Com o sustento do filho em jogo, desistir de empreender não é opção: ‘era o que eu tinha’
Nesta matéria da série Mães Empreendedoras, Karolayne de Lima lembra dos desafios de empreender tão nova, fazer faculdade, cuidar da casa e do filho
Fé. Substantivo feminino que significa, de acordo com o dicionário, confiança absoluta em alguém ou em algo. Os mais religiosos costumam dizer que fé é assim: primeiro você coloca o pé, depois você coloca o chão.
Nesta série de reportagens “Mães Empreendedoras”, você já conheceu a história da Priscila Nóbrega e da Maria Helena de Sousa. Nesta matéria, apresentamos Karolayne de Lima, 25.
Veja também
Poucos minutos de conversa com Karolayne revelam que empreender é um ato de fé. E que essa fé pode ser a mesma que guia no escuro alguém que teve de enfrentar a dura jornada de uma maternidade inesperada. No caso dela, aos 15 anos. Já se passou uma década desde então e, junto com Samuel, seu primeiro filho, cresceu a sua empresa, que presta serviço de alimentação e lazer para eventos.
Mas, assim como ela mesma e o marido, Paulo, dizem, quem vê o negócio hoje mais estável, com seis anos no mercado, pode não fazer ideia das renúncias e das apostas que foram necessárias para que a empresa desse certo.
E isso foi feito não apenas com base no sonho do empreendedorismo, mas sobretudo amparado na necessidade. Quando determinada alternativa é a única que se tem - e é preciso sustentar uma criança - você agarra-se àquilo como se a sua vida dependesse disso. Porque a ideia é basicamente essa.
Sonho de empreender
Eles tinham um pula-pula e um sonho. Na verdade, antes disso, eles tinham o sonho de comprar uma cama elástica. Na periferia de Fortaleza, onde as opções de lazer ainda são escassas, é mais comum ver pessoas colocando equipamentos particulares para as crianças brincarem como uma forma de ganhar dinheiro.
Paulo, pai de Samuel e à época namorado de Karolayne, estava desempregado e ávido por uma renda. O vizinho, que colocava um pula-pula na rua e cobrava R$ 1 por criança, fez a proposta: Paulo ficaria na rua, cuidando do equipamento do vizinho e olhando as crianças, e no fim da noite, o apurado seria dividido pela metade.
“Tinham dias que ele ganhava R$ 100, então ele (o vizinho) ficava com R$ 50 e dava R$ 50 para o Paulo. Para a gente, que não tinha nada, aquilo era muito dinheiro, né?”, lembra.
Karolayne também acabara de ficar sem renda, já que havia encerrado seu contrato como jovem aprendiz em um supermercado. Ela reforça que aquele dinheiro, apesar de também ser pouco, já era algo. Para quem tinha um filho pequeno, qualquer coisa era uma ajuda.
“Com o Paulo desempregado e eu também, eu cheguei para ele e disse: ‘ou a gente pega, junta o dinheiro que tem, paga as contas e no próximo mês vão vir as mesmas contas, mas não vai ter mais dinheiro, ou a gente se aperta um pouco e compra alguma coisa para tentar ganhar dinheiro’”, revela Karolayne. Ali era um dos primeiros passos de fé que ela dava rumo a seu destino.
Foi aí que veio a ideia: comprar um pula-pula com a ajuda dos pais de Karolayne e, ao invés deles terem que dividir o apurado do uso do equipamento, o dinheiro seria apenas de Paulo e Karolayne.
Parecia uma ideia muito simples, não tinha erro. Certo? Não foi bem assim. “A gente colocava às vezes na rua e apurava só R$ 10. E eu pensava: ‘meu Deus, (não paga) nem o meu trabalho de montar’. Dá muito trabalho montar e desmontar”, diz Karolayne, entre risos.
Mas aí eu fui persistindo, porque era o que eu tinha, então eu tinha que me apegar àquilo. Aí o Paulo dizia: ‘eu disse que não ia dar certo. Tu se iludiu’. E eu: ‘tem calma, vai dar certo!’”.
A virada de chave do negócio
Eles ficaram cerca de oito meses com a cama elástica. Até que veio uma das primeiras grandes viradas de chave do negócio. Uma amiga de Karolayne precisava de ajuda para comprar um pula-pula. Essa amiga, porém, teve uma visão diferente: a de alugar o equipamento para eventos infantis. Karolayne se interessou e buscou saber mais sobre como entrar no ramo.
“Eu passava o dia fissurada naquele Facebook tentando arranjar evento. Nosso primeiro evento nós cobramos R$ 70 por quatro horas de pula-pula e é aí que entra a questão do apoio”, diz, lembrando mais uma vez da ajuda dos pais na empreitada.
