Quase 700 mil domicílios ainda usam lenha ou carvão no Ceará: 'Vivo com os dedos queimados'

Dado que retrata a pobreza energética é do IBGE

Escrito por
Bruna Damasceno bruna.damasceno@svm.com.br
(Atualizado às 16:18)
Uma montagem com foto do fogão à lenha improvisado, enquanto na outra aparece a personagem cozinhando
Legenda: Sem recursos, dona de casa precisa improvisar um fogão para se alimentar
Foto: Arquivo Pessoal

Nos fundos de uma casinha branca, localizada em uma viela do bairro Granja Portugal, em Fortaleza, a cearense Elenilza Ambrósio da Costa, de 51 anos, preparava um quilo de feijão doado, cozinhando-o sobre tijolos e lenha

O vapor quente atingia seu rosto de expressão cansada, agravando um problema de saúde não tratado por falta de recursos — uma condição que comprometeu boa parte de sua visão.

"É muita fumaça. Vivo com os dedos queimados porque não enxergo direito, e estou ficando cega", relatou, enquanto mostrava as mãos cobertas de fuligem.

O drama por ela vivido é um retrato da pobreza energética no Ceará, onde 698 mil domicílios utilizam lenha ou carvão como principal fonte de energia para o preparo dos alimentos, segundo dados de 2023 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). 

Conforme a pesquisa 'Pobreza Energética no Brasil', realizada pela plataforma Transição Justa em parceria com a Agenda Pública, a vulnerabilidade econômica é o principal motivo pelo qual pessoas de baixa renda recorrem a essas alternativas como fonte de energia.

Isso acontece porque a lenha é mais acessível, como no caso da dona Elenilza. A cearense vive com o marido, de 61 anos, e a mãe, de 84 anos, que está acamada e é cega, em uma casa alugada onde o único eletrodoméstico é uma geladeira velha.

Sem recursos para adquirir itens básicos, a família não possui fogão, gás, televisão ou celular. Conta apenas com alguns móveis antigos, uma rede e utensílios de cozinha.

Imagem mostra a casa da personagem, com móveis improvisados e um cenário simples
Legenda: Helenize mora com a família no bairro Granja Portugal, em Fortaleza
Foto: Arquivo Pessoal

O companheiro trabalha como catador, saindo diariamente em busca de comida e materiais recicláveis para garantir alguma renda, enquanto ela se dedica aos cuidados da mãe. 

A renda, portanto, é insuficiente até para as refeições básicas. “Tem dia que não almoçamos. Quando temos, é um arrozinho, um feijão, um ovo”, contou.
 

Pessoas em situação de pobreza energética enfrentam dificuldades para acessar serviços de energia adequados, como eletricidade ou combustíveis para aquecer a casa e cozinhar, devido à falta de recursos financeiros ou infraestrutura. 

Assim como Elenilza, milhões de pessoas vivem em situação de pobreza energética no Brasil — uma condição marcada pela dificuldade de acessar serviços de energia adequados, como eletricidade ou combustíveis para aquecer a casa e cozinhar, devido à falta de recursos financeiros ou de infraestrutura.

Por que essa realidade ainda persiste 

Segundo Vitor Hugo Miro, professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) e pesquisador da FGV Ibre, a principal barreira para o acesso a combustíveis alternativos utilizados no preparo de alimentos, como o Gás Liquefeito de Petróleo (GLP), o gás de cozinha, é a pobreza monetária.

“A informação sobre o contingente de pessoas que ainda dependem do uso de carvão e lenha chama bastante atenção nos dias atuais. Isso porque, mesmo com a ampliação dos programas de transferência de renda nos últimos anos — tanto em alcance quanto em valores — e apesar da existência de políticas específicas voltadas para o acesso a esse tipo de combustível, como o vale-gás, o número de pessoas nessa situação ainda é bastante elevado”, observa.  

Miro destaca a importância de considerar os contextos rurais e culturais onde o uso da lenha é tradicional, sublinhando a necessidade de campanhas de conscientização sobre os riscos desse hábito para a saúde e o meio ambiente.

Para ele, é possível tornar a política pública mais eficiente, utilizando, por exemplo, o Cadastro Único — já adotado pelo Governo do Estado na distribuição do vale-gás. 

O especialista enfatiza, ainda, a importância de uma avaliação criteriosa para determinar se o principal obstáculo são as restrições orçamentárias ou a necessidade de um mapeamento mais eficaz para identificar com precisão os grupos vulneráveis.

“Na minha visão, a falta de recursos não é o principal problema — o desafio é fazer com que o benefício chegue, de fato, às famílias que mais precisam”, avalia.

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Como aprimorar políticas públicas contra a pobreza energética

O presidente do Sindicato Nacional das Empresas Distribuidoras de Gás Liquefeito de Petróleo (Sindigás), Sérgio Bandeira de Mello, ressalta que, de acordo com dados do IBGE, 91% dos lares brasileiros declaram utilizar GLP, e 96% dispõem de equipamentos apropriados para o seu uso, ao passo que 19% ainda utilizam lenha como fonte de energia.

“Essa sobreposição não é casual; muitas pessoas em situação de vulnerabilidade, mesmo possuindo fogão e botijão, utilizam o gás apenas para atividades extremamente convenientes e rápidas. Como são  vulneráveis, tratam a lenha e gastam mais energia usando-a", analisa.

"Com isso, elas perdem tempo de vida, tempo de recreação das crianças e tempo de estudo catando lenha. A precariedade é impressionante, ficando sujeitas a picadas de cobra e escorpião”, completa. 

