Para além de ícone cult, Kafka é humanizado em espetáculo teatral baseado em suas cartas ao pai

Com Thiago Arrais e Ricardo Guilherme, peça Kartas Kafka chega a Fortaleza para curta temporada a partir desta quinta-feira (19)

Escrito por Ana Beatriz Caldas , beatriz.caldas@svm.com.br
Thiago Arrais é ator e encenador teatral
Legenda: Thiago Arrais é ator e encenador teatral
Foto: Rebeca Lemos Carvalho/Divulgação

Em um exercício de ficção, uma carta nunca enviada ganha uma resposta à altura, revelando novas nuances de uma complexa relação familiar. Assim é “Kartas Kafka”, espetáculo inspirado na obra “Carta ao Pai”, do escritor tcheco Franz Kafka. que realiza nova temporada em Fortaleza neste mês, a partir desta quinta-feira (19). 

As apresentações ocorrem no Teatro B. de Paiva, no Hub Porto Dragão, nos dias 19 de setembro e 3 de outubro, e no Theatro José de Alencar, nos dias 5 e 6 de outubro. Os ingressos já estão à venda e custam R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia-entrada).

Estrelada por Thiago Arrais e Ricardo Guilherme, com dramaturgia de Thiago Arrais e de Jorge Palinhos, a montagem é uma produção luso-brasileira e transatlântica – começou com Arrais no Porto, em Portugal, e Guilherme em Fortaleza, pesquisando e ensaiando através de telas, à distância, ainda durante a pandemia.

Veja também

Thiago conta que a pesquisa teatral sobre Kafka começou com o intuito de fazer um espetáculo “convencional”, com uma equipe de quase 40 pessoas, baseado nas obras Amerika (1927) e A Muralha da China (1931). Com a chegada da covid-19, no entanto, os planos foram suspensos e o ator e encenador teatral se aprofundou nas leituras, buscando soluções para uma encenação possível em meio às restrições sanitárias.

Foi assim que acabou se aprofundando em Carta ao Pai (1919), livro publicado postumamente – como boa parte da obra kafkiana – em que o autor tcheco desabafa sobre a difícil relação com o pai, Hermann Kafka, em um texto endereçado ao próprio genitor, relatado como uma figura autoritária e ausente. 

Quando juntamos os dois materiais percebemos os choques de visão de mundo, os sentimentos entre os dois personagens e fazemos um mergulho na vida pessoal do Kafka – mas há, também, um entendimento do quanto esse mergulho está espelhado na literatura dele."
Thiago Arrais
Ator, pesquisador teatral e diretor de Kartas Kafka

A dramaturgia se dividiu em dois textos: um feito por Thiago e outro pelo português Jorge Palinhos, já que a ideia era explorar a dualidade em diversas formas, inclusive pensando nas diferentes leituras possíveis considerando diferentes culturas.

A ideia deu tão certo que, antes mesmo de ser encenada pela primeira vez, o espetáculo foi premiado por duas instituições portuguesas, a Fundação Calouste Goulbenkian e o Criatório/Câmara Municipal do Porto.

Depois, veio o momento de levar o espetáculo ao palco pela primeira vez. Mesmo com a abertura das atividades, os idealizadores decidiram que a obra seria híbrida, com Thiago no palco, como Kafka, e a voz de Ricardo Guilherme sendo transmitida online, de um estúdio de Fortaleza – proposta que, segundo Arrais, reforça os conceitos de presença e ausência trabalhados no texto.

Após duas temporadas em Portugal em 2023, o espetáculo estreou na capital cearense em fevereiro deste ano, no palco do TJA, com o texto de Thiago e Ricardo ainda fora do campo de visão dos espectadores, que, como Kafka, apenas ouvem a voz do “fantasma” de Hermann.

A segunda temporada cearense dá início à uma nova fase da montagem, que devem retornar à Portugal ainda este ano e, em 2025, rodar outros estados do Nordeste.

Peça busca humanizar Kafka e ir além do “ícone cult”

Montagem é 'resposta' de Hermann Kafka ao livro 'Carta ao Pai', publicado postumamente
Legenda: Montagem é 'resposta' de Hermann Kafka ao livro 'Carta ao Pai', publicado postumamente
Foto: Rebeca Lemos Carvalho/Divulgação

No palco, um escritor frustrado, em meio a papéis de carta nunca enviados, escreve freneticamente e é assombrado pela ideia de não ter sido tudo o que quis ser. Não conseguiu ser o escritor que desejava e, por isso, mandou queimar quase toda a sua obra no leito de morte; não conseguiu ser o homem que a sociedade esperava que fosse, forte e próspero; e não conseguiu ser, antes de tudo, o filho que seu pai desejava.

A imagem que resume o espetáculo se aproxima do imaginário construído sobre Franz Kafka, que faleceu aos 40 anos, após um grave quadro de tuberculose, e só atingiu sucesso literário postumamente. No entanto, Kartas Kafka não se propõe a dar prosseguimento à ideia quase caricata que se formou sobre o artista tcheco.

Pouco interessado em retratá-lo como ícone cult ou vítima de sua própria história, Thiago Arrais ressalta que o espetáculo busca ir além da discussão sobre a vida pessoal de Kafka, numa tentativa de resgatar um debate sobre a habilidade do autor tcheco de observar o mundo ao seu redor e prever questões sociais da atualidade – mas tirando, também, o peso de uma suposta "genialidade".

