Ceará indeniza e pede desculpas a Rodger Rogério, impedido de assumir cargo de professor na ditadura

Músico cearense foi preso na década de 1960 após o regime militar associá-lo a um grupo militante de estudantes secundaristas

Escrito por Lívia Carvalho , livia.carvalho@svm.com.br
Legenda: Físico e músico, Rodger Rogério foi preso e sofreu perseguição política durante a ditadura militar
Foto: Igor de Melo

O ano era 1973. A segunda colocação no concurso público para ser professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) foi uma grande conquista para Rodger Rogério. O que ele não esperava, porém, é que seria impedido de assumir a vaga por ter sido preso na época da ditadura militar no Brasil.  

O dano que o cantor sofreu à época foi reconhecido pelo Governo do Ceará na última quarta-feira (31), quando a Comissão Especial de Anistia Wanda Sidou, vinculada à Secretaria da Proteção Social, Justiça, Cidadania, Mulheres e Direitos Humanos (SPS), concedeu parecer favorável a um pedido de desculpas público e à indenização em R$30 mil pelos prejuízos sofridos.  

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“Fazia tempo que não tinha esse sentimento que eu tive ontem, quase um fervor juvenil de pertencimento, de tá vendo que o Brasil, aos trancos e barrancos, apesar da situação atual, melhora. É claro que foi uma coisa simbólica que não apaga o que aconteceu, mas foi um gesto oficial”, declara Rodger.  

“O ato é simbólico porque o dano jamais vai ser reparado. Algumas pessoas passaram 10 anos presas, perderam emprego, sofreram transtornos causados pela perseguição, torturas. São marcas indeléveis, tanto para aqueles que foram presos e perseguidos, quanto pras famílias”, ressalta o presidente da Comissão, Leunan Gomes. 

A relatora do processo e assistente social, Elane Conde, afirma que a história de luta de artistas e militantes contra o regime militar, na época da ditatura, se reflete hoje nos direitos conquistados aos quais a população tem acesso atualmente.

“Rodger Rogério é uma referência na música cearense e um símbolo de luta contra a ditadura militar aqui no Ceará. Temos que passar a ter como referências de resistência contra esse regime as pessoas do nosso Estado. São muitas mulheres e homens cearenses que atuaram contra essa opressão, mas, infelizmente, conhecemos mais os nomes nacionais”.  
Elane Conde
assistente social

‘Ameaçaram jogar água na cela com fio elétrico’ 

Eternizado como integrante do "Pessoal do Ceará", a prisão e a perseguição política que sofreu durante o regime militar atravessa o trabalho de Rodger como cantor e acadêmico. Logo quando entrou na faculdade de Física da UFC, passou a integrar o Diretório Acadêmico do curso e a atuar no movimento estudantil.  

Aos 22 anos, passou mais de uma semana preso no 23º Batalhão de Caçadores, após ser acordado bruscamente por policiais dentro da própria casa. “Lá, me colocaram numa sela, incomunicável, e eu fiquei só pensando no que era aquilo, no que tava acontecendo. Ninguém me dizia nada”, conta. 

No Batalhão, Rodger foi colocado em uma cela "solitária" por ser acusado de ser “elemento de alta periculosidade”, conforme consta no relatório da Comissão.  

“Tinha três refeições por dia, era uma comida muito ruim.  Traziam no prato e eu tinha que comer com a mão, não tinha talher nem como lavar a mão. Eu tinha uma caixa de fósforo, aí fiz uma pazinha pra conseguir comer. Fui ameaçado. Um dia, ameaçaram jogar água na cela com fio elétrico”.  
Rodger Rogério
músico

No oitavo dia, o músico foi interrogado por quatro horas e ainda sofreu tortura psicológica pelos militares. De acordo com Rodger, as perguntas feitas eram desconexas e o acusavam de ser o líder de um grupo de estudantes secundaristas, do qual ele nem tinha conhecimento. Depois do interrogatório, ele foi liberado.  

Legenda: Rodger sofreu ainda com a censura das músicas
Foto: Divulgação

Anos de perseguição 

Mas a perseguição não parou aí. “Teve música censurada, coisinhas miúdas. Quando fomos gravar Cavalo Ferro, música do Fagner e Ricardo Bezerra, tinha um verso que dizia: ‘o Planalto Central, onde se decide o bem e o mal’. Eles censuraram, aí mudou pra ‘se divide’. Tem coisa que dá vontade de rir se não fossem tão infelizes. O medo acompanhava sempre”. 

Na década de 1970, já formado, Rodger fez concurso para ser professor da UFC, mas não chegou a ser empossado por aquele edital. 

“Soube que chamaram o primeiro, depois o terceiro, mas nunca me chamaram. Na reitoria, me informaram que o processo tinha desaparecido, não se sabia como e ficou por isso mesmo. Só consegui ser professor da UFC anos depois, já no governo Sarney”. 

Após viver esses anos de perseguição, Rodger entrou com o requerimento à Comissão para conseguir a indenização. O processo iniciou há 10 anos, em uma busca que envolveu a procura em arquivos públicos pelos documentos para comprovar a prisão, o não empossamento no concurso e outras ocorrências.  

“Tive a sorte de a minha prisão ter sido registrada no momento, porque muitas não eram. As pessoas eram presas assim, um sequestro”, relata.  

Comissão especial  

A Comissão Especial de Anistia foi criada em janeiro de 2002 e regulamentada pelo Decreto nº 27.242, de 5 de novembro de 2003. O grupo tem como objetivo indenizar ex-presos políticos no Ceará, com ressarcimentos de até R$30 mil. 

“O Ceará é o único Estado que tem uma comissão especial criada pelo governo estadual pra indenizar pessoas que foram presas ou perseguidas pela ditadura no Estado. Nós, da Comissão, recebemos os requerimentos para essa desculpa formal e, para a indenização, avaliamos os processos conforme as provas apresentadas”, explica Leunan.  

Em 2019, o decreto da Lei passou por uma reestruturação, já que a original previa um prazo para que os requerimentos fossem feitos. A partir daquele ano, aqueles que desejarem podem pedir a análise do processo em qualquer tempo.  

 

 

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