Baú da Política: 140 anos antes da CPI da Enel, crise de energia que fechava comércio pautou a Alece
Desmandos de companhia inglesa responsável pela iluminação pública motivaram a chamada "Greve do Gás".
Iluminação pública deficitária, cobranças abusivas e cortes arbitrários. A gama de problemas, que pode parecer recente, era o cenário encontrado em Fortaleza no ano de 1884. Foi então que, mais de um século antes de conceber duas CPIs nesse âmbito, a Assembleia Legislativa do Ceará (Alece) precisou atuar contra a crise de energia que obrigava o comércio a fechar mais cedo.
No século XIX, a iluminação de Fortaleza era feita por meio de lampiões. Os equipamentos utilizavam azeite de peixe e algodão como combustível para a queima. Esse processo durou entre 1834 e 1866.
Por volta de 1867, a iluminação pública foi implantada como serviço e passou a ser feita por gás hidrogenado. Naquela época, a distribuição estava a cargo da inglesa Ceará Gás Company Limited, que anos depois passou a cometer uma série de abusos contra os consumidores, como apontam informações do arquivo do Memorial Deputado Pontes Neto da Alece (Malce).
A pauta entrou de vez na ordem do dia da então Assembleia Legislativa Provincial em 1884, quando o serviço ficou comprometido a ponto de obrigar parte do comércio fortalezense a fechar as portas às 18h. A partir disso, o setor deixou de usar a iluminação e protagonizou a chamada “Greve do Gás”, motivada pelas arbitrariedades da companhia.
O "Baú da Política" é uma série de reportagens do Diário do Nordeste que explora a história política e social do Ceará. Nesta edição, o especial aborda figuras, eventos e processos marcantes dos 190 anos da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará (Alece), celebrado em 2025.
Conforme as denúncias dos comerciantes, sob o comando do gerente inglês Frederico Child, a Ceará Gás aumentava o valor das contas a cada mês e determinava que qualquer manutenção nos encanamentos de distribuição só poderia ser feito pela companhia, o que descaracterizava o contrato feito com o Estado. Em retaliação, a empresa cortava o fornecimento de gás de quem reclamasse das irregularidades.
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CRISE DE ENERGIA CHEGA À ALECE
A crise no fornecimento de energia chegou à Assembleia Legislativa Provincial por meio de denúncia apresentada pelo deputado Henrique Arraes, em 14 de julho de 1884. No encontro, os parlamentares discutiram amplamente o assunto e até criaram um projeto de lei contra os desmandos da companhia inglesa.
Como mostram os anais da sessão, a discussão dos deputados girou em torno de requerimentos para a empresa fornecer informações sobre o serviço prestado, a responsabilidade de Frederico Child no cenário de irregularidades, a cobrança por uma maior fiscalização das autoridades e a aplicação de multas à Ceará Gás.
Vemos trez, quatro, cinco e mais combustores sem luz ao correr da noute, e não me consta nenhuma providencia; a companhia sucessivamente vae rompendo as condições do contracto, e o governo não se ha dignado de chamal-a ao cumprimento de seus deveres; portanto é facto que o prejuizo que d’ahi resulta á provincia é ocasionado pelos agentes do poder publico*
*A reportagem decidiu preservar a ortografia da época.
A partir do pronunciamento, Henrique Arraes atuou pela aprovação de um projeto de lei contra os abusos da Ceará Gás. A proposição abordava os seguintes aspectos:
- Restabelecer uma lei de 1873 que obrigava a companhia a responder pela exatidão dos registros de consumo;
- Firmar o direito dos consumidores de não pagar pelo aluguel de registros nem pelo conserto de encanamentos;
- Incentivar o presidente da Província a chamar concorrentes ao fornecimento da iluminação particular, dando ao contratante o período de 10 a 30 anos;
- Impor que as multas contra a Ceará Gás só poderiam ser relevadas depois que a empresa comprovasse as determinações legais previstas no contrato, mediante a inspeção das autoridades.
Mesmo diante da repercussão no comércio e dentro do próprio Legislativo, a Ceará Gás seguiu atuando no Estado, passando até mesmo pela mudança de 1913, quando a iluminação passou a ser elétrica, mas somente para propriedades particulares.
