Augusta Brito: 'O maior desafio não é a campanha, mas chegar a esse espaço de poder masculino'

A deputada e procuradora especial da Mulher na AL-CE relembra a trajetória política para apontar os avanços que ainda são necessários na presença da mulher na política

“A política vem sempre privilegiando o homem”, diz a deputada estadual Augusta Brito, do PCdoB, antes de reforçar que as mulheres têm de estar “em todos os espaços de poder onde são decididos, inclusive, projetos de lei que vão interferir diretamente na vida da mulher”. Ela entende muito bem o que diz, afinal é a primeira mulher a atuar como líder do Governo na história da Assembleia Legislativa do Ceará (AL-CE). 

Em entrevista ao programa PontoPoder e ao Diário do Nordeste, como convidada do Projeto Elas, iniciativa do Sistema Verdes Mares em prol de fortalecer a luta pelos direitos das mulheres e a conquista de novos espaços, inclusive políticos; a atual vice-líder do Governo e procuradora especial da Mulher na AL-CE relembra a trajetória política para desenhar as metas do futuro.

Augusta Brito começou a luta social pela enfermagem, área em que é formada, e que a levou a compreender a importância de batalhar pelo outro na instância política. Foi prefeita do município de Graça, na Serra da Ibiapaba, durante dois mandatos, além de ter comandado a Secretaria de Educação de São Benedito, antes de concorrer a uma cadeira na Assembleia Legislativa, para a qual foi reeleita. 

No legislativo estadual, busca ampliar a atuação para além de áreas e pautas “ditas femininas”, como ela mesma caracteriza, mas sem esquecer que as mulheres - devido a uma histórica desigualdade de gênero - precisam ter um olhar diferenciado na elaboração de políticas públicas. No trabalho à frente da Procuradoria Especial da Mulher, busca acolher aquelas que têm tido direitos violados, mas também trabalhar para que cada vez mais mulheres possam adentrar e terem atuação efetiva nos espaços de poder. 

“Tenho uma vontade de fazer mais, de inspirar uma mulher a entender que se aquela 'caboca' daquela cidade pequena no pé da serra conseguiu, porque eu não consigo? Porque eu não vou ser candidata?”
Augusta Brito (PCdoB)
Deputada estadual

Confira entrevista completa

A senhora tem uma larga experiência na vida pública. Foi prefeita do município de Graça por duas vezes, assumiu a secretaria de Educação de São Benedito, além de estar no segundo mandato como deputada estadual. Foi fácil decidir sair da atuação mais social e disputar um mandato eletivo?

Não foi fácil, eu não pensava (em disputar um mandato). Meu pai era político, então a vida toda estive ali vendo tudo que ele ia fazendo, mas não tinha a intenção nem o desejo de ter um mandato. Sempre gostei de estar perto das pessoas, sempre gostei muito de ajudar de alguma forma. Não sabia que isso ia influenciar ou que tinha a ver diretamente com ter um mandato, ter algum cargo político. Depois, fui estudar, me formei em enfermagem, voltei para Graça e fui trabalhar no posto de saúde, como enfermeira, e começou a identidade de ajudar as pessoas, de procurar levar aquela política pública, de uma forma séria, para aquela pessoa que mais precisa, através da própria enfermagem.

Então, veio a ideia para ser candidata e, no primeiro momento, como prefeita. Não fui vereadora, fui logo como prefeita e foi um dos maiores desafios. Eu era muito nova na época e, como eu nunca pensava, eu não tinha essa vontade... Ou achava que não tinha. 

Fomos para a campanha, conseguimos vencer nas urnas. Dentro da prefeitura, até que eu me reconhecesse como a prefeita, demorou um pouco. Por tudo. Por ser muito jovem, por não ter tido o pensamento de estar lá. Fomos para a reeleição e, com muito trabalho, conseguimos a reeleição.

O  segundo mandato já foi bem melhor, bem diferente. Tinha a experiência e uma confiança maior do que tinha que fazer, de que estava à frente daquele cargo, então as decisões tinham que ser ali. Não individuais, lógico, mas que tinham que ser da pessoa que tinha sido eleita. Depois fiquei sendo secretária de Educação por um ano, quando veio a proposta de ser candidata a deputada.

Também não era algo que já estava nos meus planos. Pensei que minha missão com mandato tinha acabado. É uma missão, a gente abdica de muita coisa, especialmente no Executivo que é uma cobrança bem maior do que o Legislativo, é uma responsabilidade muito grande, principalmente quando o município é pequeno e pobre. Em todos os municípios, quando você tem responsabilidade, você sofre quando não consegue resolver. É muito pesado. 

