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Julgamento de prefeito detalha interferência do Comando Vermelho na eleição de Santa Quitéria (CE)

O Tribunal confirmou a cassação dos mandatos do prefeito eleito Braguinha e do vice Gardel Padeiro nesta terça-feira (1º)

Escrito por
Luana Barros luana.barros@svm.com.br
Foto aérea da cidade de Santa Quitéria, onde o prefeito Braguinha foi cassado por suspeita de envolvimento com facção criminosa
Legenda: O julgamento do TRE-CE detalhou como foi a atuação do Comando Vermelho para interferir na eleição
Foto: Divulgação/Aprece

"O caso mais emblemático, grave e ultrajante que a Justiça Eleitoral deste Estado já se deparou", definiu o desembargador eleitoral Luciano Nunes Maia Freire. Ele é o relator da Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) contra o prefeito eleito de Santa Quitéria, José Braga Barrozo, o Braguinha (PSB), e do vice Gardel Padeiro (PP). 

O julgamento do caso pelo Tribunal Regional Eleitoral do Ceará (TRE-CE), nesta terça-feira (1º), não apenas confirmou a cassação de Braguinha e Gardel Padeiro, mas também trouxe detalhes de como a facção criminosa Comando Vermelho (CV) atuou para interferir no resultado da eleição municipal de Santa Quitéria em 2024. 

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Quebra de veículos, atentado a residências, agressões físicas e até expulsão da cidade estavam no rol das ameaças feitas por supostos integrantes da facção. As ameaças a eleitores e a cabos eleitorais do então candidato de oposição, Tomás Figueiredo (MDB), foram feitas por meio de pichações e ligações telefônicas, com a intenção de esvaziar os atos de campanha da candidatura oposicionista. 

As intimidações não ficaram restritas aos apoiadores de Figueiredo, sendo feitas também a comerciantes, que não poderiam abrir os estabelecimentos nos dias e locais dos atos do candidato opositor, e até mesmo à Justiça Eleitoral, com o Cartório Eleitoral da cidade sendo alvo de ameaças de atentado e os servidores, de assassinatos. 

As informações foram detalhadas pelo relator do processo, desembargador eleitoral Luciano Nunes Maia Freire, durante a leitura do voto que confirmou a condenação de Braguinha e Gardel Padeiro à cassação e à inelegibilidade por oito anos. Os desembargadores seguiram, por unanimidade, o relator, que também determinou a realização de novas eleições na cidade

Como o Comando Vermelho atuou em Santa Quitéria?

Durante a leitura do voto, o desembargador eleitoral elencou quais foram as condutas criminosas orquestradas pelo Comando Vermelho durante a campanha eleitoral de Santa Quitéria e de que forma isso teria ocasionado o favorecimento da candidatura de Braguinha. 

Ele falou ainda sobre como as ações foram escalonando à medida que a data da votação, no dia 5 de outubro, se aproximava, a partir do depoimento de testemunhas, inclusive policiais, que vivenciaram diretamente o "ambiente eleitoral nocivo", conforme definição do desembargador eleitoral.

Luciano Nunes Maia Freire detalhou ainda como foi a postura de Braguinha e Gardel Padeiro durante o período: "Anuíram com tudo que aconteceu", disse. Os dois eram candidatos à reeleição, portanto estavam nos cargos de prefeito e vice durante a campanha eleitoral. 

O desembargador eleitoral reforçou que as condutas revelam "a estratégia de esvaziamento dos atos de campanha do então candidato Tomás Figueiredo". 

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"Existem provas robustas de que foi missão do Comando Vermelho favorecer a chapa de José Braga Barroso e Francisco Gardel nas eleições de 2024, mediante toda aquela criminalidade com coação e ameaça a eleitores que demonstrassem apoio a adversários políticos. Nem mesmo os atos de campanha puderam ser livremente realizados pela chapa opositora", destacou. 

Carro de luxo na Rocinha

Em julho de 2024, dois funcionários comissionados da Prefeitura de Santa Quitéria foram até Fortaleza para comprar um carro. Segundo investigações da Polícia Civil do Ceará, o carro da marca Mitsubishi, contendo R$ 1,5 milhão em dinheiro, saiu do município cearense e foi levado à comunidade da Rocinha, no Rio de Janeiro. 

Lá, ele foi entregue "ao criminoso conhecido como Paulinho Maluco, que seria um dos líderes do Comando Vermelho", relatou o desembargador eleitoral. Paulinho Maluco foi inclusive citado em muitas pichações com ameaças feitas em muros de bairros de Santa Quitéria. 

No processo, são citadas inscrições com conteúdos como "Se apoia Tomás, vai entrar no problema com a tropa do Paulinho Maluco". Em outras, é ele que "assina" a ameaça: "Quem apoia Tomás, vai entrar no problema e vai entrar na bala. Assinado Paulinho Maluco".

