O mais antigo do Benfica, Bar do Seu Nonato simboliza a tradição boêmia e política do bairro
A casa testemunhou importantes acontecimentos na história do Brasil, como a repressão da ditadura militar, e permanece como o espaço de clientes que valorizam a amizade
Se o Benfica fosse um país, a instituição bar teria feriado nacional. Na trajetória do bairro, inúmeros bares guardam o carinho de muitos cearenses. O clima bucólico, a presença efetiva de universidades nas redondezas, a efervescência intelectual e boêmia. Estes e outros fatores demarcam o caráter diverso deste lado singular de Fortaleza.
Assim pensam os clientes de um tesouro que representa esta cultura do Benfica. Há 62 anos, de domingo a domingo, o Bar do Seu Nonato mantém portas abertas à amizade. Naquele balcão circula atmosfera única. A casa preserva as marcas do tempo, salvaguardando cada detalhe construído pelo proprietário.
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O protagonista desta rica trajetória, Valmir Toca Raimundo Nonato de Oliveira, o Seu Nonato, anda mais caseiro nos últimos anos. Aos 88 anos, com o preocupante contexto pandêmico, o patriarca deixou o legado em mãos certas. Enéas (52) já trabalhava com o pai e hoje lidera a missão de preservar esta relíquia da cidade.
"É uma forma de manter essa história de pé, às gerações que virão. E essa relação com o tempo é muito importante. Infelizmente, Fortaleza não tem memória. Você derruba um prédio na calada da noite. Fica por isso mesmo”, adverte o comerciante.
O comércio de bar é uma marca da família. Seu Nonato é irmão de Chaguinha, ícone dos bares tradicionais de Fortaleza. Infelizmente, Chaguinha nos deixou em 2021. Ambos trabalharam na mesma rua por mais de 50 anos, algo inédito quando o assunto é papo de balcão. Cada um com sua forma particular de atender e cativar a clientela.
Se essa rua falasse
A ventura dos irmãos remonta ao fim dos anos 1950, quando estes piauienses escolheram Fortaleza como casa. E quis o destino que essa jornada tenha sido escrita no coração do Benfica, ajudando a construir o imaginário afetivo e etílico em torno da região.
“Chaguinha veio em 1957 para Fortaleza. Abriu o bar 'A Batalhense' e um ano depois trouxe papai. Trabalharam juntos por dois anos lá. Apareceu esse ponto onde estamos até hoje e decidiram se tornaram sócios”, recupera Enéas.
A sociedade foi desfeita, mas a relação entre os irmãos se manteve fraterna. Com o fim da parceria, Chaguinha vende sua parte e Nonato investe no próprio negócio. “Eles tinham o mesmo perfil. Muitos sérios. Papai era mais 'light', lógico. Deu certo. Ambos se tornaram comerciantes queridos, respeitados no Benfica e em Fortaleza. Você fala em Seu Nonato e Chaguinha todo mundo conhece”, assume o familiar.
Assim, o Bar do Seu Nonato é hoje a continuidade deste sonho. Nestas seis décadas, a casa testemunhou as mudanças do bairro, a consolidação da Universidade Federal do Ceará (UFC) e o encontro de estudantes, professores, poetas, artistas, intelectuais e toda qualidade de apaixonado por uns dedos de prosa e garganta molhada.
Tradição política
A importância social do Bar do seu Nonato atravessa fatos determinantes no histórico do Brasil. Durante a ditadura militar (1964-1985), o comércio foi ponto de encontro de militantes políticos e toda uma geração de cearenses com esperança de dias melhores. Seu Nonato, conta Enéas, ajudou jovens militantes a escaparem da repressão.
“Aqui tinha uma porta, uma passagem para o terreno da UFC. Na maioria das casas sempre tinha uma passagem. E aqui, até os anos 1970 ainda existia. Então, rolavam os movimentos do movimento estudantil lá na Avenida da Universidade. O pessoal corria, entrava, passava por aqui e ia embora”, descreve o gestor acerca desse capítulo na vida do Benfica.
