‘Fui demitida assim que voltei da licença’: o drama dos trabalhadores com burnout

Síndrome foi reconhecida como doença do trabalho neste ano. Empresas devem fazer mudanças concretas para evitar casos

Escrito por Lívia Carvalho , livia.carvalho@svm.com.br
Legenda: Pressão por cumprimento de metas e altas cobranças no trabalho podem desencadear síndrome
Foto: Thiago Gadelha/SVM

Telefone toca. Mais uma ligação e uma tentativa de resolver os problemas de clientes. Estresses, abusos e muita pressão. Parar cinco minutos é possível? Não dá, tem que bater a meta do mês. O expediente encerra, e amanhã começa tudo de novo.  

A rotina parece até absurda, mas é comum e faz parte do dia a dia de diversos trabalhadores. Joana*, por exemplo, recebeu o diagnóstico de burnout em 2021 e, desde então, sofre as consequências de um ritmo de trabalho adoecedor.   

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"A pressão pelas metas era muito alta, os clientes descontavam todas as insatisfações deles com a empresa na gente e tínhamos a obrigação de contornar a situação, mesmo sendo algo fora do nosso controle. Éramos culpados por receber nota baixa, culpados por várias coisas”, relata a ex-atendente de telemarketing. 

Hoje, Joana faz tratamento com pelo menos três remédios de prescrição psiquiátrica e não conseguiu retomar às atividades.  

Acabou com o meu psicológico tudo o que passei. Tive episódios de tentar contra minha própria vida. Hoje não consigo mais trabalhar, tentei mais só de me imaginar passando pela mesma situação”, diz.  

‘Queriam que a gente desse 150%’ 

Antes do afastamento definitivo da empresa, Joana ficou um ano em licença médica após receber o diagnóstico. O que ela não esperava, contudo, é que o contrato seria encerrado sem maiores explicações.   

Passei 3 anos na empresa, mas me afastei durante um ano por conta de tudo o que aconteceu. Quando eu voltei, achava que iria passar por um novo treinamento, alguma mudança de função, mas não, com três dias me demitiram, sem dizer nada”. 
Joana

“Eles não queriam que a gente desse 100%, queriam que a gente desse 150%, mais do que a gente poderia dar”, acrescenta. 

Doença do trabalho 

Em pauta desde 2020, primeiro ano de pandemia, a síndrome de burnout tem se tornado cada vez mais comum nas empresas. Reconhecida como doença do trabalho neste ano pela Organização Mundial de Saúde (OMS), o quadro de quem é diagnosticado com a condição é similar ao de Maria.  

A psicóloga e integrante do Núcleo de Psicologia do Trabalho da Universidade Federal do Ceará (UFC), Eveline Nogueira, explica que a síndrome é caracterizada por um estado de tensão emocional e estresses constantes relacionados diretamente ao trabalho.  

Esse quadro não se refere somente a pessoa em si, mas a pessoa relacionada a seu trabalho. Os profissionais da educação, da saúde, da segurança, por exemplo, são os mais afetados. São colocados em condições de trabalho desgastantes, altas cobranças”.  
Eveline Nogueira
psicóloga

Além disso, a psicóloga pondera que outros fatores podem desencadear a situação, como prazos limitados, levar trabalho para casa, exigências exageradas, locais de trabalho com muita tensão.  

O diagnóstico do burnout é exclusivamente clínico e deve ser feito por um profissional da área, conforme destaca Nogueira. A empresa não pode atestar a doença, mas tem a responsabilidade de indicar e orientar o funcionário para que passe por uma avaliação.  

Assim, a empresa tem papel fundamental para evitar o agravamento ou mesmo o surgimento de casos como o de Joana. “Algumas empresas realizam ações pontuais, mas é preciso oferecer o mínimo. O ideal é que se possa oferecer um plano de saúde, que é uma válvula de cuidado para esse funcionário”.  

O que as empresas estão fazendo?  

Constatando os impactos da pandemia na saúde dos trabalhadores, especialmente a mental, o Grupo Carmehil aderiu à musicoterapia na rotina laboral dos funcionários desde outubro do ano passado. O objetivo, de acordo com a gerente de Gente & Gestão da empresa, Denyse Nunes, é fornecer uma ferramenta para que os colaboradores possam manejar melhor questões emocionais.  

“É um recurso, um processo terapêutico que auxilia os colaboradores com essa nova rotina do retorno ao trabalho presencial. Para que possam manejar melhor suas inseguranças, medos, as questões pessoais e do trabalho. Muitas pessoas perderam entes próximos, adoeceram”, conta. 

A ação acontece uma vez por semana e em grupos e, para Nunes, os resultados têm sido bastante satisfatórios tanto para os colaboradores quanto para a própria empresa, já que a atividade tem aumentado a capacidade interativa de quem participa.  

Eles estão buscando mais saúde física, percebemos alterações positivas de humor. Tínhamos um índice meio alto de atestado, de afastamentos com relação à depressão, ansiedade, estresse, e esses motivos têm reduzido. Também temos percebido mais energia nas pessoas, mais motivação, determinação”. 
Denyse Nunes
gerente de Gente & Gestão

Já na Companhia Siderúrgica do Pecém (CSP), a pauta é foco do setor de psicologia da empresa desde 2016. A psicóloga Regiane Freire conta que ações como oficinas para lideranças, grupos terapêuticos para os funcionários, além de notícias para psicoeducar os colaboradores são rotina na companhia.  