O veículo foi encontrado na residência do traficante durante operação realizada em conjunto pelas policiais militares do Rio de Janeiro e do Ceará

Durante o voto, o desembargador eleitoral citou inclusive o voo e os assentos em que os dois comissionados voltaram a Fortaleza. Um deles atuava como coordenador administrativo de gestão do Gabinete do Prefeito e o outro era assessor técnico do Departamento de Trânsito da Prefeitura de Santa Quitéria. 

Os dois também são citados no processo como partes interessadas, são Francisco Edineudo de Lima Ferreira e Francisco Leandro Farias de Mesquita, respectivamente. Leandro inclusive atuou como coordenador de campanha de Braguinha. Luciano Nunes Maia Freire citou que ambos possuíam relações "estreitas" com o prefeito cassado. 

"A finalidade eleitoral da viagem é evidente, é explícita", disse Freire no voto, ao determinar a inelegibilidade de Francisco Leandro Farias de Mesquita. "(Ele) viajou na condição de coordenador de marketing da campanha, demonstrando estreita ligação com o prefeito, não só pelos cargos ocupados, mas pela enorme quantidade de ligações e mensagens trocadas no período eleitoral".

"Segundo as investigações, cerca de um mês depois da entrega do carro de luxo, a facção iniciou sua atuação no município, com atos violentos contra eleitores e apoiadores do candidato de oposição, Tomás Figueiredo".
Luciano Nunes Maia Freire
Desembargador eleitoral

R$ 300 mil para 'tumultuar' campanha eleitoral

O Comando Vermelho teria, então, ordenado a viagem de Daniel Claudino, conhecido como "DA30", para "tumultuar a campanha de Tomás Figueiredo". Para isso, ele receberia mais de R$ 300 mil. A informação, dada por Freire, foi tirada de depoimento de Marco Aurélio Frias de França, uma das autoridades policiais envolvidas na investigação. 

No celular de Daniel Claudino foram encontrados áudios com orientações para as pichações, que além de detalhar as ameaças a potenciais eleitores de Tomás Figueiredo também reforçava a necessidade de ocultar o nome de Braguinha. Também havia o nome das pessoas que deveriam ser expulsas caso não mudassem o voto. 

Daniel Claudino foi identificado e localizado pela inteligência da Polícia Civil. Ele foi detido quando estava hospedado no mesmo hotel onde se encontravam o promotor e o juiz responsáveis pela comarca de Santa Quitéria. 

Ameaças a eleitores em Santa Quitéria

Os eleitores ou potenciais eleitores de Tomás Figueiredo eram ameaçados em pichações espalhados pela cidade — embora, no processo, sejam citados bairros onde existiam mais ocorrências, como Flores e Pereiro. Neles, era possível ler frases como:

  • "Se apoia o Tomás, vai entrar no problema com a tropa do Paulinho Maluco"; 
  • "Fora Tomás 15 (assinado) CV"; 
  • "Sair nós, vem e bota fogo tudo"; 
  • "Vai entrar no problema, fora Tomás Figueiredo"; 
  • "Quem apoia tomás vai entrar no problema e vai entrar na bala, assinado Paulinho Maluco"; e
  • "Bala no 15". 

Todas as pichações foram citadas pelo desembargador eleitoral Luciano Nunes Maia Freire. Ele disse que as fotografias e capturas de tela colhidas por agentes de segurança "não deixam qualquer margem de dúvida" de que as pichações ocorreram. 

Contudo, além das pichações, também foram registradas ligações telefônicas e mensagens com ameaças tanto a eleitores como a cabos eleitorais do candidato opositor a Braguinha e, até mesmo, a donos de estabelecimentos comerciais próximos dos locais de ato de Figueiredo. 

Um homem identificado como Cícero no processo recebeu uma mensagem em que o suposto integrante do CV dizia que a facção ia "focar nos cabos eleitorais" de Tomás Figueiredo. "Se não quiser problema com o crime da cidade, o senhor fica de boa, fica de fora", dizia o texto. 

O chefe do Cartório Eleitoral recebeu denúncias de eleitores que teriam recebido ameaças por ligações telefônicas anônimas. As coações iam desde ameaça de agressão a quem usasse camisas com referência a Tomás Figueiredo até a expulsão das residências e da cidade, "sob pena de bala". 

"Na reta final da campanha, os eleitores de Tomás vinham recebendo ordem de desocupação de suas residências sob pena de 'bala na cara'", relatou Freire. Os integrantes do Comando Vermelho estariam, inclusive, monitorando as redes sociais dos moradores de Santa Quitéria. 

"(Haviam) conversas de integrantes da facção comando vermelho contendo ordens de expulsão de Santa Quitéria a eleitores que se manifestassem nas redes sociais em prol da candidatura de Tomás Figueiredo. E ordens de destruição de veículos com adesivos do aludido candidato bem como a prática de atentados contra estabelecimentos comerciais que abrigassem eleitores durante os eventos promovidos por Tomás Figueiredo". 