A tese "Entre copos, conversas e canções: um estilo boêmio de viver a cidade" (2012), de autoria da pesquisadora Daniele Costa da Silva, descreve o cenário efervescente desse momento. No bairro, coexistiam os cursos superiores da UFC, o Clube dos Estudantes Universitários (CEU) e os bares e lanchonetes que atendiam esse público com preços acessíveis. Um deles era o Bar do Seu Nonato.
"O 'Nonato' era (como ainda é) um 'boteco', com balcão e algumas mesas e cadeiras. Por sua proximidade com os prédios onde funcionavam os cursos de Arquitetura e de Física, concentrava parte dos alunos para um papo e/ou uma 'cachacinha'. Segundo Flávio Torres, estudante de Física nos anos 1960, 'a gente atravessava o muro, tinha um buraco no muro, você pulava e entrava por trás da bodega dele'", descreve trecho do estudo.
A autora ainda continua: "No caso da Bodega do Nonato, a proximidade com os espaços universitários, agregava outro público, de estudantes, poetas e de atores vinculados às atividades artísticas que principiavam a acontecer na universidade e seus espaços".
Reencontro inusitado
“Sempre tivemos essa relação. Apesar de ser um bar de esquerda, tem o pessoal da direita que frequenta e o pessoal se respeita. É uma bandeira que o papai sempre levantou. E faço questão de manter isso. Uma das coisas que ele se orgulha é de vir a patroa e a empregada aqui e serem tratadas da mesma forma”, descreve Enéas. E esse ambiente acolhedor, de respeito e cordialidade permitiu uma situação comovente.
Numa tarde de sábado, já final dos anos 1980, aconteceu o encontro de um militante e o ex-agente da repressão que o prendeu. Houve o reconhecimento, o ex-militar até falou de detalhes do dia da prisão. Naquela altura, já não havia inimizade. Um brinde e um abraço emocionado entre os dois selou o início de uma nova.
O personagem central desse episódio é o cantor, compositor e professor Rodger Rogério. Ícone da MPB, um dos nomes à frente do "Pessoal do Ceará", o mestre passou a frequentar o Nonato em 1964, quando ingressou no Instituto de Física da UFC.
"Naquele tempo era bodega, não era bar. Havia uma passagem quase secreta, lá por traz, onde hoje é o banheiro. Era uma ligação direta entre a Física e a bodega do seu Nonato. Em pouco tempo uma turma de estudantes de Física, Matemática, Química e Arquitetura já eram diaristas lá. Não esquecer os ovos cozidos, coloridos e o caldo de carne no amanhecer do dia", relembra com alegria.
Sobre o reecontro com o ex-agente no Bar do Seu Nonato, Rodger confirma o fato e assevera que tudo transcorreu amigavelmente. "É uma história muito boa. Pouco tempo depois nos reencontramos no seu Nonato. Entre umas e outras fizemos uma boa camaradagem".
Em setembro último, Rodger Rogério foi indenizado pelo Estado Do Ceará. A prisão na ditadura impediu o cearense de assumir um cargo público.
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“Muita gente escapou por aqui. E essa história deveria ser valorizada. Principalmente nesse momento em que vivemos. Enquanto o pessoal fica discutindo se é esse ou aquele candidato, estão esquecendo a coisa maior que são as relações humanas. Tá complicado. Hoje se odeia alguém por alguma coisa. Por orientação sexual, pelo time, pela política... O lance é ódio, se odiar. Barramos isso aqui”, divide Enéas.
Além de garantir intacta essa memória viva do Brasil, o herdeiro e gerente promete organizar o acervo do pai e deixar este material exposto na casa. O material inclui fotos de várias épocas, além de cartas enviadas pela mãe de Nonato e amigos exilados nos anos de repressão.
