OAB entra com ação junto à Justiça Federal contra ‘paralisação’ da Lei Rouanet

Conselho Federal da entidade propõe uma ação civil pública em oposição ao “desmonte da cena cultural no País”, conforme documento

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: No documento da OAB, também consta estudo do Itaú Cultural sobre trabalhadores do setor cultural que perderam emprego durante a pandemia
Foto: Helene Santos

O Conselho da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) apresentou, nesta terça-feira (11), à 1ª Vara Federal Cível da Justiça Federal, em Brasília, uma ação civil pública contra a “paralisação” da Lei Rouanet, um dos mais importantes dispositivos de fomento à cultura no Brasil.

No documento formulado pela entidade, desenvolvido em 36 páginas, é informado que a ação “volta-se contra uma série orquestrada de atos do Poder Executivo Federal que têm por objetivo declarado o desmonte da cena cultural no país”. 

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A OAB aponta que há “ilegais limitações e indevidas intervenções” no procedimento de aprovação dos projetos culturais submetidos à Lei Rouanet. Conforme a instituição, os atos “representam evidente dano ao patrimônio público e social por violação ao direito fundamental e ao acesso à cultura”.

Ao Verso, o presidente da Comissão Especial de Cultura e Arte do Conselho Federal da OAB, Ricardo Bacelar, afirma que a elaboração da ação civil pública contou com a participação de vários especialistas e de membros da comissão que preside, de modo a levantar pontos técnicos de sustentação e análise.

“Com essa ação, nós não estamos fazendo política. Estamos levantando uma questão técnica, uma vez que existe uma lei que foi criada, a Lei Rouanet, e que foi paralisada completamente por uma série de manobras administrativas”.
Ricardo Bacelar
Presidente da Comissão Especial de Cultura e Arte do Conselho Federal da OAB

Pontos principais

Ricardo Bacelar lista os principais pontos que regem o documento. O texto da ação, inclusive, traça todo o panorama da situação cultural do País no governo de Jair Bolsonaro, avaliando as posturas e decisões implementadas pela gestão federal. 

A primeira questão levantada diz respeito à indevida limitação quantitativa de novos projetos. Nesse sentido, Bacelar menciona que há uma portaria que interfere diretamente no ponto levantado.

A Lei Rouanet não limita a quantidade de análise de novos projetos. Nela, que é o instrumento normativo que valeria, não existe nenhum tipo de limitação. Quando há adequação do projeto, os requisitos são objetivos”, situa.

Outra variável importante é a limitação qualitativa e priorização de determinados segmentos culturais em detrimento de outros, algo também chancelado por uma portaria. “Essa portaria, em específico, diz que gozarão de prioridades as propostas referentes a patrimônio imaterial e atividades de museus e conservação de acervos. Assim, há uma priorização de alguns segmentos. Só que a lei, ao contrário, determina que não pode haver nenhum tipo de concentração por segmento. Todos têm o mesmo peso”, compara o advogado.

Legenda: Limitação qualitativa e priorização de determinados segmentos culturais frente a outros é outra variável apontada pela ação civil pública
Foto: José Leomar

Ele também menciona uma questão ilegal referente à limitação de aprovação de projetos por conta da pandemia. Conforme outra portaria do Governo Federal, as cidades e unidades federativas que estão em lockdown não terão os projetos avaliados, algo que, segundo Bacelar, desobedece os princípios delimitados na Lei Rouanet.

Por último, há um ponto referente à não-publicação do edital de convocação para o biênio 2021-2022 da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (Cnic). O colegiado, formado por 21 membros da sociedade civil – sendo sete titulares e 14 suplentes – é a terceira “instância” de aprovação dos Projetos Culturais pelo mecanismo do incentivo.

“São ilegalidades colocadas na ação civil pública, e reforço que, ao listá-las, nosso intuito não é politizar, ficar ao lado do Bolsonaro ou contra ele. Nossa posição é técnica”.
Ricardo Bacelar
Presidente da Comissão Especial de Cultura e Arte do Conselho Federal da OAB
 

“Hoje, no Brasil, estamos vivendo um período muito triste de polarização, de radicalismo. A Lei Rouanet é o maior instrumento de fomento à cultura do País. O que a OAB está fazendo é uma maneira de salvaguardar um direito que é de toda a sociedade brasileira. Todas as pessoas têm o direito de fruir os bens culturais, as linguagens artísticas. O que está acontecendo no Brasil é como se fosse uma operação para desmantelar o funcionamento da Lei”, completa.

Tentativas de diálogo

No que toca às tentativas de diálogo com a Secretaria Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura (Sefic), Ricardo Bacelar afirma que não há conversa por parte da pasta. O discurso levantado pela Secretaria, de acordo com ele, é “muito agressivo contra os artistas e os gestores culturais”.

