Quem são, o que fazem e qual a importância dos Mestres da Cultura para o Ceará

Verdadeiros tesouros vivos, eles recebem certificado de Notório Saber pela Universidade Estadual do Ceará (Uece), com oportunidade de dar aulas em faculdades e escolas

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Francisca Zenilda Soares Ferreira, mais conhecida como Mestre Dona Zenilda, é natural do município de Assaré e fabrica linguiça artesanalmente
Foto: Fernanda Siebra

Manipular o barro para fazer cerâmica e louça. Trabalhar o couro e dele extrair roupas, calçados, móveis. Ser relojoeiro ou mateiro, instrumentista ou cozinheira. Geralmente ligados à sabedoria popular, esses ofícios são característicos dos Mestres e Mestras da Cultura do Ceará. Homens e mulheres cujas habilidades enriquecem o Estado, o Brasil e o mundo.

Mas, afinal, quem são, o que fazem e qual a importância desses verdadeiros tesouros vivos para nós? O valor está na ancestralidade e na generosidade de perpetuar cada conhecimento. Espalhados por todo o solo cearense, os Mestres e Mestras são detentores de saberes e fazeres tradicionais e populares representativos da sociedade local. 

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Quando são titulados pelo Estado do Ceará – algo que acontece desde 2003 – ganham o direito de tornar-se um tesouro vivo oficializado, participando de eventos e formações para a valorização do patrimônio imaterial. Nesse processo, também recebem o certificado de Notório Saber pela Universidade Estadual do Ceará (Uece), com oportunidade de dar aulas em faculdades e escolas.

“A relevância é a capacidade desses conhecimentos se tornarem referências culturais da prática cotidiana de todo um Estado, criando laços afetivos de pertencimento e sendo apreendidos na sociabilidade do campo e da cidade de jovens e adultos”, dimensiona Jéssica Ohara, coordenadora de Patrimônio Cultural e Memória da Secretaria da Cultura do Ceará.

Legenda: Maria Quirino da Silva, mais conhecida como Dona Tarina, é de Cascavel e trabalha o barro utilizando técnicas ancestrais em um processo completamente artesanal
Foto: Yago Albuquerque

Todo ano, os Mestres e Mestras se reúnem em um encontro próprio. Intitulado Mestres do Mundo, é voltado para trocarem experiências e encontrarem o público de forma ampla. A Secult-CE também investe em projetos cujos editais de fomento incluem os tesouros vivos.

No último mês de junho, foi ampliado para 100 o número de Mestres e Mestras da Cultura do Estado do Ceará, por meio de lei sancionada pela governadora Izolda Cela. O evento aconteceu na Vila da Música Monsenhor Ágio Augusto Moreira, cidade do Crato. Os novos mestres serão selecionados por meio do XII Edital dos Tesouros Vivos da Cultura do Ceará 2022, igualmente lançado em junho. As informações detalhadas do edital foram disponibilizadas no site.

Conforme Fabiano Piúba, secretário da Cultura do Estado, “somos pioneiros na legislação de reconhecimento dos saberes e fazeres, artes e ofícios dos Mestres e Mestras da cultura, a partir da valorização dessas atividades e trabalhos”.

Como se escolhe um Mestre?

O Mestre ou Mestra da Cultura escolhido se enquadra nos seguintes quesitos: reconhecimento público e incidência no Estado do Ceará; relevância e qualidade da proposta; experiência, temporalidade e vivência; e capacidade de transmissão e partilha do saber cultural.

O processo compõe-se de uma única etapa, envolvendo a habilitação documental e técnica, na qual os analistas da Secult irão conferir a documentação enviada. Na sequência, os pareceristas (cinco pessoas de notório saber) irão fazer as avaliações e pareceres. Atualmente, são 68 Mestres e Mestras vivos, conformados nas seguintes definições: Pessoa Natural, Grupo e Coletividade.