Enéas chegou a produzir um vídeo sobre os 50 anos do bar. Atualmente, uma curta-metragem está nos planos. “Importante aqui é o carinho, amizade e relação entre as pessoas. É essência da família do Bar do Seu Nonato. Têm diferentes linhas, mas todo mundo se respeita”.
Uma tarde no Seu Nonato
No quesito beliscar um tira-gosto, nada de cardápios rebuscados. O caldinho de carne é marca registrada do estabelecimento, uma receita desenvolvida (e guardada a muitas chaves) por Nonato. A iguaria é servida de quinta a domingo e dificilmente chega a sobrar na panela.
Como a filosofia do bar envolve comunhão e coletividade, outro dia especial da semana é a “gastronomia da segunda-feira". “O pessoal traz um prato de casa ou eu mesmo faço algo. E a turma almoça aqui. Petisco a turma traz, improvisa alguma coisa, descreve Enéas.
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Adentrar o comércio é um deleite para quem se interessa por cultura. A estrutura é a mesma de anos atrás. Estão ali os detalhes de mobília, fotografias, quadros, cartazes. O local é um personagem, com alma presente. A bomboniere dos tempos de mercearia, imagens de clientes antigos. Uma foto de Nonato datada de 1957, quando vislumbrou Fortaleza pela primeira vez.
Futebol, religiosidade, política e arte pulsam em cada detalhe. “Cada bar tem um perfil. Tem clientes que só são transeuntes e têm clientes que fazem parte da coisa, as quais são as famílias dos bares. E aqui é bar que tem família”, conta Enéas.
E algumas testemunhas dessa trajetória marcam presença. Numa bicada ou outra, os clientes Elísio Cartaxo e Fernando Benevides disputam uma partida de xadrez. Tem quem prefira curtir a tarde de pé, discutindo temas do cotidiano, caso do jornalista e radialista Salmito Campos.
Em outra parte do balcão, o professor Romeu Duarte divide observações pontuais sobre a entidade bar. Este cenário é embalado por uma trilha sonora impecável. Sentou no Bar do Seu Nonato é viajar ao som de rock, MPB, jazz... Em dias como o do sábado (o mais lotado da casa) sempre chega alguma fera do violão para recarregar a ternura e o clima acolhedor da boa música. “Coloca esse som aqui”, pede Romeu Duarte a Enéas. E a TV começa a tocar clássicos do pianista Jimmy Smith.
Arquiteto, urbanista e professor do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Ceará (UFC), Romeu Duarte conheceu o lugar quando ainda era estudante de Arquitetura. "Essa ideia de ser um lugar, território livre em que você pode dizer o que pensa. Tem quem pense diferente, mas é um espaço democrático. Ando por vários bares na cidade há muitos anos, mas aqui é um porto seguro. Fiz muitas amizades perenes aqui e espero continuar frequentando durante muito tempo”, compartilha.
“É uma confraria. Reúne amigos de muito tempo, inclusive gente que pensa diferente. Mas é uma coisa muito interessante, pois convivemos numa boa com as pessoas, apesar das diferenças”, conta o aposentado Fernando Benevides.
Outro personagem faz questão de externar o carinho com a casa. E Seu Sales fala emocionado, com lágrimas nos olhos. “Sinto orgulho, pois moro no Benfica há 40 anos. Sou representante comercial, ando muito. E onde eu ando falo do Bar do Seu Nonato. É em Jericoacoara, Sobral, em Santana... Não tem uma pessoa que não conheça o Bar do seu Nonato”, finaliza o cliente amigo.
A tarde se vai poética no horizonte. O trânsito do Benfica acelera no fim de tarde. Os parceiros de longa data permanecem para um novo gole ou debate acalorado. O Bar do Seu Nonato segue fazendo história, escrevendo uma jornada com muita estrada ainda pela frente.
Dedicamos esse texto à memória de José Pereira e aos amigos do Cantinho Acadêmico.
A série de matérias Conversa de Bar, publicada quinzenalmente, conta histórias da capital cearense pelas mesas da boemia