Propostas de CPIs mais famosas do Ceará nunca foram instaladas no Legislativo
Pelo menos 15 CPIs foram discutidas na Assembleia Legislativa nos últimos 20 anos. Desse total, sete foram efetivadas
Se as Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) geram preocupações e emparedam o Executivo Nacional, o cenário no Ceará é diferente. Historicamente, as investigações comandadas pelo Legislativo causam poucas dores de cabeça ao Governo do Estado.
Assuntos que até hoje geram intensos debates públicos, como a construção do Acquário e o motim da Polícia Militar (PM), tiveram pedidos de investigação deixados de lado.
Enquanto o Brasil se prepara para acompanhar a CPI da Covid-19, que começará os trabalhos nesta terça-feira (27), o Diário do Nordeste mostra os rumos que colegiados desse tipo tiveram nos últimos 20 anos no Ceará. Ao todo, conforme levantamento realizado no Arquivo do Sistema Verdes Mares, foram instaladas sete CPIs na Assembleia Legislativa do Ceará (AL-CE) ao longo desse tempo.
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Por outro lado, ao menos oito propostas de investigações não conseguiram atingir os requisitos mínimos para serem implantadas. Em alguns casos, os pedidos até atenderam os critérios regimentais, mas terminaram engavetados.
“CPI de maior impacto, desde que me entendo como deputado, não lembro de nenhuma”, pontua o deputado estadual Heitor Férrer (Solidariedade), que exerce o quinto mandato na Casa. Segundo ele, o que existem são “enredos de CPI”. “Ficções, feitas em momento de ameaça ou para atender uma agenda pessoal”, aponta.
Os passos de uma CPI
O Regimento Interno da Assembleia estabelece as regras para a formação do colegiado. No artigo 53, é definido que o requerimento de instalação de uma Comissão dessa natureza deve ser assinado por, pelo menos, ¼ da Casa, ou seja, 12 deputados. No pedido, também deve constar o fato a ser investigado e o prazo de apuração.
No Ceará, apenas duas Comissões Parlamentares de Inquérito podem funcionar simultaneamente. Quando implantado, o grupo de parlamentares passa a ter autoridade para convocar investigados, ouvir testemunhas, solicitar documentos sigilosos, além de requerer quebra de sigilos bancário, fiscal e telefônico.
CPIs foram instaladas pela Assembleia do Ceará nos últimos 20 anos
Das sete CPIs instaladas no Estado desde 2001, três pediram o indiciamento de suspeitos. No caso da CPI do Extermínio (2005), que investigava um grupo de execução a serviço de uma rede de farmácias, o caso foi levado à Justiça comum.
A CPI dos Desmontes (2005) apontou irregularidades na gestão de 34 municípios. Já a de Exploração Sexual (2005) pediu indiciamento de 27 pessoas, entre empresários e políticos.
Outras duas, a do Seguro DPVAT (2015) e a da Coelce (2009), esbarraram em órgãos federais, que os deputados cearenses não têm como competência investigar.
A do BEC (2001) foi “esvaziada”, conforme justificaram parlamentares à época. A de Telefonia Móvel (2013) emitiu relatório indicando a suspensão da venda de novas linhas telefônicas no Estado.
Terminou em pizza
Conforme explica o decano da Assembleia do Ceará, o deputado Fernando Hugo (PP), as investigações comandadas pelo Legislativo têm limitações, o que acaba gerando falsas expectativas, segundo ele.
“Vulgarizou-se dizer que CPI não dá em nada, que CPI termina em pizza, não é verdade. Às vezes, encaminhamos fatos, atos, dados e nomes ao Ministério Público, que analisa e encaminha à Justiça, a quem cabe punir.”
Ainda de acordo com o Regimento Interno da AL-CE, além do Ministério Público, o relatório final das CPIs também é enviado ao Poder Executivo, para que adote providências com o intuito de extinguir o eventual problema, e ao Tribunal de Contas do Estado, para apreciação na Corte.
Muito barulho, pouca CPI
Se, por um lado, até mesmo os deputados não se lembram de CPIs que tiveram grandes impactos na política cearense, outras que estão frescas na memória da população e alimentam debates políticos até hoje nunca foram efetivamente instaladas pelos deputados.