Considerando o cenário em que o GLP representa um custo inacessível para uma parcela expressiva da população, é examinar a complexidade dessa situação para a implementação de medidas eficazes.

Para Mello, essa mesma população, embora possua as instalações necessárias para a utilização do gás, enfrenta dificuldades na sua aquisição ou se vê obrigada a economizá-lo diariamente para garantir a alimentação e o pagamento do aluguel.

“O recurso destinado a essas famílias em grande vulnerabilidade precisa ser carimbado. São pessoas que vivenciam o drama de, todos os dias, ter de escolher entre comprar o caderno, o leite ou o gás, por exemplo”, exemplifica.

Nesse contexto, recomenda-se tomar como referência países que obtiveram sucesso no combate à pobreza energética, adotando programas focalizados com destinação específica de recursos e ações.

Mello argumenta que subsídios amplos são fiscalmente onerosos e pouco eficazes. Ele considera o vale-gás um progresso significativo (80%), mas enfatiza a necessidade de ampliar as ações para assegurar o acesso ao gás de cozinha, considerando o botijão a tecnologia mais acessível e amplamente difundida em todos os municípios brasileiros.

Segundo ele, o programa federal Gás para Todos, o qual substituirá o atual Auxílio Gás, ajudará a corrigir essa falha. A nova inciativa prevê a distribuição gratuita de botijões de gás de 13kg, a cada dois meses, por meio de revendedoras credenciadas, substituindo o atual auxílio fixo de R$ 102. No entanto, ainda faltam detalhes sobre a modelagem do programa. 

O presidente do Sindicato dos Revendedores de Gás do Ceará (Sincegás-CE), José Ruberval Arruda, reforça a necessidade de intensificar a eficácia das políticas públicas. "Há casos de pessoas em situação de necessidade que ficam sem o benefício, enquanto outras, que não necessitam, acabam sendo contempladas. É necessário um estudo mais aprofundado sobre o tema”, diz. 

Quando a política pública falha em alcançar quem precisa

Citada no início desta reportagem, Elenilza, embora seja elegível, não recebe atualmente nenhum tipo de auxílio do governo. O Diário do Nordeste procurou a Secretaria de Direitos Humanos e Desenvolvimento Social (SDHDS) para entender como o órgão tem atuado na busca ativa de pessoas em situações semelhantes.

A SDHDS informou que enviará uma equipe do Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF) e do Cadastro Único à residência de Elenilza para realizar a inscrição de dados para acesso ao Bolsa Família e ao Programa Vale Gás.

Em Fortaleza, destacou, são oferecidos atendimentos presenciais para atualização ou inscrição nos 49 Núcleos de Atualização (ver endereços neste link).

A reportagem também entrou em contato com o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, além da Casa Civil do Ceará, para entender de que forma os governos identificam as famílias nessa situação e quais medidas estão sendo adotadas.

Até a publicação desta reportagem, não houve resposta. Em caso de manifestação futura, este conteúdo será atualizado.

Pobreza energética reflete desigualdades estruturais de cor e gênero

Alesandra Benevides, professora dos cursos de Ciências Econômicas e de Finanças da UFC em Sobral, acrescenta que essa realidade está relacionada à pobreza crônica, que atinge uma parcela expressiva da população, sobretudo no Ceará.

Segundo ela, essa forma de pobreza é caracterizada por fatores como baixa escolaridade — geralmente menos de sete anos de estudo —, predominância de mulheres pardas residentes na zona rural e acesso limitado a serviços básicos.

“Diferente da pobreza transitória, a crônica é duradoura e, muitas vezes, intergeracional, passando de pais para filhos”, destaca.

Embora políticas públicas como o Bolsa Família e o Fundo Estadual de Combate à Pobreza (Fecop) apresentem impactos positivos, romper esse ciclo ainda é um grande desafio.

Nesse cenário, apesar dos avanços, alguns projetos têm perdido o foco. Para Benevides, é fundamental avaliar a forma como essas políticas estão sendo implementadas, já que o problema estrutural persiste.

Quais são os riscos para a saúde 

Na realidade vivida por dona Elenilza, mencionada no início desta reportagem, a única alternativa, quando há alimento disponível, é recorrer a um fogão improvisado.

Ela e o marido tentam se revezar no uso do equipamento para reduzir a exposição à fumaça, mas, em muitas ocasiões, não há outra opção.

Com isso, dona Elenilza acaba se submetendo à inalação da fumaça tóxica para preparar algo simples, como o mingau da mãe, o que tem provocado inflamações frequentes em seus olhos.

O médico Ricardo Coelho Reis, chefe do Serviço de Pneumologia do Hospital Universitário Walter Cantídio (HUWC), alerta que a inalação do vapor proveniente da queima de lenha pode causar irritações nos olhos e na garganta, além de desencadear quadros como faringite, sinusite e rinite, com possibilidade de evolução para doenças mais graves.

“A exposição a essa fumaça provoca efeitos semelhantes aos do cigarro, podendo levar ao desenvolvimento de Doença Pulmonar Obstrutiva Crônica (DPOC)”, afirma o especialista.

Ele explica ainda que a imunidade também pode ser comprometida, pois as células de defesa do organismo permanecem em constante estado de alerta para combater partículas estranhas. 

“Essa ativação contínua sobrecarrega o sistema imunológico, fazendo com que as células fiquem 'ocupadas demais' e não consigam responder adequadamente a outros agentes, como vírus e bactérias”, observa. 

O médico frisa que não existe fumaça inofensiva. Mesmo produtos como incensos e espirais repelentes de mosquitos podem ser prejudiciais à saúde, especialmente quando há exposição frequente e prolongada à fumaça tóxica.

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