Jarid Arraes e o pulsar literário semeado no Cariri com vistas a fazer chover
Natural de Juazeiro do Norte, autora é presença confirmada na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) deste ano e brada: "Quero reparar o que me foi negado enquanto eu crescia"
Foi só trocar o "e" pelo "i", para soar mais feminino. No lugar de Jared - nome bíblico e bastante comum nos Estados Unidos - ficou Jarid. Jarid Arraes. "Meu avô, o cordelista e xilogravador Abraão Batista, que escolheu meu nome. Acho que ele só fez isso porque gosta de nomes diferentes mesmo. Essa parte não me contaram, mas é o que percebo observando como se chamam meus tios e meu próprio pai, Hamurabi", ri.
Na sequência, a escritora revela que o significado do substantivo próprio sob sua posse é "causador de contendas". Faz sentido. Caso adotemos o conceito de "contenda" como discussão, luta ou debate, conforme alguns dicionários, os caminhos alavancados por ela na estrada pessoal e profissional culminaram exatamente em ser balbúrdia, bem-vindo sopro de renovação e ousadia.
Jarid detém um dos trabalhos mais importantes do cordel no Brasil. São mais de 60 títulos publicados nesse segmento. Natural de Juazeiro do Norte, na região do Cariri, interior cearense, e radicada em São Paulo, é negra, trovadora, poeta e também autora dos livros "Um buraco com meu nome", "As Lendas de Dandara" e "Heroínas Negras Brasileiras". Em cada folha impressa e pensamento gestado, uma militância a ser desbravada, reflexo de uma história maior.
"Cresci lendo Literatura de Cordel. Depois, quando estava no início da adolescência, me interessei por poesia, que até hoje é meu estilo literário mais amado. Drummond, Ferreira Gullar, Manuel Bandeira, Leminski, Neruda, Augusto dos Anjos. E aí você pode botar uma lista enorme de homens e mais homens. Demorei muito tempo para ter acesso a livros de mulheres".
A partir do estreitamento com a internet, pesquisando e se aprofundando no ofício delas, principalmente negras, foi que seu horizonte mudou. "Conheci, por exemplo, Sylvia Plath, Anne Sexton. E minha primeira autora negra, Conceição Evaristo, junto com Esmeralda Ribeiro, Beatriz Nascimento e Miriam Alves, pelos 'Cadernos Negros'", enumera.
Esse debruçar inspirado, com o tempo, rendeu bons frutos, um deles anunciado nesta última semana. Trata-se da participação dela na programação oficial da 17ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), um dos mais importantes eventos dedicados à palavra no Brasil. "Estou profundamente emocionada por ser - até onde se sabe, pedi até uma pesquisa - a primeira mulher cordelista a estar naquele palco. Com certeza vou falar sobre isso e a respeito de como o cordel é literatura tanto qualquer outro estilo literário", considera.
Ímpeto
O desejo de manter vivo o gênero literário no qual mais se dedica a trabalhar definiu os rumos dos primeiros anos de Jarid enquanto profissional do verso. Sempre havia (há), contudo, uma preocupação no prelo: preservar apenas a parte da tradição, a estética do ato, e não os temas. "Quis trazer novos assuntos para o gênero, histórias que nunca vi contadas. Reparar o que me foi negado enquanto eu crescia".
Nesse sentido, o ímpeto para marcar a escrita negra e militante em brochura ou folheto foi fazer algo que pensa ser necessário, nunca antes encontrado. Genuíno.
"Se procuro uma história e tenho dificuldade de encontrá-la, então vou tentar escrevê-la, e isso sempre será mais do que sobre mim. Será sobre nós", afirma.
Não à toa, ao enxergar o mercado literário como "ridiculamente discriminador, no sentido de racista, machista, regionalista etc.", ela ainda sublinha ter um amor infinito pelo cordel, em vista de ser ele identidade de seu povo e da família paterna.
