Como inserir os jovens de baixa renda no mercado de profissões do futuro

Reportagem especial mostra os caminhos para facilitar o ingresso dos mais pobres na economia digital, e estudantes relatam como políticas públicas educacionais implementadas em Fortaleza transformaram suas vidas

Escrito por Bruna Damasceno , bruna.damasceno@svm.com.br
Mão sobre o teclado. Ao fundo, um estudante de camisa vermelha
Legenda: A inclusão digital é fundamental para reduzir as desigualdades sociais
Foto: Kid Jr / SVM

Em 2017, Kawhan Santos, hoje com 22 anos, foi o primeiro da família a entrar em uma universidade. Aos 17 anos, saiu de Redenção, no Interior do Ceará, para cursar engenharia civil em uma faculdade particular de Fortaleza. Foi aquele alvoroço em casa.

Arrebatados pelo orgulho dessa primeira conquista familiar, o avô, a mãe e as tias juntaram as economias para custear as passagens de ônibus e os materiais. Após quatro semestres, no entanto, o jovem precisou dar alguns passos para trás.

Em 2019, a bolsa de 50% ainda não era o suficiente para sustentar o sonho. Kawhan precisou trancar a faculdade devido às dificuldades para arcar a mensalidade, o transporte e alimentação. Começou a procurar emprego, enquanto estudava por conta própria para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e para concursos públicos. Dois anos de portas fechadas. 

A chave só começou a virar a partir de 2021, em meio ao lockdown imposto pela pandemia de Covid-19. Impossibilitado de procurar uma colocação no mercado, ele entrou no Programa Juventude Digital, da Prefeitura de Fortaleza, para se capacitar gratuitamente e de casa. 

Fez diversos cursos relacionados à tecnologia ao longo daquele ano. Também começou 2022 se qualificando com modalidades mais abrangentes ofertadas pelo programa, até que, em junho, conseguiu um estágio na Controladoria Geral do Município (CGM). Após cinco meses, foi contratado. 

Personagem no computador
Legenda: Após capacitações no Juventude Digital, Kawhan Santos, de 22 anos, conseguiu entrar no mercado de trabalho
Foto: Kid Jr / SVM

Agora, com o salário garantido e novas habilidades digitais, voltou a sonhar com o primeiro diploma na parede da casa da família em Redenção, mas também com uma profissão no setor emergente de tecnologia.

Políticas contra a desigualdade

Assim como ele, por maior que seja o esforço, pessoas de baixa renda enfrentam uma jornada acadêmica e profissional cercada de agruras. Portanto, as políticas públicas de qualificação colocam a empregabilidade no horizonte da população socialmente desfavorecida, incluindo impacto positivo sobre salários mais elevados.

O conjunto de medidas evita o aprofundamento da desigualdade de renda e afasta os estudantes de estatísticas como a dos 346 mil desalentados no Ceará, segundo Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua Anual (Pnad), realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). 

O desafio é preparar esses jovens que, em muitos casos, possuem uma educação de qualidade deficiente para um mercado de trabalho em acelerado processo de transformações impulsionadas pelas tecnologias e adaptações sociais.

Para se ter ideia, 65% das crianças que estão começando a estudar terão profissões hoje inexistentes, segundo relatório do Fórum Econômico Mundial.

Já é possível notar rearranjos ao encontro desse futuro, como a substituição de trabalhadores por robôs e a extinção de cargos. Todavia, outras portas já se abrem com o surgimento de novas áreas, mas não para todos.

Esses movimentos demonstram a demanda por novas qualificações que englobem competências digitais, mas também jogam luz sobre a necessidade do letramento digital ainda na base de ensino.

Nesse contexto, falar sobre as "profissões do futuro" suscita a discussão sobre a exclusão digital como um dos fatores de perpetuação do ciclo da pobreza.

Enquanto o País registra a chegada da quinta geração da Internet, mais de 28 milhões de brasileiros acima de 10 anos ficaram fora da rede em 2021, segundo Pnad Contínua (4º trimestre de 2021),

Na pandemia de Covid-19, a dificuldade de acesso à tecnologia agravou as desigualdades sociais. Com as escolas fechadas, parte dos estudantes de baixa renda não tinha como garantir o aprendizado em casa  – e nem a alimentação. Esses e outros fatores de vulnerabilidade social reduzem as perspectivas profissionais desta população. 

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Nesse contexto, o questionamento que se levanta é como esses jovens mais pobres, já em desvantagem na corrida pelo emprego, poderão assumir essas vagas de trabalho na economia digital? 

Nesta reportagem especial de dois episódios, especialistas ouvidos pelo Diário do Nordeste apontam os caminhos, e estudantes relatam como políticas públicas educacionais implementadas em Fortaleza transformaram suas vidas.   