Entre os casos de maior repercussão, estão as CPIs do Acquário (2018) e a do Narcotráfico (2018). Além do tema polêmico, a primeira foi alvo de forte mobilização da base governista para tentar atrasá-la.
À época, parlamentares aliados ao Governo do Estado pediram abertura de três comissões. Como só duas CPIs podem funcionar simultaneamente, as investigações sobre o Acquário foram para o fim da “fila”.
Já a que pretendia investigar o tráfico de drogas no Ceará, uma das principais bandeiras usadas pela oposição para criticar o Governo do Estado, foi arquivada. Os deputados alegaram medo de retaliações durante os trabalhos do colegiado.
Pedidos de CPIs mais recentes, apresentados nos últimos dois anos, seguem sem indicativo de quando serão atendidos diante da mudança de rotina provocada pela pandemia. Um deles solicita investigação sobre a distribuição de diplomas falsos a estudantes cearenses.
Em meio ao motim da PM no Ceará, no ano passado, a base governista articulou investigações contra as associações militares (2020). A proposta, no entanto, perdeu força com a resolução da crise. Também estão na “fila” do Legislativo Estadual as CPIs da Enel (2020) e das Fake News (2020).
Questionada pela reportagem sobre a situação desses requerimentos, a Assembleia Legislativa informou que a instalação de CPIs seguirá a ordem cronológica e os trâmites regimentais.
CPI: do papel ao plenário
Segundo Heitor Férrer, há fatores que precisam se alinhar para que uma CPI saia do papel.
“CPI só anda em governo com a base frouxa. É preciso uma junção de fatores, um governo fragilizado, onde não se tem maioria. No caso do Ceará, atualmente, por exemplo, com sete nomes na oposição, isso não acontece nunca. A base é larga demais.”
Fernando Hugo endossa essa avaliação. “Mesmo em tempos passados, com Ciro Gomes (PDT), Lúcio Alcântara (PR) e Tasso Jereissati (PSDB), a oposição nunca foi farta aqui no Ceará. Além disso, a CPI precisa cativar a sociedade. O simples exibicionismo de muitas propostas que surgem, mas não têm proposição, não cativa”, conclui.
De acordo com Paula Vieira, socióloga e pesquisadora do Laboratório de Estudos de Política, Eleições e Mídia da Universidade Federal do Ceará (Lepem-UFC), as Comissões Parlamentares de Inquérito são resultado de um tensionamento prévio na relação entre o Executivo e o Legislativo.
Nos estados, a socióloga aponta que os governos têm maior alcance para ampliar a “base institucional” nas assembleias legislativas, ainda que haja uma “oposição discussiva”. “Normalmente, a oposição é desfavorecida por conta desse alcance, que contribui para alianças amplas”, afirma.
Estratégias de uma CPI
Conforme a cientista política Gabriella Bezerra, professora da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e pesquisadora do Lepem-UFC, as estratégias que podem facilitar a instalação de uma CPI começam ainda na apresentação da proposta.
“São fatores mais técnicos, como o enquadramento, a apresentação, os termos, o período de apuração e como a oposição consegue ‘limpar’ a proposta para receber partidos independentes e até alguns parlamentares da base aliada”, afirma.
Paula Vieira acrescenta que uma CPI tem tanto cunho técnico quanto político. “São dois processos que parecem não ter conexão, mas o jogo político é importante para montar uma CPI”, avalia.
“Ter um fato político em que se perceba o alcance, com informações disponíveis, alianças e opinião pública favorável são fatores que contribuem nesses casos.”
Ainda segundo ela, a perda de força de alguns colegiados ao longo das investigações são explicados justamente por essas variáveis. “Os processos de investigação tendem a ser longos, precisam de muitas evidências para ter resultados, então é custoso, é um dos motivos por que não vemos com muita frequência”, afirma.
Gabriella Bezerra aponta também outros fatores, como a perda de visibilidade midiática, o desinteresse da população e os obstáculos na apuração das informações.
“O parlamentar não vai querer ter o tempo dele consumido em um trabalho que já saiu de pauta.”