Veio a candidatura para deputada pela necessidade da região (Serra da Ibiapaba) ter uma representação. E, no primeiro momento, ninguém, nem da região, acreditava naquela candidatura de uma mulher lá do interior, de cidade pequena. Mas foi pegando uma proporção em que toda região começou a acreditar que era preciso ter uma representação da região e conseguimos o mandato.

Aí veio outro desafio: tenho que fazer esse mandato ser representativamente importante pra região - que a necessidade veio de ter uma representação de lá - e pras mulheres. Como ser reconhecida como representante da região, como fazer com que as mulheres se sintam identificadas com o mandato? Então, foram milhões de trabalhos até conseguir entender o espaço da Assembleia Legislativa, até saber também a importância de estar em todos os espaços, em todas as comissões, em todas as discussões. 

Existe uma construção social em torno da ideia de que mulheres não se interessam pela política ou, quando se interessam, têm uma influência masculina, de familiares, por exemplo. A senhora citou o seu pai, inclusive. Essa relação foi fundamental para sua entrada na política ou foi um fator de dificuldade?

Até ajudou, mas, quando eu consegui chegar à Assembleia, eu era tida como uma mulher que entrou porque tem um pai que é político, porque tem um marido que está sendo prefeito. Nunca pelo mérito. O mérito não era atribuído a mim. Eu estava aqui porque tinha sempre alguém que foi o responsável. Não que a gente não tenha que ter aliados e, por que não - se for dentro da política - um marido, um pai. Mas não é por isso que eu estava ali. Então, até conseguir provar que estava ali porque também tinha capacidade, porque se candidatou, porque pode estar naquele espaço, foi um pouco demorado.

Em seguida, houve a eleição para prefeito, e meu pai, que não estava no cargo quando eu fui eleita, conseguiu ser eleito e meu marido foi reeleito. Mudou um pouco, porque colocaram a responsabilidade em mim, que fui eu que "ajudei a eleger". Mas (essa mudança veio) com muito sacrifício, com muito trabalho. 

Então, é um trabalho danado até conseguir um espaço que não seja só na Comissão de Infância e Adolescência... No meu primeiro mandato, eu tinha dificuldade de conseguir outros espaços, em outras comissões. A gente tem que trabalhar muito. Ninguém está lhe dando aquela oportunidade de estar ali só porque você está como deputada. Não, a gente tem que ser na luta, mostrando trabalho, mostrando que tem capacidade para estar em qualquer. Um certo privilégio que a gente não tem. 

Muito se fala da dificuldade da mulher para entrar na vida pública, conquistar os mandatos eletivos. A senhora citou as comissões, mas quais outras barreiras enfrentou, por ser mulher, após ser eleita? 

De espaço, objetivamente de espaço, porque, geralmente, te colocam só naquele espaço tido como de mulher. Então, se é mulher, é ali o seu lugar. Estou na Procuradoria Especial da Mulher,  'é seu lugar', certo? Mas, assim, eu consegui estar na comissão de Constituição e Justiça, na de Orçamento, na de Fiscalização e Controle.

Porque eu trabalhei e fiz questão de poder estar em todos, para poder saber tudo que está sendo discutido, para eu não me resumir - o que já não é pouca coisa - a pauta ditas femininas, porque não existe divisão de pauta. Tudo é para interessar a mulher como tudo é para interessar o homem.

Agora, a gente se identifica mais com algumas pautas. É diferente. Então, eu me identifiquei muito com a Procuradoria e por entender que, se é uma Procuradoria Especial da Mulher, tem que ser mulher (no comando). Nada mais justo e legítimo que, para construir políticas públicas para nós mulheres, sejam também mulheres. Não que os homens também não possam propor, mas, se for por mulheres, acredito que tem uma legitimidade maior, que atende a necessidade bem melhor porque sente na pele. 

A senhora foi a primeira mulher a ocupar a liderança do Governo na Assembleia Legislativa. Também no legislativo estadual, ainda não houve uma mulher na presidência, por exemplo. Por que ainda existe essa dificuldade de as mulheres conquistarem esses espaços de destaque dentro do legislativo?

Eu nunca pensei em estar em um cargo político. A minha primeira oportunidade foi de disputar como candidata a prefeita, de um município de 15 mil habitantes, e que, pra mim, já tinha todos os obstáculos. A política vem sempre privilegiando o homem, de o homem estar nos espaços de poder.

Então, foi um desafio muito grande. Nunca pensei na oportunidade de ser (deputada estadual) e nesse mandato, fazer com que realmente represente e que as mulheres se identifiquem com ele. O maior desafio não é a campanha, mas chegar a esse espaço de poder, que é totalmente masculino. As mulheres vieram a ter um banheiro no (plenário do) Senado há poucos anos. 

