Portaria do Governo Federal afeta propostas culturais em cidades com medidas restritivas; entenda

Resolução da Secretaria Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura foi publicada nesta sexta-feira (5), no Diário Oficial da União; medida valerá por 15 dias, podendo ser prorrogada ou suspensa

Escrito por Redação ,
Foto: Camila Lima

A Secretaria Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura publicou, nesta sexta-feira (5), no Diário Oficial da União, uma portaria que afeta propostas culturais desenvolvidas em cidades com medidas restritivas de circulação devido à alta de casos provocados pela pandemia de Covid-19.

“Considerando as diversas medidas de restrições de locomoção e de atividades econômicas, decretadas por estados e municípios, só serão analisadas e publicadas no Diário Oficial da União as propostas culturais que envolvam interação presencial com o público, cujo local da execução não esteja em ente federativo em que haja restrição de circulação, toque de recolher, lockdown ou outras ações que impeçam a execução do projeto”, expressa o texto do documento.

Ainda de acordo com a portaria, a medida entra em vigor a partir de hoje e valerá por 15 dias, a contar da data de publicação, podendo ser prorrogada ou suspensa, “a depender da manutenção ou não das medidas restritivas nos referidos entes da federação”.

Movimentações

Com a resolução, alguns deputados federais protocolaram decretos legislativos que preveem sustar a portaria. É o caso, por exemplo, de Alexandre Padilha (PT/SP), Jandira Feghali (PCdoB/RJ), Maria do Rosário (PT/RS), Benedita da Silva (PT/RJ) e Waldenor Pereira (PT/BA). 

No projeto de decreto destes três últimos parlamentares consta que “o expediente de editar Portarias foi utilizado pelo Governo Federal para promover uma verdadeira chantagem aos demais entes da Federação, ao se recusar a avaliar propostas de entes federativos que estejam com medidas de restrição ou lockdown”. 

O texto também destaca: “O governo federal desde 2019 tem uma postura contra a livre manifestação artística e cultural, inclusive promovendo censuras deliberadas, como é o caso do veto ao Instituto Vladimir Herzog à Lei Rouanet. Esta Portaria atinge a mesma toada, indo de encontro à harmonia entre os entes federados, o combate à pandemia e, ainda, os propósitos da Lei de Incentivo à Cultura”.

A Associação dos Produtores de Teatro também se manifestou. Em um informe, sublinhou: “A APTR compreende e apoia a adoção de medidas de restrição de atividades com o objetivo de proteger e salvar vidas neste momento crítico da pandemia, porém, entende como fundamental a não paralisação de análises e publicações de propostas e projetos, que somente prejudicarão as atividades que no futuro poderão ser executadas de forma plena”.

No mesmo documento, igualmente teceu detalhes a respeito do processo de captação de recursos para concretização de iniciativas. “Como tal portaria refere-se à inscrição inicial de projetos na Lei Federal de Incentivo à Cultura, isso significa interromper o fluxo do incentivo, o que dificulta a captação de recursos e, consequentemente, a realização de projetos necessários para a retomada do setor”.

“Vale lembrar que, pela norma, entre as fases de admissibilidade, homologação, publicação e autorização para captação e execução, o tempo mínimo é de 90 dias”, completa o texto.

Travamento da Lei Rouanet

Em entrevista ao Verso, Juliano Smith – consultor e produtor cultural da empresa Espaço Kombogó e integrante do Fórum de Produtores Culturais, tendo sido Coordenador do Programa Nacional de Apoio à Cultura da Secretaria Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura (Pronac/Sefic) e Coordenador de Admissibilidade de Propostas/Sefic no Ministério da Cultura – explica que, em termos práticos, a medida significa mais um travamento da Lei Rouanet.

“A portaria cancela as análises das propostas, assim como sua admissibilidade em projeto e consequentemente a publicação no Diário Oficial, isso não faz sentido, ainda mais com uma classe que vem sendo prejudicada desde o início da pandemia", afirma. “A assinatura da proposta é para ela se transformar em projeto. Então, na real, se a gente ler bem ao pé da letra o que está dizendo na portaria, as propostas não chegarão a ser nem transformadas em projetos culturais se elas estiverem dentro do critério impeditivo”.

