Orgulho do Pirambu: Balé Jovem completa 10 anos transformando vidas e histórias do bairro em arte

Projeto idealizado pela bailarina Ray Xavier já beneficiou centenas de jovens da capital cearense; neste sábado (9), grupo apresenta espetáculo gratuito na Praia de Iracema

Escrito por
Ana Beatriz Caldas beatriz.caldas@svm.com.br
Projeto social atende crianças, jovens e adultos do Grande Pirambu há uma década
Legenda: Projeto social atende crianças, jovens e adultos do Grande Pirambu há uma década
Foto: Kid Júnior

Os desafios vividos por uma jovem bailarina do Pirambu, bairro que hoje figura entre os dez com menor renda em Fortaleza, se tornaram vetor de transformação da realidade de centenas de meninas e meninos da periferia da capital cearense, que hoje têm acesso à arte e à verdadeira história de seu território.

Idealizado pela professora de dança Rayzer Xavier, 33, o Balé Jovem do Pirambu começou a ser esboçado há cerca de 15 anos, mas há dez ganhou nome e propósito claro: possibilitar o acesso à dança a crianças, adolescentes e jovens do bairro, além de oferecer atividades que incentivam o autoconhecimento, o pertencimento e a valorização da memória e da identidade periférica.

Ainda sem sede própria, o Balé Jovem funciona na sede de outro projeto social de dança, o Balé Talita Cumi. Juntos, os dois projetos se apoiam e fortalecem, dividindo parte da equipe pedagógica e do quadro de alunos.

Atualmente, o grupo de dança tem 85 alunos matriculados – majoritariamente, meninas negras e residentes de bairros do Grande Pirambu –, mas Rayzer estima que mais de 800 jovens tenham passado pelo projeto na última década. Este número deve aumentar em breve, já que as matrículas para novas turmas estão abertas para este semestre.

Aulas e ensaios são realizados de segunda a sábado
Legenda: Aulas e ensaios são realizados de segunda a sábado
Foto: Kid Júnior

A primeira turma do curso básico de dança, o mais completo da grade, se formou no ano passado, após nove anos de estudo e práticas quase diárias. Dividido entre aulas e ensaios, o curso ainda inclui oficinas e outras atividades educativas.

Neste sábado (9), o grupo apresenta o espetáculo de conclusão da turma de 2024, “Pra Onde o Vento Sopra”, no Centro Cultural Belchior, na Praia de Iracema, às 19h, com acesso gratuito. Construído em colaboração com o Centro de Documentação Popular do Pirambu (CPDOC), o show resgata a memória do bairro a partir da dança e explicita a importância de narrar as próprias histórias.

O espetáculo já foi apresentado no Cuca Pici, na Pinacoteca do Ceará e em diversas escolas da Cidade, e segue em cartaz divulgando o balé cearense, especialmente entre os moradores do Pirambu. “A nossa intenção é apresentá-lo no máximo de locais dentro do território”, afirma Rayzer.

Cria do Pirambu, idealizadora do Balé Jovem conheceu a dança em projeto social

Ray Xavier, 33, idealizadora do Balé Jovem do Pirambu
Legenda: Ray Xavier, 33, idealizadora do Balé Jovem do Pirambu
Foto: Kid Júnior

A história de Ray Xavier, como é conhecida, é similar a de diversos jovens que, após serem beneficiados por projetos sociais, decidem dedicar a vida a tornar o caminho mais leve para quem ainda irá iniciar seu percurso. Nascida e criada no Pirambu, a artista começou a dançar no projeto Sociedade da Redenção, aos sete anos, e ali estudou até os 15, quando entrou numa academia de balé do bairro.

Já bailarina experiente, foi admitida no curso técnico em dança da Escola Porto Iracema das Artes e atravessava diariamente a cidade para aprimorar seus conhecimentos. Quando se formou, decidiu voltar ao projeto onde começou e partilhar o que tinha aprendido.