Posteriormente, a companhia foi substituída pela Ceará Tramway Light and Power Company, que teve o contrato para iluminação pública rescindido 1934, conforme o histórico levantado pela socióloga Fátima Garcia, no portal Fortaleza em Fotos.
Já a Companhia Energética do Ceará (Coelce) só foi criada em 5 de julho de 1971, a partir da unificação de quatro empresas distribuidoras de energia elétrica então existentes no Estado: Celca, Cenort, Conefor e Cerne. Em 1998, porém, a privatização da companhia foi oficializada.
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CPI DA COELCE
Ao longo dos 190 anos de existência, diversas pautas de interesse da sociedade têm pautado a atuação de deputados na Assembleia Legislativa do Ceará, dentre as quais as crises na distribuição de energia nunca saíram do radar.
Foi nesse sentido que a Alece instalou, em maio de 2009, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar possíveis irregularidades no cálculo da tarifa de energia da Coelce. À época, a empresa havia anunciado um reajuste de 11,25%, virando alvo de investigação por suspeita de “práticas abusivas e lesivas aos direitos dos consumidores”.
O colegiado foi presidido pelo deputado João Jaime (PP) e teve como relator Lula Morais (PCdoB), que foi o autor do requerimento pela instalação da CPI. Ao longo de sete meses de trabalho, a Comissão enfrentou uma série de limitações, principalmente relacionadas às recusas de instituições em liberarem representantes para depor.
Em dezembro de 2009, os trabalhos foram encerrados com a apresentação do relatório final. O colegiado não conseguiu, porém, confirmar a suspeita inicial de ilegalidade nos reajustes praticados pela Coelce e acumulou resultados limitados. A companhia defendia que era concessionária de serviço público federal e o reajuste estava vinculado à resolução da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).
Os parlamentares chegaram à conclusão que os cearenses pagavam uma energia mais cara por conta de uma lei federal, que excluía do rateio de subsídio a distribuidora do Ceará, restando aos deputados a cobrança pela alteração da legislação. Além disso, na avaliação do relator à época, a CPI teria sido importante para assegurar que a população cearense tivesse um reajuste menor em 2010.
CPI DA ENEL
Em novembro de 2016, a Companhia Energética do Ceará (Coelce) passou a se chamar Enel Distribuição Ceará, carregando o mesmo nome da controladora italiana da distribuidora. Já sob nova nomenclatura, a empresa virou alvo de outra investigação da Assembleia Legislativa.
Em agosto de 2023, a Alece instalou uma Comissão Parlamentar de Inquérito para apurar supostas irregularidades da Enel, com o deputado estadual licenciado Fernando Santana (PT) na presidência e Guilherme Landim (PSB) como relator.
A iniciativa foi motivada pelo reajuste de 24,85% na conta de energia, aplicado pela empresa no ano anterior, além do aumento de reclamações registradas nos diversos órgãos de defesa do consumidor em relação “à má qualidade dos serviços prestados”.
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Em meio aos trabalhos do colegiado, dois episódios entraram no radar da CPI e aqueceram a apuração: a falta de energia registrada em diversos municípios cearenses durante o Réveillon de 2023 e o Carnaval de 2024, com casos de consumidores com até 48 horas sem eletricidade. Em ambas as situações, a Enel alegou interferências climáticas para a interrupção do serviço.
O relatório final da CPI foi aprovado em maio de 2024. A principal solicitação do colegiado tratava da caducidade do contrato de concessão da distribuidora de energia. O documento apontava quebra de cláusulas contratuais pela Enel, negligência na prestação de serviço ao consumidor e diminuição de investimentos ao longo dos anos. A empresa nega todos os apontamentos.
Mesmo assim, a CPI acumulou resultados distantes do principal objetivo do colegiado: o fim do contrato da companhia. Os desdobramentos esbarram na falta de autoridade da Comissão para aplicar sanções e na dependência direta da atuação das instituições acionadas. Em caminho inverso, a distribuidora busca, atualmente, a renovação antecipada da concessão por mais 30 anos.
Por outro lado, os deputados envolvidos defenderam que, por meio do trabalho da CPI, a Enel recebeu uma série de multas da Agência Reguladora do Estado do Ceará (Arce) e teria realizado melhorias no serviço. Além disso, a companhia também teria apresentado um plano de investimentos de R$ 7,4 bilhões entre 2024 e 2027.