Parques, comidas típicas, festa de padroeiro: quermesses em Fortaleza têm clima de interior

Realizados nos quatro cantos da Capital, festejos religiosos dedicados a santos possuem características próprias e parecem ocupar outro tempo e espaço na metrópole

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: A dinâmica das quermesses, festas realizadas com características singulares, muitas vezes de iniciativa da própria comunidade
Foto: Kid Júnior

É fácil reconhecer uma quermesse. No dicionário, são festas realizadas por igrejas visando arrecadar fundos para manutenção do templo e promoção de ações sociais. Na prática, basta observar o varal de luzinhas amarelas, barracas vendendo comidas típicas, o bazar e o parquinho para crianças.

Parecem ocupar outro tempo e espaço, algo que remete a certa nostalgia. Clima de interior na Capital. Em resumo, essas iniciativas constituem parte fundamental dos festejos religiosos dedicados a santos e santas do catolicismo popular. Em Fortaleza, devido à grande incidência da fé, é complicado situar a origem delas, contudo.

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“Como outras cidades surgidas no processo de colonização, a capital cearense recebeu influência da religião oficial do Império, o catolicismo. O Brasil e o Ceará possuem imensa extensão territorial, com populações inalcançáveis pelo controle paroquiano na época do Brasil Colônia”, introduz George Paulino, professor de Antropologia e coordenador do Laboratório de Antropologia e Imagem da Universidade Federal do Ceará.

Logo, estima-se que foi a presença de beatos e missionários no interior nordestino a responsável por impulsionar o catolicismo popular e festeiro. Nos eventos dedicados aos santos padroeiros, aproxima-se o sagrado e o profano no espaço da igreja e da rua por meio da realização de novenários e das estimadas quermesses. Comunidades em celebração.

Legenda: Festa em celebração à Nossa Senhora da Saúde, no Mucuripe: parece interior, mas é a Capital
Foto: Kid Júnior

Sociologicamente falando, porém, qual o impacto desse tipo de iniciativa para quem participa delas? Por ser uma cidade litorânea de expressiva influência sertaneja – dados os fluxos migratórios decorrentes dos ciclos de seca e de outros fatores – Fortaleza viu crescer nos próprios limites territoriais e culturais diferentes socialidades e costumes interioranos. 

Nesse sentido, as quermesses são expressão da cultura popular com esse papel de agregação comunitária, favorecidas por essa mesma agregação em âmbito municipal.

Legenda: Quitutes como maçã do amor e uva no palito são dois dos produtos comercializados nas quermesses
Foto: Kid Júnior

“A quermesse ocorre nessa territorialidade de vizinhança, que reúne e comunica pertencimentos. Em determinados casos, essa comunicação é pouca retratada no âmbito midiático, por tratar-se de festas realizadas em bairros periféricos, com dinâmicas singulares, muitas vezes de iniciativa da própria comunidade, sem relação direta com o controle eclesial”, detalha George Paulino.

Para ele, os pertencimentos comunicados por esses festejos de santo vêm, geralmente, da experiência de fazer promessas ao padroeiro, alcançar uma graça, seguir agradecendo e manter viva a devoção e a tradição. “O movimento festivo e de gestão da quermesse favorece o fortalecimento dos laços de solidariedade na esfera local”.

Efervescência periférica

Coordenador de Pastoral da Arquidiocese de Fortaleza, Padre Watson Façanha corrobora a ideia de que os fluxos populacionais em direção à Capital nas décadas passadas promoveram grande intervenção no modo de vivenciar a religiosidade. Nossos pais e avós moldaram a base da vivência devocional fortalezense.

Por outro lado, não são todas as paróquias que incorporam características de interior nas quermesses. Neste mês de setembro, três igrejas realizam festas de padroeiro na Capital: Nossa Senhora da Saúde, no Mucuripe; Nossa Senhora das Dores, no Otávio Bonfim; e São Vicente de Paulo, na Aldeota. Destas, apenas a última segue moldes mais modernos. Conforme Padre Watson, muitos dos costumes devem-se, por exemplo, ao local onde acontecem.