A gente ocupa esse espaço de uma forma que possamos participar de todas as comissões. Não ter um mandato voltado a pautas que remete a questões de cuidado, como a Infância e Adolescência, que são muito importantes, mas que a gente possa ocupar os espaços nas comissões de Constituição e Justiça, a de Orçamento.

Eu tenho uma grande preocupação em fazer com que as mulheres pudessem se identificar com o meu mandato e também servir de exemplo, de incentivo a outras mulheres. De "eu posso ocupar esse espaço aqui também”, “esse espaço não está dizendo nem escrito que é só para homens”.

É um desafio que enfrentamos todos os dias. Tem dias que estamos com uma força maior, tem dia que diminui pelos obstáculos que reconhecemos que estão ali pela questão de gênero. Mas também, quando vemos o desafio, criamos força para lutar contra ele, para que outras mulheres possam se sentir pertencentes a esse ambiente político. 

Uma das atuações importantes da senhora é junto a Procuradoria Especial da Mulher, desde 2017. Como a Procuradoria atua e como as mulheres podem recorrer a esse órgão?

Quando assumi, em 2017, a Procuradoria existia com uma funcionária. Fomos ver como era o espaço, qual a função da procuradoria e fomos conseguindo ampliar. Levamos (por exemplo) a caravana de combate à violência contra as mulheres para vários municípios - perto de 40. Com a pandemia, demos uma parada nessa questão de presencial para as escolas - onde levamos a temática da Lei Maria da Penha e tantas outras (leis) que existem. Para um espaço onde tem juventude e adolescentes, que querem discutir, querem falar, precisam falar sobre diversos assuntos. Demos uma visibilidade ao trabalho da Procuradoria e ela foi crescendo, foi sendo ampliada.

Conseguimos uma reestruturação e, em novembro, nós vamos inaugurar um prédio próprio onde vai funcionar a Procuradoria em parceria com o Ministério Público e a Defensoria Pública. Isso tudo dá a demonstração desse trabalho. De várias profissionais, como assistentes sociais, psicólogas, advogadas, que são totalmente capacitadas para fazer acolhimento, principalmente a mulheres que estão vendo a retirada dos seus direitos, (como) com a questão da violência, não apenas doméstica e familiar. 

Especialmente, por meio da Procuradoria, vimos a necessidade de fortalecer a mulher na política. Não só candidatas, mas principalmente os mandatos. Estamos com a expansão da Procuradoria, em parceria com as Câmaras Municipais. Já estamos em 37 municípios com a implantação da procuradoria a nível municipal, em parceria com as vereadoras e a UVC Mulher (União dos Vereadores do Ceará). Temos também parceria com a OAB-CE, com a Aprece (Associação dos Municípios do Estado do Ceará), para levarmos essa demanda, que é especificamente defender os nossos direitos, para todos os municípios.

A gente percebe que falta muito essa rede de enfrentamento à violência contra nós, mulheres, nos municípios. E, por meio da Câmara Municipal, a gente está visualizando essa possibilidade de fortalecer os mandatos das mulheres para falarem de diversos assuntos, que seja relacionados diretamente à questão do direito da mulher ou que seja relacionado aos direitos da sociedade, aos municípios, às famílias, à cidade, a projetos para as pessoas que mais necessitam.

A Procuradoria também tem um serviço chamado Zap Delas, para atendimento à população. Como funciona essa ferramenta?

Especialmente no período de pandemia, ficamos com uma apreensão muito grande, porque víamos que os números de violência contra nós mulheres tinham um potencial maior de aumentar, porque violência doméstica familiar acontece dentro do seu lar, dentro da sua casa, e as mulheres estavam sendo obrigados a ficar realmente em casa, com o seu possível agressor durante um tempo maior, então estavam em uma exposição bem maior de serem submetidas a algum tipo de agressão. Se não pode sair de casa, como é que vai fazer uma denúncia, como é que pode chegar a algum órgão para procurar ajuda.

Potencializou, naquele período, as violências e nós queríamos ferramentas mais fácil, porque muitas vezes as mulheres não podem nem falar. Como é que vai ligar, como é que eu vai falar, se está ali diretamente com o agressor? Então, uma mensagem é mais fácil mandar, que seja para pedir um socorro, para tirar uma dúvida. 