Exclusão digital ameaça o futuro profissional de jovens mais pobres

A pesquisadora do Centro de Análise de Dados e Avaliação de Políticas Públicas (Capp) do Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (Ipece), Natália França, explica ser fundamental garantir a inclusão digital, atacando o problema que dificulta ou inviabiliza a transformação da realidade da estrutura familiar dos mais pobres. 

“Os prejuízos que esses jovens de baixa renda estão tendo (e continuarão a ter) no mercado de trabalho em detrimento da exclusão digital geram efeitos perversos para toda a sociedade. Contribuem para aumentos nos índices de pobreza, dada a dificuldade de inserção, o que pode elevar a tensão social; ampliação da desigualdade de renda; redução na participação social; entre outros”, enumera. 

França reflete ser “difícil falar de meritocracia em uma sociedade com altos índices de desigualdade, em que poucos têm muito e muitos têm tão pouco”. 

Nesse cenário, sugere, cabe ao Estado adotar políticas afirmativas para dar melhores condições de vida para a população excluída (tanto social quanto digitalmente) para reduzir o hiato entre diferentes camadas da sociedade.

"É extremamente importante que a luta pela mitigação da exclusão digital e social seja encampada pelo governo e por toda a sociedade civil”, destaca.  

Mudanças devem começar ainda na escola e considerar contexto social

As qualificações técnica e profissional são as últimas etapas para a inserção de jovens mais pobres na economia digital. O primeiro passo começa com a correção das deficiências da formação educacional básica e a inclusão digital. 

O doutor em Educação e professor do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS), Gregório Grisa, pondera também ser crucial considerar todas as questões que envolvem a realidade social dos estudantes para definir medidas eficazes.

“Estamos num País em que você não pode pensar em políticas educacionais para dentro da escola e apenas de responsabilidade da pasta da educação. O grande desafio é conceber políticas intersetoriais, especialmente na infância e no ensino fundamental”, avalia.

Grisa acrescenta a importância de diálogo entre gestão municipal, estadual e diferentes secretarias, incluindo educação, saúde e assistência social “para construir um cinturão de proteção" para crianças e jovens em situação de vulnerabilidade. 

“Infelizmente, a estrutura da oferta brasileira faz com que os alunos mais vulneráveis sejam aqueles que estão em piores escolas, com condições debilitadas de infraestrutura e professores de pior formação”, lista, apontando que as regiões Norte e Nordeste são as mais prejudicadas por essas circunstâncias.  

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Grisa lembra, ainda, ser essencial abranger ações para suprir a lacuna de aprendizagem durante a pandemia. Dentre as medidas sugeridas, estão: 

  • Ampliação do tempo do estudante na escola;
  • No contraturno, além das atividades esporádicas, oferecer a recuperação;
  • Grupos de apoio pedagógico nas escolas;
  • Mais profissionais para o planejamento e identificação das dificuldades para a recuperação da aprendizagem;
  • Avaliação mensais, trimestrais e semestrais para atacar os problemas de maneira adequada.   

"Colhendo os frutos"

Personagem digitando
Legenda: Em breve, Kawhan será o primeiro da família a ter um diploma de ensino superior. Uma conquista que os familiares não tiveram em razão das faltas de oportunidades
Foto: Kid Jr / SVM

Agora com a carteira assinada, Kawhan Santos, de 22 anos, citado no início desta reportagem, se organiza para realizar o sonho de concluir o nível superior. 

“Quero muito me formar. É algo que ninguém da minha família conseguiu por falta de oportunidades, uma família pobre e do Interior”, conta. Kawhan recorda que, há quatro anos, quando veio para Fortaleza estudar, “foi um momento emocionante e de muito orgulho para a família”.

Até então, o jovem morava na casa do avô, com a mãe e as tias. O núcleo familiar ofereceu uma rede de apoio para a manuteção dele em Fortaleza. No começo, o estudante tinha apenas um celular.

Com o tempo, conta, contratou o serviço de internet. Durante a fase crítica da pandemia, os cursos online puderam ser feitos graças ao notebook emprestado da namorada. 

Para ele, o projeto Juventude Digital foi crucial para ampliar seu conhecimento e adquirir competências digitais antes inacessíveis. Conhecer as possibilidades desse mercado também o fez ter planos para uma nova carreira como analista de desenvolvimento de sistemas. 

“Hoje, estou colhendo os frutos. Foi uma política pública que me deu a oportunidade de ser contratado em um órgão da prefeitura que tem possibilidades vastas, poder aprender e adquirir experiência”, relata. 

Recursos para inclusão digital ainda são um gargalo no Brasil 

criança em sala de aula
Legenda: Prejuízos em repasses do Fundeb põem em risco qualidade da educação pública
Foto: Fabiane de Paula

O especialista Gregório Grisa pondera que oferecer equipamentos e internet para a população vulnerável é insuficiente para essa transição tecnológica demandada pelo mercado de trabalho, sendo necessária a formação contínua de professores e de alunos para o uso dessas ferramentas. 