“Tive toda essa vivência de bailarina periférica dentro dessas instituições acadêmicas, então tinha toda essa dificuldade de transporte, de material, que é bem caro, de lanche, e as oportunidades, que são bem diferentes”, conta Ray. “E eu tinha muita vontade de mostrar o que acontecia aqui no bairro, porque o Pirambu é cheio de iniciativas”, completa.

Alunos do grupo em ensaio para a apresentação deste sábado (9)
Legenda: Alunos do grupo em ensaio para a apresentação deste sábado (9)
Foto: Kid Júnior

Aos 19 anos, se uniu a outros artistas do bairro e começou a elaborar o que viria a ser o Balé Jovem. A definição do nome do projeto demorou a vir, em partes, pelo início da divisão da cidade em territórios ‘proibidos’ e ‘permitidos’, resultado do avanço das facções. 

Na época, nem todos podiam ou queriam afirmar-se ‘do Pirambu’, mas a necessidade de resgatar a autoestima do bairro e afirmar a importância do território determinaram o nome oficial do projeto, que foi oficializado após idas e vindas em 2015.

“Foi uma forma de reconhecimento e de a gente tentar quebrar esse estigma das periferias. Principalmente do Pirambu, que desde muito tempo, a primeira referência que se tem na mídia fortalezense é das questões de briga por território, das violências, de prostituição”, destaca a artista. “A gente quer mostrar que tem outra coisa, outra realidade”, explica.

O público-alvo inicial, de 15 a 29 anos, acabou se ampliando para dar conta da demanda das crianças do bairro e de familiares das alunas, principalmente irmãs mais velhas, mães e tias que nunca tinham tido oportunidade de aprender a dançar. Hoje, os alunos mais novos têm de 3 a 10 anos e as mais velhas têm entre 30 e 40 anos, mas não há limite de idade.

Atualmente, Ray lidera o projeto junto às irmãs, Priscila Xavier, 31, e Raris Maria, 24, que também “foram infectadas com o vírus da dança”, brinca a artista. Enquanto Priscila é responsável por todo o figurino, Raris faz a produção cultural do grupo. O projeto ainda conta com três professoras – duas delas ex-alunas do Balé Jovem – e uma educadora de patrimônio e memória.

Para participar da iniciativa, é preciso pagar uma mensalidade de R$ 50, que pode ser negociada de acordo com as condições de cada família. Há também a possibilidade de bolsa integral para alunos que não possam arcar com a taxa.

 “A gente tem um diálogo muito próximo das famílias. Quando dá pra pagar, paga. Se falam ‘ah, não posso esse mês, tia Ray’, a gente vê o que faz. Nem todos os bailarinos são pagantes, acho que menos da metade é pagante. [Esse valor] é o que a gente consegue tirar pra ajuda de custo para os educadores”, destaca.

Atualmente, a gestão do Balé trabalha de forma 100% independente e busca apoio em editais para transformar o projeto em um instituto e conseguir manter todas as atividades gratuitas. Por enquanto, para pagar os gastos operacionais e ajuda de custo às professoras, a iniciativa realiza bazares, rifas e aceita doações de sapatilhas, gel para cabelo e outros itens de dança para os alunos.

Valorização da identidade e de um ‘balé decolonial’

Apresentação do Balé Jovem na Pinacoteca do Ceará
Legenda: Apresentação do Balé Jovem na Pinacoteca do Ceará
Foto: Marília Camelo/Divulgação

Entre as principais bandeiras do Balé Jovem está a valorização da identidade. Com políticas afirmativas e foco em pessoas negras, LGBTQIAPN+, pessoas com deficiência e jovens residentes em bairros periféricos, o grupo visa contribuir para a autoestima dos alunos por meio da dança.

“Escutei alguém falar que, quando a gente não sabe a nossa história, quando a gente não sabe quem a gente é, a gente acaba acreditando no que os outros falam”, comenta Ray. “Depois desse projeto que a gente fez – que não é só de dança, mas é também dessa formação, dessa validação, desse resgate dessa identidade – percebi que agora as meninas têm orgulho de dizer que moram aqui, que sabem quem são, o valor que elas têm, o valor da história e da memória”, comenta Rayzer.