O pai de Karolayne tem um Gol ano 1992, veículo no qual eles acomodavam o brinquedo. Além de emprestar o carro, ele cedia o celular para que os dois fizessem fotos e divulgassem o trabalho, já que na época eles não tinham condições de ter um. “Tem um ensinamento que a palavra de Deus diz, que temos que dar honra a quem nos honra, né?”, relata, com os olhos cheios de ternura.
Todo recurso que a gente tinha, a gente voltava para o Samuel. Então não tinha, por exemplo, um celular bom para tirar foto. A gente nem tinha um celular, então meio que a gente improvisava”.
A partir de então, vários atos de fé foram compondo a história do negócio. Primeiro, o algodão-doce, depois a pipoca, depois outros lanches como churros, sanduíche natural e mini-árabes, tudo com muita honestidade de dizer ao cliente que os dois “estavam começando”.
“As pessoas fechavam contrato e perguntavam: ‘ah, mas vocês não têm também um algodão-doce?’ E a gente respondia: ‘Temos!’ (risos) e a gente não tinha. E aí pensava: ‘vamos ter que comprar uma máquina!’. É aquela coisa da fé. A gente era muito sangue no olho. A fé é aquilo que você não enxerga, mas acredita”, diz Karolayne. Eles buscavam aprender no YouTube a fazer as novidades e tudo foi dando certo.
Paralelamente a isso, Samuel crescia. Ao passo que a empresa foi ficando mais estável, foi crescendo também no coração de Karolayne, que até pouco tempo antes disso dizia que não ia mais ter filhos, a vontade de ser mãe novamente. A notícia de que estava grávida de Liz veio em um momento de franco crescimento do negócio, logo após a pandemia, que reprimiu a demanda de eventos.
A perda da filha e novas esperanças
Ainda na gestação, Karolayne experienciou novamente o mais puro e íntimo de sua fé: descobriu uma má-formação na bebê. Optou por seguir com a gestação até o fim. Liz nasceu e faleceu logo em seguida. Karolayne revela que sequer teve tempo de digerir o luto nesse meio tempo, já que a empresa estava "a todo vapor", com até oito eventos distribuídos de quinta a domingo.
“E eu e o Paulo temos uma cobrança muito grande. Aquele cliente, a gente não sabe se ele tem o hábito de comemorar todos os anos. A gente sempre capacita nossa equipe no sentido de que, para nós, é mais um evento, mas para aquela família, não. Para aquela família, é um sonho, então a gente sempre diz (aos colaboradores) para fazerem o melhor sempre”, recorda Karolayne.
Após o falecimento de Liz, ela conta que se sentiu perdida. Entre lágrimas, lembra de uma vez que foi a uma loja infantil e viu um artigo bonito: uma espécie de fralda de pano com cabeça de ursinho.
Aquilo lhe chamou a atenção e uma vendedora explicou que o artigo se chamava "naninha" e que era para bebês. Foi ali que veio uma espécie de epifania que provocou uma forte reflexão sobre o modo de viver a vida, principalmente sobre prioridades.
“Aí eu parei e pensei: meu Deus, minha filha morreu e eu não sabia o que era essa naninha. Eu senti que eu não tinha vivido aquele processo, porque eu tinha dedicado tudo para as coisas continuarem funcionando na empresa”, conta, entre lágrimas.
“Foi um processo muito difícil, porque eu dei tudo que eu tinha para que o negócio continuasse e não vivi a gravidez da forma que eu desejava e com as lembranças que eu desejava”
A dor de não ter vivenciado da forma que acha que deveria todos os processos com sua filha Liz se unem à culpa por renunciar a ter mais tempo com o Samuel em nome de suprir as necessidades financeiras da família e catapultar o negócio, mesmo ela tendo consciência de que empreender não era uma opção, já que ela e Paulo estavam desempregados.
“É engraçado que eu sempre falo: ‘Paulo, tu lembra do Samuel pequeno?’ E eu não tenho muitas recordações dele pequeno porque eu estava trabalhando. Entende? Eu evito lembrar pra não doer muito, porque ele é realmente um filho muito bom e eu nem sei como ele se tornou um filho tão bom desse jeito. Esse aí é o tipo de erro que eu não cometeria de novo”, diz, ainda entre lágrimas.
O negócio de Karolayne agora conta com oito funcionários. Assim, ela decidiu que, hoje, a prioridade é a sua família e, aliviada, deixa claro que isso é possível porque hoje a empresa prosperou.
Grávida novamente, Karolayne quer dar assistência a nova fase na vida, que contempla o início da adolescência de Samuel e a chegada de Benjamin. “Até chegar aqui e poder ficar com o nosso filho, eu tive que abrir mão de ficar com ele antes.”, arremata.