“A paróquia de periferia acaba tendo um pouco mais de espaço para ter aquela ideia da quermesse – da barraquinha, dos parquinhos – coisa que, no Centro, é mais difícil de fazer porque os espaços não permitem. A própria urbanização impede que isso aconteça”.
Padre Watson Façanha
Coordenador de Pastoral da Arquidiocese de Fortaleza

Visitamos os festejos da Paróquia Nossa Senhora da Saúde. Embora localizada bem próxima à praia, possui expressiva comunidade periférica e privilegiado espaço. Até o dia 8 de setembro, quando ocorre a solenidade de encerramento da festa, o público poderá participar de missas e também conferir quitutes como maçã do amor e pratinho; colocar crianças para brincar no parquinho; adquirir artesanatos; e desfrutar de boas conversas e encontros.

Legenda: Nas quermesses, fiéis podem participar de missas e também conferir programação de comidas e brincadeiras
Foto: Kid Júnior

“A própria celebração eucarística, o auge da nossa fé – na qual escutamos a Palavra de Deus e lembramos o santo sacrifício de Nosso Senhor Jesus Cristo – é um ato celebrativo. Então, enquanto a Igreja Católica existir, estarão juntos tanto o lado da alegria, da celebração, quanto o lado da fé, da devoção”.

As quermesses, assim, também se inscrevem nessa longevidade, uma vez serem a extensão da grande alegria promovida pelo banquete celebrado na Santa Missa.

Mapa afetivo da cidade

Há outro ponto importante, relativo ao modo de viver a cidade que as quermesses instauram. Nas pesquisas realizadas pelo professor George Paulino, os fiéis narram a experiência com o festejo de santo e, por efeito, com essas festividades. Eles os encaram como vivências de duração na metrópole. 

“Recordar quando a devoção a um santo iniciou faz uma pessoa verbalizar um mapa afetivo da cidade. Ela narra uma cidade que se transforma em paisagem e dinâmica urbana por meio da descrição da promessa, da festa, da tradição”.

No caso da festa de São José, no bairro Bonsucesso, o São José da antiga capelinha e as narrativas memoráveis da devoção de fiéis ressaltam o espaço do rio Maranguapinho como cenário de origem. A simbologia da água envolvida na construção do referencial sagrado.

Legenda: Segundo pesquisador, socialidade pulsa no espaço da quermesse porque é construída coletivamente
Foto: Kid Júnior

Tais ações mobilizam sentimentos coletivos que, quando interpelados na pesquisa, contam a história de uma cidade em crescimento e transformação. “Assim se dá também com a festa de São Sebastião, que mobiliza as comunidades de Mucuripe e Dendê”, ressalta.

“Festa é socialidade, como diz o livro ‘Festa, religião e cidade: corpo e alma do Brasil’, da antropóloga Léa Freitas Perez. Essa socialidade pulsa no espaço da quermesse porque é construída coletivamente. Mobiliza pessoas que se conhecem e se articulam, tecem os fios de uma rede social na tela concreta da vida, entre a casa e a rua”.
George Paulino
professor de Antropologia e coordenador do Laboratório de Antropologia e Imagem da UFC

A partir do retorno das atividades presenciais, após o período mais nebuloso da pandemia de Covid-19, cabe revalidar esses fios. Costurar novos pontos. As festas religiosas e, por efeito, as quermesses, não se acabam. Elas se transformam e possuem longevidade. 

“E uma característica que garante isso é a relação votiva entre o fiel e o santo de devoção; a promessa. O vínculo de reciprocidade estabelecido entre o fiel e o santo prolonga no tempo a devoção. O gosto por relacionar religião e festejo também insere no cotidiano a vivência do lazer, muitas vezes escasso na rotina do trabalho pesado e dos deslocamentos diários na cidade. Isso também assinala a longevidade dessas práticas da cultura popular”.

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