta Inácio Júnior. “Quando chegava o São João, o forró se misturava com as quadrilhas, então o espetáculo ficava mais deslumbrante. Magia pura. O clima era de alegria e paquera. Era comum milhares de casais dançando agarradinhos”.
Assim, o principal “barato” era dançar a dois, num misto de sensualidade e espetáculo. Nos cálculos do apresentador, 20% do público assistia ao show e 80% dançava. Alguns casais entregavam uma verdadeira performance no meio da multidão.
Economia festeira
À memória de João, se avolumam muitos nomes: Parque do Vaqueiro, Clube do Vaqueiro, Sítio Siqueira, Forró dos Três Amores, Brisa do Lago, Cajueiro Drink’s, Pau de Arara, Cantinho do Céu, Tauape Clube, Kukukaya, Gigantão da José Bastos, Mênfis Clube, Clube de Regatas da Barra do Ceará, Pirata Bar, Palácio do Forró, Vila do Forró, B-25, Gresse e Mansão do Forró.
A quase onipresença desses ambientes traz outro dado importante: o forró empregou milhares de pessoas – de gerentes de bandas, músicos e compositores a profissionais de estúdios de gravação, dançarinos, coreógrafos, montadores e operadores de som e de iluminação. Funções como porteiros, bilheteiros, seguranças, garçons e faxineiros também integram essa extensa cadeia.
Juntos, movimentaram não apenas casas de show, mas também a indústria de cerveja, refrigerantes, água mineral, instrumentos elétricos, eletrônicos e musicais. O setor de alimentação é outro que deve ser referenciado, uma vez haver comida nos eventos.
“Nessa época, aprendi que nossos valores são riquíssimos, que nossa cultura é densa, belíssima, encantadora e forte. Isso me fez olhar para nós com mais orgulho de ser nordestino”, alegra-se João Inácio Júnior.
“Sem aquela efervescência do forró, Fortaleza deixou de ser uma cidade festeira. Nossa paisagem musical não é nem sombra do que já foi. Praticamente todas as casas de forró – pequenas, médias e grandes – deixaram de existir. Os grandes eventos musicais de todos os estilos, como forró, sertanejo, reggae, rock, inclusive evangélicos e católicos, sumiram do nosso mapa. E não foi só culpa da pandemia. Uma pena. Hoje temos raros eventos de médio ou grande porte. Agora, se você sabe onde tem um ‘forrozim’, me avisa que quero ir”.
Vai de ônibus e volta de carona
Em outros tempos, quem poderia avisar era o contador Willams Santos, 49. A história dele com casas de forró começou entre 1994 e 1996. Ouvia o anúncio na FM 93 durante o programa Forrozão 93 – responsável por animar, sempre aos domingos, uma casa de espetáculos diferente.
“O bom que era gratuito e costumava ir para o Gigantão da Zé Bastos. Começava no início da tarde e terminava perto à noite. Também cheguei a ir quando a apresentação ocorreu no Clube de Regatas da Barra do Ceará e no Gresse”, enumera. Numa dessas idas ao Forrozão 93, conheceu o Sítio Siqueira e se apaixonou pelo espaço.
Por não possuir carro à época, pegava um ônibus até o terminal do Siqueira e, de lá, a famosa linha Jardim Jatobá via Sítio Siqueira. Lotado, o coletivo parava na casa de show, onde praticamente todos desciam. “Levava o dinheiro para algumas latinhas de cerveja e o do moto-táxi da volta – isso quando não conseguia alguma carona. Fiz muitos amigos lá. Era um ponto de encontro de pessoas que, feito eu, gostavam de um bom forró. Época de Brasas do Forró, Paulo Ney e banda, Banda Stylus, Mastruz com Leite, João Bandeira”.
E foram festas memoráveis em meio a grandes temporais. Como esquecer daquela no Clube do Vaqueiro em que, do início ao fim, choveu copiosamente ao som de Magníficos e Limão com Mel? “Dançamos e curtimos muito. Como ficávamos até amanhecer o dia, tínhamos que sair dali e passar pelos pontos tradicionais da cidade para comer sanduíche ou então tomar o velho caldo”.
Brigas eram muito raras, segundo ele. Roubos pouco existiam. As pessoas iam, de fato, para se divertir. Todo ano era São João. “Sempre irá existir a casa de forró preferida, e meu coração se dividiu entre duas. Sábado era o Clube do Vaqueiro; domingo, o Sítio Siqueira. Ah, quantas festas memoráveis, quantos amigos e momentos especiais…”.
O mesmo suspiro percorre o relato do consultor de empresas Victor Aragão, 37. No começo dos anos 2000, ele e uma dezena de amigos eram presença certa em lugares como Cantinho do Céu, Clube do Vaqueiro e Forró do Escondidinho. A maioria dos colegas ainda fazia o Ensino Médio nesse tempo. “Alguns eram maiores de idade. Meus pais confiavam a eles nossa responsabilidade, e a gente acabava indo”.
A escolha pelas casas mencionadas se alinhava ao fato de, conforme Victor, elas possuírem as melhores festas e um público “mais selecionado”. Com repertório variado, algumas das festas temáticas era a da Porca do Parafuso e a “Do Avesso”, nas quais homens vestiam-se de mulher e, mulheres, de homem.
“Tem um fato curioso de um amigo da gente que, na volta de uma festa, depois de todo mundo já ter tomado uma, deu um mergulho numa poça de lama que tinha se originado de uma chuva. E ficou por lá ficou mesmo. Parecia que ia dar mergulho numa piscina. Foi muito engraçado, até hoje a gente brinca com ele dessa história, parece que foi ontem”, divide.
Victor também já iniciou um namoro nesse contexto das casas de show. Foi em 2004. O primeiro beijo aconteceu durante uma festa no Cantinho do Céu, ao som de uma canção da banda Aviões do Forró. "Hoje em dia, sou casado há mais de dez anos - não com essa mesma pessoa - e tenho uma filhinha. Mas as memórias ficam, e eu só tenho ótimas daquela época. Nos divertíamos de verdade, ‘botava boneco’ no bom sentido. É um tempo que, acho, não volta mais".
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Novidade: saudosistas feito Victor Aragão, Willams Santos, João Inácio e Mila Costa agora podem matar um pouco a saudade dessa época. No Festival Vybbe Junina, o público reencontra as casas de show na cidade cenográfica. É possível tirar fotos nos letreiros de locais como Forró no Sítio e Kangalha. O espaço ainda ganhou um coreto, com apresentação da cantora Sandrinha.