Polêmico, novo filme da Netflix expõe o apocalipse que habita em nós; entenda
“O Mundo Depois de Nós” mostra um futuro caótico, supostamente iniciado por um ataque hacker, onde as relações sociais se deterioram à medida que o fim se aproxima
Parece mesmo que a humanidade anda sentindo a sombra do apocalipse se aproximar. Na literatura, na TV e no cinema são cada vez mais frequentes as obras com viés apocalítico, as distopias, o terror que anuncia o fim dos tempos. Na grande maioria das vezes, a culpa do caos é do próprio homem.
O filme mais falado da semana e que estreou já causando polêmica, bebe nessa fonte. “O Mundo Depois de Nós”, aposta da Netflix para fechar o ano com força estelar e parceria do casal Obama, não agradou a gregos e troianos. Para alguns, faltam respostas. Para outros, o roteiro inteligente deu o “time” perfeito para uma das produções mais instigantes de 2023.
Nas redes sociais, nos sites especializados, nos rankings, o longa acirra ataques e defesas acalorados.
O que é curioso, já que na proposta de ‘fim de mundo’ construída pelo filme, o que mais chama a atenção é a discórdia, a falta de empatia e a visão mundo onde tudo e todos podem ser o inimigo oculto. Quem critica ferozmente o filme, talvez não tenha se dado a chance de ver além da superfície para encarar o espelho da sociedade atual.
Escalada do caos
Para começar, quase 100% dos acontecimentos bizarros e que compõem o cenário de desconstrução do mundo como o conhecemos, são pertinentes e possíveis de se realizarem. Da mesma forma que as personagens agem como se estivessem num daqueles embates extremados. Desconfiança impera. Raivas se constroem de percepções pré-concebidas e assentir ao diálogo é visto como fraqueza.
Mas, vamos à história que tanto vem dando o que falar.
Amanda (Julia Roberts) e seu marido Clay (Ethan Hawke) formam o casal novaiorquino que, mesmo sem concordarem totalmente, alugam uma casa em uma área paradisíaca, a duas horas de distância, para passar férias com os dois filhos adolescentes Archie (Charlie Evans) e Rosie (Farrah Mackenzie).
A casa surpreende. É enorme, chique, cheia obras de arte, objetos tecnológicos e como se não bastasse, está cercada pela natureza. Floresta e praia estão bem ali, ao alcance. Um espetáculo!
Eventos bizarros
Mas já no primeiro passeio para desestressar, eis que um estranho incidente na praia dá uma ideia do que está por vir. Mesmo sendo algo que jamais havia acontecido, a família volta para casa convencida de que “está tudo bem”.
Só se incomodam mesmo é quando o sinal do Wi-Fi deixa de funcionar. Começando pelos adolescentes que precisam do celular, do tablet, da série favorita e por aí vai.
Para piorar, quando anoitece (sem internet), a família recebe uma visita inesperada. O homem chamado George (Mahershala Ali) e sua filha Ruth (Myha’la Herrold) batem à porta como se tivessem acabado de sair de uma festa de gala. Embora pareçam riquíssimos, são tratados por Amanda como uma ameaça.
Questões sociais
Medo do desconhecido ou racismo de brancos liberais? Eis uma resposta que o filme dá claramente e que alimenta um dos arcos mais interessantes do filme. Construção e desconstrução sociais entram em cena num duelo de atuação digno de dois atores que já possuem aquela famosa estatueta dourada em casa.
Assim que chega, George polidamente explica que é, na verdade, o dono da casa, e que resolveu voltar por causa de um blecaute que deixou a cidade às escuras. Um caos anunciado.
Instala-se aí o desconforto. Amanda não acredita em nada do que ele diz. Seu marido, ao contrário é solícito e acha tudo plausível e simples de resolver.
Para convencer o casal, George oferece dinheiro. Metade do que foi pago pela locação. Ele também diz que passará a noite com a filha no quarto do porão. Nesse caso, a filha é que se revolta por ter ficar na pior acomodação de um lugar que pertence a seu pai.
Ataque cibernético
Antes que o estranhamento cresça, uma rápida informação surge na tela da TV: um aviso do governo de que o país está sofrendo um ataque cibernético. O sinal some logo em seguida, deixando o clima ainda pior.