As informações foram encontradas pela Polícia Civil e estão em relatórios realizados após perícia nos telefones apreendidos pelas autoridades policiais. 

Nos casos dos estabelecimentos comerciais, eram emitidas ordens para que eles fechassem quando houvesse atos de campanha de Tomás Figueiredo. Aquelas que se mantivessem abertas, ou que acolhesse as "concentrações políticas" dos apoiadores do candidato do MDB, seria depredadas. 

Ameaça à Justiça Eleitoral

O Cartório Eleitoral, onde funciona a 54ª Zona Eleitoral do Ceará, também foi alvo de coação de integrantes do Comando Vermelho. No dia 18 de setembro, uma funcionária do cartório atendeu uma ligação com teor intimidatório. 

A intimidação dizia que o local "seria atacado e os servidores seriam assassinados" caso a Justiça Eleitoral não "parasse com as decisões contra os 'irmãos' do Comando Vermelho". 

Uma segunda ligação foi feita, atendida desta vez por um funcionário, em que o suposto faccionado o desafiava a "colocar a cara para fora" do prédio do cartório eleitoral. 

Segundo o delegado Francisco José Martins da Silva, cujo depoimento também foi citado na sessão do TRE-CE, foi identificado que a ligação com a ameaça ao Cartório Eleitoral de Santa Quitéria partiu de presídio onde estão presos integrantes do CV. 

"Anuência" de Braguinha e do vice

Durante o voto, o desembargador eleitoral Luciano Nunes Maia Freire falou da argumentação da defesa, de que não haveria provas da participação de Braguinha e do vice, Gardel Padeiro, nas condutas criminosas. 

Durante a sessão, o advogado Valdir Filho, que fez a defesa de Braguinha, reforçou que não existiria "nexo de causalidade". "Não é a escassez de prova, nós não temos prova. Desde a demanda penal, que se diz com ênfase, o nexo de causalidade não existe. (...) Não há prova, tanto é que na instrução do 1º grau nos foram negadas todas as provas produzidas", disse.

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O magistrado, no entanto, compreendeu de forma diferente e disse ver "um forte elo, sobretudo do prefeito, no que tange aos crimes praticados, já que tudo foi feito na intenção de lhe beneficiar". 

Um dos pontos destacados pelo desembargador eleitoral foi a postura adotada por Braguinha e Gardel quando houve intimidações contra os moradores de Santa Quitéria, sobretudo aqueles que apoiavam Tomás Figueiredo. 

"Inclusive, José Braga Barrozo, enquanto chefe do Executivo municipal, tinha o dever, a obrigação de procurar as autoridades públicas para tentar minimizar aquele cenário de criminalidade, já que ele alega que não teria qualquer participação, para minimizar o cenário e cessar os ataques que a população vinha sofrendo do Comando Vermelho".
Luciano Nunes Maia Freire
Desembargador eleitoral

Contudo, Braguinha "nada fez", continuou Freire. "O mesmo se aplica ao vice-prefeito, que se manteve inerte em clara e evidente anuência a toda a criminalidade perpetrada contra a população, notadamente aos eleitores do Tomás Figueiredo", disse.

Novas eleições em Santa Quitéria

Ao encerrar o voto, o desembargador Luciano Nunes Maia Freire chamou as condutas criminosas ocorridas durante a campanha eleitoral de Santa Quitéria de "um verdadeiro ultraje ao sistema democrático de Santa Quitéria e, porque não dizer, à democracia cearense e brasileira".

O magistrado afirmou que a vontade do eleitor foi "absolutamente corrompida pelos atos daquela organização criminosa" e que a "normalidade e lisura do processo eleitoral" foram afetados. 

"Diante desse cenário abominável, de criminalidade, é evidente que o ambiente eleitoral ficou excessivamente nocivo naquele município, o que permite concluir que o pleito encontra-se viciado e totalmente divorciado do verdadeiro sistema democrático".
Luciano Nunes Maia Freire
Desembargador eleitoral

O voto dele foi seguido, de forma unânime, pelos demais desembargadores eleitorais da Corte. Os mandatos de Braguinha e Gardel Padeiro foram cassados e os dois ficam inelegíveis por oito anos. 

Além disso, foi determinada a realização de novas eleições para a Prefeitura de Santa Quitéria. 

Ainda cabem recursos tanto ao TRE-CE como ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Ao PontoPoder, a defesa da chapa eleita em Santa Quitéria irá recorrer da decisão "confiante na inexistência de abuso de poder por parte de José Braga Barroso e Francisco Gardel". 

"A defesa espera a disponibilização do acórdão para decidir qual será o melhor encaminhamento a ser dado ao processo. Reitera-se a confiança nas questões prejudiciais e de mérito prequestionadas no autos", completa.

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