“Por isso, às vezes, surge esse sentimento de que as CPIs não dão resultado, porque é custoso e o parlamentar se vê diante desse conflito com o que está em pauta no momento”, conclui.
Relembre as CPIs instaladas no Ceará
CPI do BEC - 2001/2002
Após denúncias de que havia um esquema ilegal na concessão de empréstimos pelo Banco do Estado do Ceará (BEC), o colegiado foi formado na Assembleia. O alvo das investigações eram empresários e políticos que haviam recebido os benefícios entre 1995 e 1998, ainda no governo de Tasso Jereissati (PSDB).
Em entrevista à época ao Diário do Nordeste, o então deputado João Alfredo explicava que o Governo do Estado conseguiu “abafar” as investigações. "Esvaziou-se por si só, foi praticamente abortada", disse.
CPI da Coelce - 2009
Deputados decidiram investigar o aumento na tarifa da energia por parte da Coelce. À época, o documento final da CPI, relatado pelo então deputado Lula Morais (PCdoB), apontava que o reajuste determinado pela companhia poderia ter sido menor.
Contudo, a Coelce informou à Casa apenas que era concessionária de serviço público federal e o reajuste estava vinculado à resolução da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).
CPI da Telefonia Móvel - 2013/2014
A comissão investigou denúncias de altas tarifas e problemas de má qualidade na prestação da telefonia móvel. O colegiado teve como relator o deputado Fernando Hugo (PP).
O parlamentar elaborou um relatório de 160 páginas, apresentado em março de 2014, em que recomendava ao Procon a abertura de uma ação civil pública que pedisse a suspensão da venda de novas linhas telefônicas até que as operadoras investissem na ampliação da rede.
CPI do Extermínio - 2005/2006
Uma das CPIs mais movimentadas da Assembleia, ela foi instalada para apurar a contratação, pela rede de farmácias Pague Menos, de um grupo de extermínio formado por policiais militares. O relatório final do colegiado concluiu que mais de 20 adolescentes suspeitos de furto ou roubo contra unidades da empresa haviam sido executados pelos agentes de segurança.
O relatório do deputado estadual Paulo Duarte tinha mais de 11 mil páginas. Ao final, ele pediu o indiciamento de 13 pessoas.
CPI dos Desmontes 2005/2006
Ao menos duas CPIs já foram instaladas no Ceará para investigar desmontes em prefeituras. Em 1994, o colegiado pediu o indiciamento de 45 gestores. Em 2005, o assunto voltou à pauta. Em nova CPI, os deputados fizeram relatório de 177 páginas e encaminharam ao Ministério Público do Ceará (MPCE) e ao extinto Tribunal de Contas dos Municípios (TCM) indicando irregularidades em 34 municípios.
Entre as denúncias: não pagamento das contas públicas, apropriação de bens dos municípios, atraso no pagamento de funcionários e desvio de recursos públicos.
CPI da Exploração Sexual - 2005
Assunto que quase seria motivo de outra CPI dez anos depois, em 2005 os deputados instalaram um colegiado para investigar crimes de exploração sexual contra crianças e adolescentes no Ceará.
O relatório final, escrito pela deputada Tânia Gurgel (PSDB), solicitava que o Ministério Público do Ceará (MPCE) encaminhasse um pedido de indiciamento de 27 pessoas, entre empresários e políticos cearenses.
CPI do seguro DPVAT - 2015/2016
O colegiado enfrentou uma série de obstáculos porque o seguro é administrado pelo Governo Federal e os deputados estaduais do Ceará não podiam interferir.
"O que nós pudemos fazer aqui foi em relação à formação de alguns cartéis, quadrilhas formadas, desde advogados que fraudavam documentos a pessoas que fraudavam acidentes. (...) Algumas ações foram frustradas, em virtude do DPVAT fazer parte de um grupo de seguros que tem ligação com o Ministério da Fazenda, e aí você não pode pedir quebra de sigilo de uma entidade. Além disso, o recurso é federal", justificou, à época, o presidente da CPI e, atualmente, prefeito de Fortaleza, José Sarto (PDT).