“É claro que garantir um computador e a internet ainda é o nosso desafio. A gente está na porta de entrada de uma casa enorme que, para você chegar do outro lado, é preciso um conjunto amplo de políticas que vai muito além de dar um computador”, afirma. 

Grisa lembra os retrocessos em relação aos investimentos para assegurar o processo de conectividade e de inclusão digital no governo Bolsonaro (PL).  Dentre eles, cita, o veto presidencial sobre o projeto (PL 3477/20) que previa ajuda financeira para alunos e docentes da rede pública custearem a conexão de casa, no início da pandemia, em 2021.

O texto era de autoria do deputado cearense Idilvan Alencar (PDT-CE) e de outros 23 parlamentares. Após a repercussão negativa do veto, foi desenhada a medida provisória (1077/2021) que criou o Programa Internet Brasil, aprovado somente em maio deste ano.

O texto possui menor abrangência por excluir professores. Contudo, garante o acesso gratuito à internet em banda larga móvel aos alunos da educação básica da rede pública de ensino a integrantes de famílias inscritas no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal. 

A educação brasileira também amargou corte do repasse do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), que destina recursos por cada aluno matriculado aos municípios.

Em Fortaleza, por exemplo, as perdas foram estimadas em R$ 600 milhões. A prefeitura já anunciou que entrará com ação de indenização na Justiça Federal para receber diferenças.  

Diário do Nordeste solicitou ao Ministério da Educação (Mec), por e-mail, mais informações sobre as medidas voltadas para a inclusão digital, mas não recebeu uma reposta até a publicação desta reportagem.

O que Fortaleza tem feito para viabilizar a inclusão digital e a inovação na rede de ensino

Veja as ações para a formação dos os estudantes:

  • Segundo a Secretaria Municipal da Educação (SME), para fortalecer as ações de inovação e tecnologia na rede municipal, em agosto passado, foi lançado "Tech Educa". O objetivo é oferecer conectividade, equipamentos e materiais pedagógicos, formação e incentivo à pesquisa. As ações totalizam um investimento de R$ 67 milhões a ser implementado até 2024;
  • Outra ação, segundo a pasta, é o repasse de aporte financeiro para a instalação de internet de qualidade nas unidades escolares. Para o “Escola Conectada” foram destinados R$ 3 milhões, em agosto. O investimento foi de R$ 6 milhões, segundo a pasta;
  • O pacote de ações voltadas à inovação, ciência e tecnologia prevê ainda a implantação 200 salas de “cultura maker” (transformar em ideias em realidade), com investimento de R$ 20 milhões. 

Veja as ações para a capacitação dos professores:

  • A SMS  também reforça possuir, desde 2017, a Célula de Inovação Educacional para atuar no uso das tecnologias digitais na prática pedagógica. Entre 2019 e 2020, foram realizados ciclos de formação para professores, gestores e técnicos em educação com temáticas variadas, referente ao uso de tecnologias na educação. Em 2021, foram formados 500 docentes.  Atualmente, 1150 professores, gestores e técnicos recebem a formação para utilização de ferramentas digitais. 
  • O corpo docente também pode aprimorar os conhecimentos pela Escola Digital de Fortaleza e pela Academia do Professor Darcy Ribeiro.

“Atualmente, a Secretaria está trabalhando na requalificação da plataforma, fortalecendo as possibilidades para professores, gestores, alunos e pais aprimorarem o uso das tecnologias digitais”, informou. 

Ações para viabilizar equipamentos e internet durante a pandemia:

  • Em 2020, a Prefeitura afirma ter entregado cerca de 242 mil chips, com recarga mensal de 20 GB, com pacote de dados para todos os estudantes matriculados na Rede e para os profissionais envolvidos nas ações de ensino e combate à evasão escolar. Para a finalidade, o município investiu recursos da ordem de R$ 29.918.459,97;
  • A SME comunicou a aquisição de 50 mil tablets para estudantes do 5º e 9º ano do Ensino Fundamental e da última etapa da Educação de Jovens e Adultos (EJA), assim como todos os alunos com deficiência e os atendidos nas Casas de Acolhimento, matriculados na Rede Municipal, independentemente da série. Para a aquisição dos aparelhos, a Prefeitura afirma ter desembolsado R$ 45.505.000,00;
  • Já para os profissionais que atuam no processo pedagógico da Rede Municipal foram distribuídos, em 2021, 12.033 chromebooks (tipo de computador). Para a aquisição dos aparelhos tecnológicos, a Prefeitura afirma ter investido R$ 24.591.360,78;
  • Para 2023, o município garante estar adquirindo outros 86 mil tablets, com a perspectiva de beneficiar as demais séries do Ensino Fundamental no ano letivo de 2023. O investimento previsto é de R$ 56.721.300,00.

No segundo e último episódio desta reportagem, especialistas discutem como o foco na qualificação profissional ajuda a preparar os jovens mais pobres para o mundo atual do emprego. 

 

 

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