Segundo ele, ao fazer uma contextualização, já existe um travamento dos projetos. “O Secretário Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura, André Porciuncula, está acumulando na mesa dele inúmeros projetos, sendo que alguns  que eu acompanho chegaram a perder cinco milhões, cada um, de patrocínio simplesmente porque ele não assinou e, portanto, não puderam ser publicados”, completa.

Juliano situa ainda que a Lei Aldir Blanc, construída de forma coletiva por políticos de vários partidos e membros da sociedade civil,  regulamentada em agosto do ano passado pelo Governo Federal, oxigenou o setor cultural, tendo sido fundamental para trabalhadores e trabalhadoras da área. Contudo, ela ainda não foi suficiente para superar as dificuldades vivenciadas na área.

“A portaria foi uma forma de disputa de poder. O Governo Federal critica a todo momento a autonomia dos estados e o isolamento social, principalmente o lockdown, de chantageá-los usando a a cultura para isso, ou seja, os Estados que mantém essas medidas seriam os 'responsáveis' pelo bloqueio dos projetos. Vale ressaltar que a Lei Rouanet não pode ser usada como uma barganha, uma chantagem do governo,  trata-se de uma conquista da área cultural, com todas as falhas que possui, mas ela ainda é a principal política cultural do País”, considera.

Histórico

Em dezembro do ano passado, a portaria nº 24 da Secretaria Especial da Cultura do Ministério do Turismo também incidiu sobre iniciativas culturais. Nela, projetos que visam ao Patrimônio Cultural material e imaterial teriam prioridade na captação de recursos via lei de incentivo fiscal.

De acordo com a Secretaria, um dos objetivos da medida é a preservação do Patrimônio Cultural, argumentando que, pela lei, são passíveis de incentivo projetos que têm como escopo a “construção, formação, organização, manutenção, ampliação e equipamento de museus, bibliotecas, arquivos e outras organizações culturais, bem como coleções e acervos”.

Juliano Smith enxerga a Rouanet como a Lei de incentivo fiscal mais transparente que existe na esfera política nacional. “Além disso, é o único incentivo fiscal que disponibiliza as informações como quais as empresas que patrocinaram, os valores, os projetos patrocinados e ainda retorna valor maior do que o investido aos cofres públicos em forma de impostos, tendo em vista que tudo que é fomentado pela Rouanet para ser pago tem que ser feito por meio de notas fiscais. E, na emissão dessas notas, tudo isso é revestido em impostos e volta para os cofres públicos, além de gerar trabalho e renda, movimentando a economia do país”, detalha.

“É uma cadeia, que movimenta desde um estabelecimento que vende refeição; passagens e hospedagens; o turismo, de uma forma geral. São muitos profissionais e pessoas autônomas que têm tão pouco recurso”.

Interrupção

Consultora e Captadora de Recursos do Ação Humanitária, Beatriz Gurgel sublinha que a portaria publicada nesta sexta-feira (5) interrompe o processo inicial de solicitação da lei de incentivo à cultura. 

“Não se justifica bloquear esse fluxo com a alegação de medidas restritivas ou lockdown.  As propostas enviadas agora não serão projetos executados neste semestre. Há uma série de etapas no processo de aprovação dos projetos até estarem aptos para captar recursos junto às empresas. E  esse processo de captação pode demorar até dois anos”, dimensiona.

Ela também defende que é necessário ter propostas e projetos tramitando normalmente neste semestre dentro do Ministério do Turismo para haver novos projetos para o Ceará. 

“Uma possível consequência dessa interrupção do fluxo da burocracia neste momento é um apagão de novos projetos culturais, prejudicando ainda mais o setor social, cultural e de eventos do  Estado”, percebe.

Algo também refletido na fala de Juliano Smith. De acordo com ele, medidas assim demonstram que o setor cultural sempre fica numa posição de negociação. “Veja que, com a pandemia, houve a emancipação dos Estados, que puderam tratar de forma separada a questão do coronavírus. Isso teve um rasgo muito grande com o presidente e, desde então, ele busca medidas que visem mostrar o poder dele”, avalia.

“Nisso, a cultura fica ao bel-prazer do presidente e dos gestores ligados a ele, no meio dessa vingança política. A política pública cultural acaba virando uma barganha e quem sofre com isso são os trabalhadores e trabalhadoras da área, impedidos tanto de trabalhar quanto de sonhar, o que é muito grave”, conclui.

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