CPIs que não foram instaladas
CPI do Acquario - 2015
Motivo de muitas críticas de adversários, a construção do Acquario pelo ex-governador Cid Gomes (PDT) também virou alvo de uma tentativa de CPI. A proposta era do deputado Audic Mota (PSB), à época, parlamentar da oposição. Ele queria investigar a paralisação da obra.
Uma reação da base do Governo, no entanto, causou indignação na oposição. Antes que Audic apresentasse o requerimento, deputados da base pediram a abertura de outras três CPIs (Dpvat, tráfico de drogas e exploração sexual).
Devido ao regimento interno, só duas CPIs poderiam funcionar simultaneamente, o que inviabilizou a do Acquario. Meses depois, Audic se tornou aliado do governador Camilo Santana (PT), e o assunto não foi retomado.
CPI do Tráfico de Drogas - 2015
Acusada pela oposição de ter sido requerida como uma “manobra”, a CPI foi solicitada pela deputada Rachel Marques (PT). À época, questionada sobre o que motivou o pedido e se seria uma “manobra” para inviabilizar a CPI do Acquario, ela justificou dizendo apenas que havia proposto um projeto de lei sobre o assunto e acabou “entrando no tema”.
CPI da Exploração Sexual - 2015
Outra proposta encaminhada sob acusação de “manobra” da base para barrar a CPI do Acquario foi a que pretendia investigar exploração sexual no Estado.
À época, o deputado Bruno Pedrosa (PP) justificou o tema pela relevância. Contudo, questionado se estava trabalhando para abrir a comissão, ele disse apenas que estava fazendo "no dia a dia, de conversas mesmo".
CPI do Narcotráfico - 2018
Polêmica desde a proposição, a CPI que iria investigar o tráfico internacional de drogas no Ceará foi arquivada em meio a inúmeras acusações. A maioria dos deputados sempre se mostrou contra a investigação por medo de sofrer atentados.
À época, as articulações ficaram marcadas por embates entre o então deputado estadual Capitão Wagner (Pros) e o, hoje, presidente da Assembleia, Evandro Leitão (PDT). O pedetista dizia ser contra por temer a segurança de sua família, enquanto Wagner classificava a falta de apoio como “vergonhosa”.
CPI dos Diplomas Falsos - 2019
A pedido do deputado Elmano de Freitas (PT), a proposta da CPI era investigar golpes contra estudantes que fizeram curso superior e, depois, descobriram que os diplomas eram falsos.
Com todos os trâmites cumpridos, um acordo entre o petista e o então presidente da Assembleia, José Sarto (PDT), definiu que o colegiado seria formado em 2020. Contudo, em meio ao motim da PM e à pandemia, a proposta ficou engavetada.
CPI das Associações de Militares - 2020
Diante do motim de agentes da Polícia Militar, em 2020, deputados da base reagiram e propuseram uma investigação sobre parte da categoria. A ideia era apurar o destino dos recursos milionários recebidos pelas associações ligadas à Polícia Militar e ao Corpo de Bombeiros do Estado do Ceará.
De acordo com parlamentares que defendiam a proposta, havia indícios de que os recursos estavam sendo usados para fins eleitoreiros e para financiar movimentos paredistas. Contudo, a CPI nunca foi implantada.
CPI da Enel - 2020
No ano passado, o deputado Delegado Cavalcante (PSL) apresentou pedido de criação de uma CPI para apurar irregularidades na empresa de energia Enel. Ele conseguiu 19 assinaturas de apoio – são necessárias no mínimo 16 – para instalação da comissão. Porém, o pedido segue engavetado, assim como o da CPI dos diplomas falsos.
CPI das Fake News - 2020
Em meio à pandemia da Covid-19, o deputado Acrísio Sena (PT) reuniu assinaturas para investigar a disseminação de fake news. Segundo o petista, a ideia era identificar extensões do “Gabinete do Ódio” no Ceará.
O pedido foi questionado pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, que apontava inconstitucionalidade no número mínimo de assinaturas para abertura do colegiado. À época, Acrísio alegava já ter atingido a quantidade necessária para instalação da CPI.