BBB e Jogo da Discórdia: “A mídia lucra em cima desses conflitos, por que iria acabar com eles?”
Especialistas em saúde mental e comunicação classificam como violenta a dinâmica do reality
Entre a ofensa moral e um balde de água suja na cabeça, desenhou-se a estratégia midiática para aumentar a audiência desta edição do Big Brother Brasil. Após mais de um mês de veiculação do programa, somente na última semana ele alcançou o engajamento nas redes sociais equiparável aos dois anos anteriores. Mas isso às custas de um “tribunal”, com direito a violência física, e que levou inclusive à desclassificação de uma participante.
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O Jogo da Discórdia, dinâmica que já passou por diferentes formatos no reality, ganhou elementos que o aproximaram dos julgamentos da internet, e, de acordo com estudiosas da Comunicação, isso reflete um diálogo entre os interesses da produção do programa e as expectativas dos patrocinadores e espectadores.
“O BBB 22 não está tendo o mesmo sucesso, e isso é tão visível que até algumas festas desta edição não estão sendo patrocinadas por grandes marcas. Para ir em busca desses índices de audiência, a emissora apelou para estratégias de humilhação que eram típicas do jogo da televisão dos anos 1990”, introduz a professora do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará (UFC), Naiana Rodrigues.
Doutoranda na Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora do Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho da mesma instituição, ela avalia o formato da dinâmica como “uma das coisas mais horrendas que a gente já teve na televisão no século XXI”. Isso porque, como observa Naiana, a participante Natália, além de sofrer agressão física de Maria com um balde na cabeça, estava sendo julgada por todos pelo que era, pelas atitudes e não pelo ethos de jogadora.
“Eles estão apostando numa linha muito tênue que beira a violência e certamente estimula a mesma. Neste caso, é preciso cuidado porque tanto isto pode levar uma parte do público a se enxergar no direito de reagir com a mesma violência para tratar dos conflitos diários, quanto também pode ser percebida como antiética e inescrupulosa por uma parcela que enxergue irresponsabilidade neste tipo de entretenimento”, aponta Lígia Sales, jornalista, mestre em semiótica e pesquisadora de cultura digital.
Cancelamento e limites éticos
Nesta perspectiva, a psicóloga clínica e mestra em Psicologia Social pela UFC, Fernanda Carvalho, lista aproximações concretas entre o comportamento humano no jogo e no cotidiano virtual fora dele.
“A humilhação coletiva é traduzida para as redes sociais como cancelamento; a ausência de empatia, no ambiente digital vem como uma espécie de ‘esquecimento’ de que se fala a um ser humano por trás das imagens. No Jogo da Discórdia, a complexidade de um ser é abreviada sob a capa de ‘jogador’, enquanto nas redes sociais, ela é formatada para caber em um perfil”.
Dar destino à raiva de forma desadequada também é um ponto em comum entre estes ‘tribunais’, segundo Fernanda. “Ambos são rápidos em julgar e parecem cegos às nuances. Além disso, opinam de modo quase reativo, como se recebessem um estímulo e corressem à reação. Não agem, apenas reagem. Não se permitem o tempo para compreender, analisar, ponderar”, enfatiza a psicóloga.
Lígia Sales entende que há também nisso uma intenção midiática de despertar os instintos e reações emocionais mais primitivas do nosso cérebro.
“No inconsciente, o desejo pela novidade, além da sensação agradável que a descarga de hormônios de prazer liberam quando nos deparamos com o conflito dos outros causa mesmo uma espécie de prazer mórbido. Embora nem sempre a pessoa admita, é comum que nosso cérebro sinta prazer em acompanhar e assistir sofrimentos e conflitos que não são seus. É como se, no fundo, aquilo fosse uma espécie de compensação para todos os outros problemas dos quais não podemos fugir’”.
E é bem aqui que os valores éticos entram em conflito, sendo difícil até estabelecer limites além dos previstos em legislação, como apontam as estudiosas. “A emissora não pode estimular que os participantes cometam crimes à luz do nosso código legal, mas a respeito de aspectos morais, que seria um código deontológico, não existe limite, a gente está vendo que não existe”, analisa a professora Naiana Rodrigues.
“Ninguém ali podia se levantar e dizer: eu não concordo com esse jogo, eu não vou participar. Essa pessoa poderia ser eliminada, porque ela assinou um contrato dizendo que participaria de todas as atividades do programa. Então mesmo que aquilo vá contra os princípios, os valores que aquela pessoa tem, ela tem que encontrar outras formas de reagir, outras maneiras de verbalizar, porque existe ali um controle”, completa.
Saúde mental e alternativas comunicacionais
A este contexto, a psicóloga Fernanda Carvalho acrescenta que existe a mobilização de uma espécie de “modo de sobrevivência” na psique dos participantes do BBB, como se precisassem se defender de ataques e lidar rapidamente com surpresas que minam a sensação de segurança e estabilidade. “É algo extremamente estressante”, avalia.
No caso do ímpeto da raiva, ela sugere que se saia fisicamente da situação e ofereça empatia a si. “É preciso entender o que está acontecendo com você. Há um desconforto, mas o que é exatamente? Sente-se frustrado? Ou seria triste? Ou envergonhado? É necessário entender o que sente e a que necessidade estes sentimentos estão ligados. Acolher-se. Depois, será necessário processar o que aconteceu, entendendo o que está por trás da raiva para trazer ao mundo um pedido de contribuição ao outro”, considera.
Já no que diz respeito aos processos comunicacionais envolvidos, Lígia avalia que o único tipo aliado da sociedade é o modelo de comunicação não violenta, no qual as temáticas de conflito sociais, raciais e outras são abordadas de forma intencional e assertiva.
“Simplesmente colocar pessoas diferentes dentro do mesmo espaço e supor que isso gere, por si só, educação civil é hipocrisia. Nunca foi a intenção do mercado, que obviamente está ali para lucrar. Ou seja, não existe a intenção real de quebrar paradigmas ou preconceitos: primeiro, a mídia lucra em cima desses conflitos, por que iria querer acabar com eles?; segundo, a forma como oferece o espaço para o debate é fictícia e violenta, tal qual as arenas romanas. Está ali para entreter e arrancar sangue. Não para resolver”, critica.
A pesquisadora Naiana Rodrigues, por sua vez, entende que ao mesmo tempo em que as plataformas dão vazão aos cancelamentos, há influenciadores que vão na contramão e se utilizam desses fenômenos para construir resistências, ainda que os algoritmos não os favoreçam na mesma medida.
“Discursos políticos de engajamento e que valorizam os direitos humanos são positivos. Mas essas mídias precisam de regulação, porque às vezes esses discursos polêmicos, extremos acabam sendo mais visíveis do que os pedagógicos e construtivos”, analisa, projetando saídas.