“Tenho uma admiração pelo Kafka porque ele, de um jeito peculiar, conseguiu colocar em cena uma série de problemas subjetivos e globais que se confirmaram, inclusive, após sua morte. Vejo nele uma dimensão quase premonitória”, destaca.

Questões como um sentimento de estranhamento com o próprio corpo e a falta de comunicação familiar são algumas das citadas por Thiago como pontos da obra do autor que seguem dialogando com a atualidade, assim como a ascensão de regimes autoritários. “Você vê a ascensão de regimes nazifascistas em O Processo, O Castelo. Já o livro Amerika trata da trituração da subjetividade, da transformação do ser humano em máquina”, detalha.

A escolha de encenar Kafka vai de encontro à preferência de Arrais por encenar clássicos, como Shakespeare e Bram Stoker – que, para ele, demonstram mais profundidade e trazem mais possibilidades de interpretação. “Gosto de uma dramaturgia que exponha o problema e deixe o problema em aberto, porque entendo que o teatro é sobre a dualidade humana”, afirma.

Em Kartas Kafka, a ideia é entender é, ao dar “voz” ao pai, humanizar a figura do filho, entendendo as motivações de ambos para além dos sentimentos de angústia, perda e rancor retratados em Carta ao Pai.

“Me aprofundei mais para tornar real essa figura do Kafka – cada vez mais humana e real e menos essa figura cult que ele virou. Não me interessa muito o Kafka cult, mas o ser humano que escreveu essas coisas”, completa.

“O teatro é uma arte de profunda empatia por alguém, mas também de profunda crítica a alguém, senão vira religião. Então, a peça não é para mostrar Kafka enquanto autor brilhante, mas mostrar também os problemas dele, porque isso é um ato de compaixão”, conclui Thiago.

Uma reflexão sobre a possibilidade do reencontro

Ator, escritor e professor Ricardo Guilherme empresta a voz ao espetáculo (foto de apoio ilustrativo)
Legenda: Ator, escritor e professor Ricardo Guilherme empresta a voz ao espetáculo (foto de apoio ilustrativo)
Foto: Divulgação

Quando pensou no ator que poderia dar vida e emprestar a voz à Hermann Kafka, Thiago Arrais não teve dúvidas: tinha que ser Ricardo Guilherme. Afinal, ele queria, além de uma interpretação potente, reforçar os simbolismos da peça, como a dualidade e o referencial importante que uma figura paterna tem na vida de um filho, entre abismos e pontes.

“É simbólico, porque há um reflexo geracional e fui muito influenciado por ele. Ele é meu ‘pai estético’, meu grande referencial estético”, ressalta.

Ricardo, por sua vez, encarou o papel com alegria – seria a primeira vez que experimentaria uma interpretação fora do palco, um teatro híbrido, que iria além das fronteiras. 

“Isso tem a ver com a própria peça, porque é sobre um pai que ‘paira’, um pai de um filho que está, digamos, exilado no seu mundo, na sua literatura”, reflete o ator. “E o mar os separa também na peça, é uma metáfora da relação dos dois”, completa.

Nas primeiras encenações, a experiência de atuar em um estúdio da Capital às quatro da tarde enquanto no Porto já anoitecia empolgou Ricardo. Estava ali o distanciamento necessário, expresso no texto, também colocado na forma. Um outro olhar, uma outra visão de mundo. Um outro fuso.

“Eu não estava em cena, no sentido da minha imagem; era apenas a minha voz como uma voz assim, onipresente, quase divina. E, no teatro, esse filho a conviver com essa voz, que perturba a paz dele”, lembra.

“A ideia de que ele fala com um fantasma e fala com essa ausência é tanto que, em determinado momento, ele tenta entregar a carta e o papel cai num abismo”, completa.

Apesar do sofrimento do personagem – e das próprias dimensões de ausência e perda sofridas em vida por Kafka, Ricardo vê a peça, também, como uma oportunidade de refletir sobre o reencontro, ainda que na ausência.

“A peça é uma tentativa de administrar as arestas da paternidade de um cara que não teve filhos, que é o Kafka, com um homem que teve vários filhos e perdeu vários filhos  – um deles, o Kafka, ele perdeu mesmo quando ele ainda não tinha morrido”, explica.

Para Guilherme, mais do que um resgate do legado kafkiano, a obra se configura como uma mensagem para o público – seja ele iniciado ou não na literatura clássica. É um lembrete para que o espectador consiga refletir sobre as relações possíveis em meio à aspereza e aos contrapontos. 

“Acho que a peça aponta para uma possibilidade de atravessamento – apesar das arestas, apesar das diferenças e dos ressentimentos”, conclui.

Serviço
Kartas Kafka em Fortaleza
Onde: Teatro B. de Paiva - Hub Cultural Porto Dragão (Rua Boris, 90c - Fortaleza, CE)
Quando: 19 de setembro e 3 de outubro, às 19h (quintas-feiras)
Duração: 60 minutos
Classificação indicativa: Livre
Ingressos: R$ 30 (inteira) | R$ 15 (meia)
Vendas: No Sympla e na bilheteria do teatro
Mais informações: @kartas.kafkahttps://www.instagram.com/kartas.kafka/

*Informações sobre preços e horários das apresentações no Theatro José de Alencar ainda serão divulgados; mais informações nas redes sociais do teatro

Este conteúdo é útil para você?
Assuntos Relacionados