A professora conta que um dos aspectos mais trabalhados nas atividades pedagógicas é o do empoderamento e do autorreconhecimento da juventude negra, que muitas vezes não tem ferramentas para compreender ou defender sua identidade.

Espetáculo 'Pra Onde o Vento Sopra'
Legenda: Espetáculo 'Pra Onde o Vento Sopra'
Foto: Marília Camelo/Divulgação
 

“Dentro dos nossos cadastros, a gente faz uma ficha de matrícula das meninas, para controle. No ano passado, a maioria não se reconhecia como moradora do Pirambu e também não se reconhecia, muitas vezes, como pessoa preta, pessoa parda”, conta Ray. “E a gente percebeu, nesse ano, uma mudança drástica: todo mundo colocava lá ‘território: Pirambu’, ‘sou preta’, ‘sou parda’. Tem toda essa afirmação que realmente mexe na autoestima das meninas, dos rapazes”, completa.

Parte importante desse movimento parte da ideia de trazer para aulas e oficinas artistas que reflitam a diversidade do corpo de baile e que compreendem as vivências de artistas que residem na periferia. 

“Quando a gente traz uma professora de balé clássico preta, premiada, que viajou ou que vive na sua companhia fazendo a sua dança, para elas é uma forma de acreditar naquilo que elas fazem”, explica. 

A defesa, afirma, é de um “balé mais decolonial”. “Aqui a gente tem meninas majoritariamente pretas, então a gente não utiliza meias rosa, sapatinhos rosa. A gente utiliza meias e sapatilhas no tom da pele, mas também a gente deixa isso livre para que cada uma se vista como se sente bem”, detalha. 

“Assim como o cabelo: nós temos meninas com cabelos cacheados incríveis, e elas prendem os cabelos da forma que elas acham melhor”, completa. “Sempre falo que o critério para participar do Balé Jovem é estar disponível”.

Incentivo à nova geração de artistas

Vladna Silva, 18, se formou no grupo e hoje é bailarina e professora de dança
Legenda: Vladna Silva, 18, se formou no grupo e hoje é bailarina e professora de dança
Foto: Kid Júnior

Entre os principais objetivos do Balé Jovem está o de profissionalizar artistas que desejarem seguir pelo caminho da dança. Exemplo de sucesso da empreitada é a professora de balé infantil Vladna Silva, de 18 anos, que começou a dançar aos sete anos, no Centro Cultural Chico da Silva, e em 2019 entrou oficialmente para o Balé Jovem. Com o auxílio do Bolsa Jovem e o incentivo da gestão, virou monitora do projeto em 2023 e, no ano passado, tornou-se professora de balé infantil do grupo.

“O Balé Jovem foi a base de todo o meu conhecimento e de toda a minha carreira, porque hoje eu não atuo somente como professora de balé, eu também atuo em escolas, como auxiliar e monitora”, conta Vladna, orgulhosa.

A transformação também impactou sua vida pessoal, mudando a forma como a jovem artista e professora passou a se enxergar. “Foi através de muitas conversas com a Rayzer e a Raris, da organização do projeto, que eu consegui me ver como uma pessoa negra”, lembra. “Eu não conseguia ver esses traços, essa forma, essa vivência em mim, e elas me mostraram, através da dança, conversas e oficinas”, afirma.

Além do autorreconhecimento como uma mulher negra, Vladna conta que passou a também olhar para o bairro de outra forma. “Meu bairro tem muitos centros culturais, muitos projetos sociais, e são esses projetos que tiram as crianças de uma realidade que a gente vive, que a gente vê. Eu vejo violência, eu vejo o crime, mas não fui pra isso. Conheci outra coisa através da arte, através da cultura”, declara.

Serviço
Balé Jovem do Pirambu apresenta “Pra Onde o Vento Sopra”
Quando: Sábado, 9 de agosto, às 19h
Onde: Centro Cultural Belchior (R. dos Pacajus, 123 - Praia de Iracema)
Acesso gratuito
Mais informações: @balejovemdopirambu e @centroculturalbelchior

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