“Quando a pandemia chegou, não fomos pegos de surpresa nesse quesito, nós apenas intensificamos as ações que já fazemos. Hoje, eu faço atendimento dos nossos colaboradores, em já faço algumas intervenções e encaminhamento pra auxílio externo, quando necessário”, explica. 

A psicóloga destaca ainda que o trabalho realizado pelo setor tem como objetivo a prevenção, para que os colaboradores tenham mais consciência de procurar ajuda quando não tiverem bem. Além disso, Freire pontua que é feito também um acompanhamento com aqueles que se afastam por questões de saúde mental.  

Não deixamos totalmente na mão do empregado, porque sabemos que alguns deles não conhecem ou têm dificuldade. Se precisar, falo com a família, porque, por mais que estejamos falando muito de saúde mental, ainda tem muito tabu, tem gente que não entende”.    
Regiane Freire
psicóloga

Ações precisam de planejamento  

Para auxiliar as empresas e indústrias no planejamento e mapeamento de programas voltados à saúde do trabalhador, o Serviço Social da Indústria Ceará (Sesi) promove o Programa de Qualidade de Vida (PQV), desenvolvido pelo Centro de Inovação SESI (CIS).  

De acordo com a psicóloga Ana Karine Andrade, as indústrias podem buscar o serviço e, a partir disso, é feito um diagnóstico para entender como funciona a realidade do trabalho. Assim, são realizados planos de ação voltados não só para o trabalhador, mas também para a organização.  

“Nós fazemos um levantamento do perfil de saúde dessa empresa. A gente nunca foca só num ponto, você não trabalha só com burnout, são muitas coisas, saúde mental engloba também nutrição, atividade física e saúde mental e o nosso foco são as mudanças de comportamento", detalha.  

Andrade destaca ainda que são feitas, inicialmente, ações pontuais naquelas empresas que não estão prontas para realizar um programa como esse. “Uma ação pontual não é capaz de promover mudanças comportamentais, é preciso estimular esse estilo de vida mais saudável”.  

“O burnout é exclusivamente do trabalho, é uma doença que acarreta incapacidades do trabalhador, é uma ponta do iceberg, então é preciso entender o que tem por trás. Por isso, nós trabalhamos com essa investigação”. 
Ana Karine Andrade
psicóloga do Sesi

Mudança de cultura 

Essa perspectiva é reforçada pela psicóloga Eveline Nogueira, que aponta que ações pontuais, se não houver o básico, não são efetivas. “Não adianta colocar um espaço de meditação ou ginástica laboral se quando voltar para o posto de trabalho, vai ter que desempenhar função de cinco pessoas”.  

“As empresas precisam reequilibrar essas atividades, e isso demanda esforço e dinheiro, mas é preciso investir para ganhar produtividade através da saúde do trabalhador, uma remuneração equivalente também precisa ser avaliada”, diz.  

Por isso, Nogueira pondera que é necessário oferecer ao trabalho condições apropriadas de trabalho, como um tempo e espaço para que o colaborador faça suas refeições de forma adequada, intervalos para ir ao banheiro e evitar excessos de carga laboral.   

"As empresas precisam fazer essa reorganização, o papel não é do trabalhador, é preciso construir um mundo onde as empresas consigam ter produção, mas com saúde”. 
Eveline Nogueira

Como reconhecer a síndrome?  

Entre os sintomas mais comuns da síndrome está o esgotamento físico e mental, além de dores de cabeça, enxaqueca, sudorese, palpitação, dores musculares, insônia e até distúrbios gastrointestinais, sentimentos de fracasso e insegurança, fadiga, alterações no apetite.   

O índice alto de ausência, atitudes agressivas, irritabilidade, atitudes de isolamento social cada vez mais intensos, lapsos de memória, baixa autoestima, dificuldade de se concentrar também são sinais que podem indicar a doença.  

“Geralmente, são pessoas que tinham um nível de produtividade muito bom e, por conta disso, se veem esgotados e acabam apresentando uma redução de rendimento. O trabalhador adoecido não produz”, conclui.   

Dessa forma, a psicóloga alerta que as equipes de trabalho e de supervisão devem ficar atentas caso identifiquem algum desses sinais em um colaborador, já que podem estar associados à síndrome. 

*Nome alterado para preservar a identidade do entrevistado 

Caso você esteja se sentindo sozinho, triste, angustiado, ansioso ou tendo sinais e sentimentos relacionados a suicídio, procure ajuda especializada em sua cidade. É possível encontrar apoio em instituições como o Centro de Valorização da Vida (CVV), os Centros de Atenção Psicossocial (Caps). O CVV funciona 24 horas (também em feriados) pelo telefone 188 e também atende por e-mail e chat (acesse https://www.cvv.org.br/). Os Caps oferecem ajuda profissional. No Ceará, procure os Caps (clique e veja a relação completa dos Caps de Fortaleza) e o Hospital de Saúde Mental, telefone: (85) 3101.4348.

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