Fizemos um treinamento e capacitação com uma profissional altamente responsável, que mantém o sigilo, que não vai expor nenhum tipo de conversa. Ela faz a triagem, porque tem algumas dessas mulheres que estão pedindo ajuda, que a gente tem que fazer encaminhamento para a Casa da Mulher Brasileira ou para algum órgão específico. Fazemos o encaminhamento e acompanhamos para ver o resultado. 

Em três meses de funcionamento, o Zap Delas recebeu 145 pedidos. Muitos deles eram pedidos de socorro, de quem não sabia o que fazer. É um momento  de desespero e ter uma ferramenta, já que é uma situação em que, muitas vezes, a mulher tem vergonha e não está diretamente olhando para pessoa, é mais fácil mandar aquela mensagem. Também fazemos agendamentos individuais com as profissionais que a gente tem, como psicóloga, assistente social, advogada, além de encaminhar e de fazer parcerias com a Defensoria, com o Ministério Público. Procuramos ajudar. Nessas 145 pessoas nesses três meses que pediram ajuda, teve até de outros estados. 

A gente percebe que, com a expansão da Procuradoria para o Interior, o Zap Delas fica mais divulgado para o estado todo. É uma ferramenta que vamos ter que expandir o número de pessoas para atender e também no final de semana, que ainda não conseguimos, porque é onde acontece o maior número de violência

Inclusive, a senhora como procuradora especial da Mulher pediu, em setembro, providências à Câmara Municipal de Iguatu após caso envolvendo uma vereadora, que teria sido vítima de violência política de gênero. Como a senhora avalia o aumento de casos, mas também o número de denúncias? 

Essa violência, como tantas outras, vem acontecendo e vem sendo naturalizada por muitos anos,  especialmente pela questão do machismo estrutural e a gente vinha repetindo e, agora, a gente se percebe naquela violência. Já temos lei e algo mais direcionado, até para saber o que é violência política contra a mulher. Nós vamos fazer um seminário, em novembro, com todas as vereadoras do Ceará. São 405 vereadores, 28 prefeitas e 48 vice-prefeitas. 

A pauta principal dele é falar dessa lei, falar do que é a violência política contra a mulher. Queremos trazer a Isa Penna, deputada que sofreu a violência, também a vereadora (de Iguatu) para fazer a fala. Uma referência nacional e uma nossa, do Ceará. Para que possamos trazer essa pauta e para que as mulheres possam tanto trocar ideias como entender o que é realmente a violência política, para não permitir que ela aconteça. Além de outras pautas, como pobreza menstrual e projetos voltados ao combate ao feminicídio. 

Desde a primeira vez que a senhora foi eleita, em 2004, para a Prefeitura de Graça, já são mais de 15 anos de experiência na Vida Pública. Quais os principais avanços que a desde então e para onde a senhora ainda quer avançar na participação feminina na política?

Precisa aumentar muito a participação da mulher na política. Não só em candidatas, mas especialmente com mandatos, seja no Executivo ou no Legislativo. Conversei com uma prefeita, e ela me disse que foi para uma apresentação de um projeto e levou o namorado. E, nessa conversa, a pessoa apresentou o projeto todo para o namorado dela. Porque, com certeza, na cabeça dessa pessoa, não era uma prefeita, era um prefeito. São detalhes e coisas que parecem ser simples, mas que, em 2021, acontecem e se repetem. Quando é julgada ou questionada pela roupa que vestiu ou pelo cabelo que não penteou ou, enfim, por tudo.

Precisa evoluir muito, em relação ao machismo, à violência que acontece - seja física, sexual, psicológica. Dentro da política, não é diferente. Avançou muito quando eu, que não pensava nem na possibilidade de ser candidata, hoje acredito não só que podia ser, como estou e que posso fazer mais ainda. Tenho uma vontade de fazer mais, de inspirar uma mulher a entender que se aquela 'caboca' daquela cidade pequena no pé da serra conseguiu, porque eu não consigo? Porque eu não vou ser candidata? E não para ser cota. 

Não sou contra cotas. Ninguém está saindo do mesmo lugar, então, se não está saindo do mesmo lugar, é justo que se tenha cota. Eu sou a favor da cota, porque as oportunidades não foram iguais. Penso e acredito que estamos falando mais, está aumentando o número de mulheres na política, mas ainda é totalmente insuficiente.

São 46 deputados, nós temos 5 mulheres. Quando eu entrei (na legislatura anterior), tinham 7. Então, aqui, diminuímos. Precisa aumentar a participação efetiva. Não é só ser candidata e, quando está eleita, não é só estar no mandato, mas participar de tudo. Temos que estar em todos os ambientes de decisão, em todos os espaços de poder onde são decididos, inclusive, sobre projetos de lei que vão interferir diretamente na vida da mulher e de todos.