"Por que me debruço sobre esse gênero literário? Porque eu acredito que ele tem que sobreviver ao passado, precisa se reinventar. Tem que deixar no museu os cordéis sobre as sogras megeras, as mulheres traidoras e quengas, o gay de quem se debocha, os negros tratados com ridicularidade. Eu pude ver essa transformação. Meu trabalho é e inspira essa novidade", reflete.
Autonomia
A artista igualmente avalia que o referido gênero é o ápice da autonomia literária - levando em conta o formato de folheto. Ao produzir e publicar assim, não há dono. "Não se deve a editora nenhuma, não precisa de ninguém. Você manda e sempre vai mandar em si e na sua literatura", destaca.
"Se eu fosse curadora de eventos do livro, os stands de cordéis das Bienais contariam com cordelistas de antigas e novas gerações, com quem escreve cordel sobre peido, Lampião e heroínas negras. Porque é pra ser diverso, né? Pena que as pessoas não se reciclam, não pensam fora da caixa. Mas estou aqui aberta, sempre afirmando que o cordel é tão literatura quanto qualquer poesia e conto. E estarei no palco principal da Flip provando isso", reforça.
A feira, vale destacar, volverá os olhares com maior força sobre o sertão ao homenagear o escritor Euclides da Cunha (1866-1909). Nesse movimento, Jarid celebra o convite da curadora, Fernanda Diamant, para estar junto à ação, e justifica: "Ela queria essa visão 'refrescante' do sertão pelos olhos de alguém como eu. Aliás, não só do sertão, né? De nós, das nossas coisas, das nossas complexidades. Às vezes, não me sinto tão refrescada. Às vezes, sou puro mormaço. Mas, na escrita, tento fazer chover", confessa.
Com o primeiro livro de contos, "Redemoinho em dia quente", engatilhado para ser publicado em junho pelo selo Alfaguara, da Companhia das Letras, a cordelista segue, assim, demarcando, de forma simples, embora maiúscula, o espaço de tantas.
A nova obra, por exemplo, foi escrita sob a ótica de uma mulher caririense, englobando todas elas - jovens, velhas, crianças, de diferentes sexualidades, conflitos e contextos sociais. Fantásticas e metafóricas, reais e cruas, a seu modo. Mulheres.
“O poeta se posiciona com a palavra, que precisa ser coragem e conforto. No final das contas, ainda estou montando meus cordéis à mão, enquanto assisto a séries e tendo ignorar o problema que criei no pulso por montar muitos cordéis. Ainda estou vendendo meus livros na minha própria lojinha online e levando sozinha aos Correios. Tudo isso vai coexistir”.
>> Saiba Mais
A 17ª edição da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), marcada para acontecer entre os dias 10 e 14 de julho, no Rio de Janeiro, terá como homenageado Euclides da Cunha. Autor de uma das mais representativas obras de não-ficção brasileira, "Os Sertões", seu legado deve manter vivas as discussões sobre a temática, cada vez mais revisitada em tempos contemporâneos
>> Opinião: "Jarid renova e ressignifica a poesia brasileira"
*Gisa Carvalho
A obra de Jarid Arraes configura para a literatura brasileira uma espécie de reconfiguração. Ela traz para um cenário conservador uma proposta de rompimento com o cânone masculino, branco, acadêmico. Ela, mulher negra, poeta cordelista, jovem, militante, carrega em sua história muito daquilo que a historiografia da literatura tenta silenciar. Acontece que não estão conseguindo. Jarid entrou no mercado editorial pelas vias das editoras independentes, editou e imprimiu seus próprios folhetos, e em breve publicará pela Companhia das Letras.
Mas para chegar até aqui, ela precisou incomodar muita gente que revira os olhos para aceitar o cordel como poesia, a mulher negra como protagonista e como autora. No universo do cordel, que geralmente é uma narrativa marginalizada pela alcunha de "popular", também tentaram invisibilizá-la. Contudo, a ausência dela nos eventos não se justifica mais. Porque o cordel vai permanecer é pelo movimento trazido pelas mulheres, pelas temáticas de resistência, que conferem atualidade ao gênero.
*Jornalista e Doutora em Comunicação com pesquisa sobre Poesia de Cordel