Legenda: Nascido no Cedro, Francisco Vitor Lima, o Senhor Netinho, aprendeu com o avô e o pai a arte de ferreiro
Foto: Honório Barbosa

“O saberes se ligam a artesanias com várias matérias-primas importantes do bioma brasileiro: palha para fazer chapéus, balaios, cestas; flandres usados na confecção de peças de adorno, objetos utilitários e indumentária dos folguedos populares; fazeres artesanais da gastronomia, de culturas dos povos indígenas, herbário e a medicina popular e tradicional das práticas afro-brasileiras”, enumera Jéssica Ohara.

São também os conhecimentos das formas de expressão por meio de folguedos, brinquedos populares, atividades das literaturas e oralidades, musicalidades, religiosidade popular, manifestações lúdico-cênicas e espetaculares – reisado, maracatu, capoeira, cordel, xilogravura, repente, maneiro-pau, dança do coco, dança de São Gonçalo, lapinhas, festividades juninas, cânticos de benditos e penitências.

Legenda: Ana da Rabeca é a única mulher rabequeira cearense encontrada em uma pesquisa de mais de 15 anos pelos historiadores Gilmar de Carvalho e Francisco Sousa
Foto: Felipe Abud

Não à toa, é o motivo pelo qual se faz a salvaguarda dessas demonstrações, a fim de dar condições à tradição na dinâmica que a comporta, respeitando a capacidade de continuidade, manutenção e adaptação para resistir – sobretudo na transmissão entre gerações.

Remuneração para manter legado

Pessoas naturais tituladas com comprovada carência econômica fazem jus ao recebimento de um auxílio financeiro, de valor não inferior a um salário de referência. Por sua vez, os grupos têm direito ao mesmo apoio remunerado, destinado à manutenção das atividades – repassado pelo Estado do Ceará durante o período de dois anos, em cota única.

Pelo fato de receberem certificado, reconhecimento e auxílio financeiro, os Mestres e Mestras têm obrigação em manter os saberes e fazeres, transmitindo as artes e ofícios na própria comunidade e em outros espaços. 

Legenda: Mestre Macaúba do Bandolim é conhecido nas rodas de choro e samba de Fortaleza
Foto: Felipe Abud

O movimento para que isso aconteça é incentivado. A Secretaria da Cultura, juntamente à Secretaria da Educação, têm um projeto para escolas com tempo integral chamado “Escola com os Mestres da Cultura”, por exemplo. Nele, os Mestres e Mestras assumem disciplinas optativas na rede de escolas integrais da Seduc. 

“Eles vão para essas escolas, mas os estudantes também vão para as oficinas, ateliês e terreiros deles. Inclusive, gosto de dizer que uma casa, oficina, ateliê ou terreiro de um mestre e uma mestra são, ao mesmo tempo, uma escola e um museu. Um lugar de memória e de transmissão de saberes”, compara Fabiano Piúba.

Legenda: Mestra Pajé Raimunda Tapeba, de Caucaia, alimenta a cultura indígena do povo Tapeba
Foto: Felipe Abud

Assim, ao reconhecerem os mestres, o Ceará também reconhece as comunidades, os conhecimentos solidários. Saberes que existem enquanto coletividade – saber-fazer comum, entre todos e para todos. Com a ampliação e aumento do número de mestres – a Lei inicialmente era de 60 mestres, depois foi ampliada para 80 e, agora, 100 – referencia-se o Ceará como um Estado cada vez mais rico e diverso.

Segundo prospecção do secretário da Cultura, “o número hoje é de 100, mas, se você me perguntar numa perspectiva enquanto cidadão, acho que a gente ainda deve, num processo gradual, ir aumentando esse número e chegar a pelo menos 150 mestres”.

O foco mesmo é disseminar a luz. “Certa vez, perguntei para Mestre Aldemir – mestre do reisado no bairro Bela Vista, no Crato – o que é preciso para ser mestre da cultura. Ele disse que, primeiro, a pessoa precisa ter o reconhecimento e o respeito da própria comunidade; segundo, ser verdadeiro com o que faz; e terceiro, ter amor – tanto pela arte e ofício quanto pela forma como transmite o saber na comunidade”. Estender o legado.

 

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