A tensão que pesa no ar só não é maior do que a escalada de eventos incomuns que continuam acontecendo. Os sinais de que há uma ameaça potente e real se aproximando chegam de todos os lados. Na natureza, nas atitudes das pessoas, nos céus, no ar e até mesmo no silêncio (ou ausência dele).
Isso tudo faz do filme uma experiência nervosa, perturbadoramente paranóica e, definitivamente, inteligente. O terror não está só nos fatos ameaçadores, mas também na atitude dos personagens.
É estranho percebermos um pouco de nós mesmos nas reações deles. Às vezes ríspidos demais (por medo), às vezes condescedentes demais (por desespero). O que somos, lá no fundo, transborda quando nos deparamos com a possibilidade do fim.
Que o diga Danny, um morador local, típico americano que está sempre preparado para um cataclismo. Do tipo que armazena comida, põe a bandeira gigante na porta de casa e não larga sua arma sob nenhuma circunstância. O papel, embora com pouco tempo de tela, é muito bem explorado por Kevin Bacon (outro veterano nas premiações de Hollywood).
Tensão generalizada
Graças a Danny, temos um dos momentos altos do filme. Um confronto realista, com nível de tensão que quase podemos tocar.Aqui sobram entrelinhas para quem enxerga além da ficção.
Falando nisso, o longa da Netflix é uma adaptação do livro homônimo de Rumaan Alam, lançado em 2020. Também é o primeiro filme de ficção produzido pela Higher Ground Productions, empresa do ex-presidente Barack Obama e a ex-primeira dama Michelle.
Com tantos pesos-pesados na produção, o escolhido para dirigir foi Sam Esmail, conhecido pela série “Mr. Robot”. Nos bastidores, circulou a informação que o cineasta teve ajuda do próprio Obama para auxiliar na explicação de alguns mecanismos de ataque em massa, ciberataques e coisas do tipo. Um deles explicaria o barulho ensurdecedor que quase enlouquece pessoas e animais em momentos cruciais do enredo.
Sinfonia do fim do mundo
Tecnicamente, o filme também esbanja ousadia. A trilha sonora acompanha o medo crescente, alternando silêncio e efeitos sonoros medonhos, sons ensurcedores, sirenes, gritos. Em resumo: a sinfonia do caos.
Na fotografia, fica difícil não aplaudir as cenas onde o mundo literalmente vira de cabeça para baixo. É como se alguém estivesse usando o mundo como um brinquedinho de girar, passando a ideia de que o descontrole geral é obra de alguém. Será? Ou controle é apenas uma ilusão que criamos para aceitar que podemos fazer muito pouco num planeta onde poder e dinheiro são o timão e o timoneiro respectivamente?
Enquadramentos
O enquadramento ora apela para o primeiro plano, ora usa o plano geral a fim de mostrar a magnitude da cena/ação. O mais divertido, porém, são as imagens em espiral, a flutuação de espaços, o espelhamento e inversão de ângulos. Um pouco mais dessas ousadias e o filme ficaria chato, experimental demais. Mas, Sam Esmail soube imprimir sua estética.
Outro acerto foi dividir o filme em capítulos, como uma reverência ao livro de onde a história vem. Também dá uma mínima ordem a tantas questões que vão se revelando cada vez mais frenéticas. De onde isso veio? O que acontecerá agora? Quem pode parar tudo isso? Vamos sobreviver? As perguntas que enchem a tela ressaltam a nossa vulnerabilidade diante do mundo dependente de conexões digitais.
Ilusão em massa
Afinal, o que somos sem informação? A mensagem que Sam Esmail passa poderia muito bem ser encarada como um aviso, um sinal de onde poderemos chegar se continuarmos numa ilusão em massa de que tudo está bem desde que não aconteça “comigo”.
“O Mundo Depois de Nós” talvez tenha frustrado parte do público porque não é um filme fácil. Pelo contrário! O longa nos desafia a pensar, por 2h20min, em problemas maiores do que “será que vou conseguir mais seguidores em 2024?”. Quem saberia responder?