Um relato do secretário da Cultura do Estado do Ceará, Fabiano Piúba, em reportagem do Diário do Nordeste publicada no último dia 16 de abril, ilustra bem a questão. Piúba contou que, durante um encontro virtual do Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes Estaduais de Cultura com o órgão federal na tarde de 12 de abril, o secretário especial da Cultura, Mário Frias, “passou na sala, nos cumprimentou e foi embora”.

Legenda: Uma das questões levantadas pela ação civil pública da OAB diz respeito à indevida limitação quantitativa de novos projetos aprovados pela Lei Rouanet
Foto: Anderson Duarte

Para além dessa postura do Governo Federal, Bacelar também afirma que a ação civil pública da OAB traz os números referentes à condução da Lei Rouanet neste momento. São 848 projetos e 1573 propostas parados.

“É para ser destinado mais de meio bilhão de reais para a cultura, e isso está fazendo falta na mesa não só dos artistas, mas também dos técnicos, das pessoas que trabalham no mercado cultural – a exemplo de iluminadores, coreógrafos, figurinistas. É uma indústria da cultura, temos muitos trabalhadores nesse segmento”, enumera.
Ricardo Bacelar
Presidente da Comissão Especial de Cultura e Arte do Conselho Federal da OAB

Não à toa, no documento da OAB também consta um estudo do Itaú Cultural cujos resultados apontam que, no ano passado, metade das pessoas que trabalham no setor cultural no Brasil perderam os empregos. “Muitos estão passando por necessidade por conta disso, dessa paralisação da Lei Rouanet. É muito dinheiro que foi represado”.

Próximos passos

O advogado ainda comenta uma publicação feita na manhã desta quarta-feira (12) pelo Secretário Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura, André Porciúncula, no Twitter. O post é referente às impressões dele sobre os processos realizados pela Ordem dos Advogados do Brasil no que toca à Lei Rouanet.

No texto, o gestor escreveu: “A OAB não está preocupada com o uso equilibrado dos recursos públicos, mas sim com a distribuição aleatória do dinheiro do contribuinte. Não é a primeira tentativa dela de tentar nos obrigar a aprovar os projetos, independente da nossa capacidade de auditoria”.

Ricardo Bacelar, por sua vez, analisa que a OAB não deseja fazer uma distribuição aleatória do dinheiro do contribuinte, conforme salientado por André Porciúncula. “Nós estamos pedindo na ação que o Conselho Nacional de Incentivo à Cultura seja chamado de volta. Então, não é um ato aleatório”, considera.

“Há outra coisa importante: a Lei Rouanet não diz que o sistema de cultura tem que andar conforme a estrutura administrativa. Se, por acaso, a Secretaria não tem estrutura de profissionais, que ela contrate pessoas para que tenham essa estrutura e possam dar seguimento à lei. Ou então, se não há conhecimento para fazer cultura, que se largue a pasta e entregue para uma pessoa que entenda. É simples”".
Ricardo Bacelar
Presidente da Comissão Especial de Cultura e Arte do Conselho Federal da OAB

Agora, o próximo passo deve ser aguardar o desenrolar do processo. Em xeque, está o que a Justiça Federal vai decidir diante dos pontos mencionados na ação civil pública e de toda a situação vivenciada pelo setor cultural no Brasil.

Bacelar defende o afastamento de uma discussão ideológica no que toca à pauta. “Uma pessoa que apoia a cultura não significa que ela seja comunista, não tem nada a ver uma coisa com a outra. Nós não podemos ficar dentro de uma caixinha. Falar que as pessoas que são defensoras da cultura são comunistas é um discurso vazio. Somos cidadãos brasileiros e temos que defender os nossos valores”, destaca.

Em sua visão, a interrupção da fruição dos bens culturais gera danos aos processos de construção da identidade brasileira, lesionando a dignidade do povo por conta do enfraquecimento dos vínculos e símbolos que traduzem o sentimento de pertencimento ao País. 

“A cultura deve ser sempre valorizada. Você pode até não gostar de determinado segmento, mas não é questão de gosto, e sim de liberdade de expressão e de obediência à Constituição. Nós não estamos pedindo nada que não esteja na Lei. Enquanto ela estiver valendo, a gente tem que obedecer à norma. Enquanto OAB, não estamos fazendo campanha política, mas, sim, o nosso papel, que é defender os interesses do Brasil. Fizemos uma peça técnica, e o juiz também vai responder tecnicamente. Vamos ver o que ele vai decidir”, conclui.
Ricardo Bacelar
Presidente da Comissão Especial de Cultura e Arte do Conselho Federal da OAB

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