Jornada quádrupla e medo de falhar: desafios das mães empreendedoras que movem a economia cearense
Levantamento da Be.Labs mostra que, no Ceará, 76,4% das empreendedoras têm filhos e 52,9% são chefes de família
Imaginemos o empreendedorismo como um oceano no qual navegantes se lançam com o objetivo de desbravar o novo e, não menos importante, sobreviver. Nesse oceano, há quem pilote uma lancha ou reme em uma canoa. Há ainda quem se lança ao mar - não por opção - com uma mera tábua de madeira na esperança de chegar a alguma terra firme, onde seja possível construir algo mais sólido e que permita continuar a viagem.
Nessa analogia, em qual dessas categorias você veria um empreendedor que, além dos desafios naturais de iniciar um novo negócio, precisa lidar com uma jornada tripla ou até quádrupla e pressões muito maiores do que as já conhecidas?
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Empresária há seis anos, Karolayne de Lima Barros, 25, precisou enfrentar a jornada quádrupla logo após o nascimento de seu primeiro filho, Samuel, hoje com 10 anos. Com um misto de orgulho e culpa, ela reconhece que administrar muitos afazeres não foi uma decisão, mas uma necessidade.
Como eu fui mãe muito cedo, eu sempre ouvia as pessoas falarem que eu não ia ser ninguém. Então eu me sentia nessa cobrança de fazer alguma coisa para suprir as necessidades do meu filho e mostrar para as pessoas que eu ia dar certo”.
Ter os filhos como motivação para correr atrás do sustento e dos próprios sonhos une as histórias de Karolayne e das empreendedoras Priscila Nóbrega de Melo, 37; e Maria Helena Sousa, 42, três mulheres atravessadas e transformadas pela maternidade e cujas trajetórias você conhecerá nesta série especial de reportagens “Mães Empreendedoras”.
As mães representam 76,4% das empreendedoras no Ceará, de acordo com uma pesquisa de março deste ano realizada pela aceleradora de empreendedorismo feminino Be.Labs.
Esse mesmo levantamento mostra que 45,88% das empreendedoras cearenses sentem dificuldade em conciliar trabalho, tarefas domésticas e cuidar dos filhos (jornada tripla) e 37,65% sentem dificuldade em conciliar estudo, trabalho, tarefas domésticas e cuidar dos filhos (jornada quádrupla), realidades que as três mães citadas acima conhecem bem.
Além do estresse de várias jornadas, a pressão para não falhar é constante: de acordo com a pesquisa, mais da metade das empreendedoras do Nordeste têm medo de fracassar (52,7%), sendo que o índice é maior - considerando os nove estados da Região - no Ceará (57,6%).
A coordenadora da Be.Labs, Marcela Fujiy, destaca que os números mostram, não apenas no Ceará, mas no Nordeste - o estudo colheu dados de 600 empreendedoras na Região -, que o empreendedorismo para as mulheres e mães surge muito fortemente pela necessidade, mas também pelo sonho: o de ter autonomia financeira para dar um futuro mais confortável para a família.
Helena, por exemplo, tem hoje o empreendedorismo como um importante complemento de sua renda, além do vetor de realização pessoal. Mãe de Kylwanje, de apenas dois meses, ela se divide entre a sua marca de bijuterias e os cuidados com a casa e com o filho enquanto, de licença-maternidade, lida com as turbulências do puerpério e os sonhos em relação ao próprio negócio.
Esse sonho de depender só da minha marca já vem de muito tempo. Enquanto isso não acontece, ela vai crescendo junto comigo e com o bebê. Por enquanto, não dá para eu me desligar de CLT. Eu estou cansada, mas eu preciso produzir. Se antes eu precisava produzir, agora eu preciso muito mais".
Dentro do escopo do empreendedorismo por necessidade, cabe lembrar que o mercado de trabalho quase nunca é receptivo com as mães. “De fato, não há essa gentileza com a mulher e, quando ela se torna mãe, isso piora”, diz Marcela, destacando que 50% das mulheres pedem demissão ou são dispensadas logo após a licença-maternidade.
E essa falta de gentileza não se limita às mães que são demitidas, mas também inclui a falta de flexibilidade de horários, de compreensão com as demandas que essa nova fase da vida impõe à família - quando o filho adoece inúmeras vezes ao iniciar na escolinha, por exemplo - e em alguns casos inclui o assédio moral sofrido nas empresas em função da maternidade.
Flexibilidade para participar da vida dos filhos
Marcela lembra que, de fato, o empreendedorismo conta com esse trunfo para as mães, possibilitando flexibilidade maior de horários. Porém, isso não deve, obviamente, ser confundido com ter mais tempo livre, já que empreender é uma atividade que demanda uma dedicação ímpar - principalmente quando se trata de um negócio que está no início.
“Existe uma flexibilidade que muitas vezes a CLT não te fornece. O empreendedorismo para as mães sem dúvidas é uma alternativa para ela ser mais presente na vida dos filhos, mas isso não significa que ela vai ter muito mais tempo, porque para empreender é preciso disponibilidade”, detalha Marcela.
A articuladora da Unidade de Competitividade dos Negócios do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas no Ceará (Sebrae/CE), Alice Mesquita, corrobora que um dos motivos que levam as mães ao empreendedorismo é a necessidade que elas possuem de ter uma renda e, ao mesmo tempo, ficarem mais próximas da família.
“Mas é importante lembrar que muitas atividades da empresa precisam de contato com o cliente, com o fornecedor, então é preciso um bom planejamento para que o negócio seja bem-sucedido, buscando sempre a inovação. Quem empreende precisa estar antenado”, reforça Alice.
Mães e empresárias que não medem esforços
Priscila Nóbrega não hesita quando questionada se foi preciso trabalhar de madrugada para cuidar de seu filho, Samuel, hoje com 12 anos, durante o dia. Foi a maneira que ela encontrou de aproveitar a flexibilidade que o empreendedorismo permite, tentando equilibrar a maternidade e o negócio de confeitaria.
Ah, com certeza (tive que fazer bolos de madrugada)! Foi necessário reorganizar a minha rotina muitas vezes para poder ficar perto. Eu também me programava para trabalhar enquanto ele estava na escola. Era o tempo que eu tinha”.
Questão financeira
Disponibilidade de tempo não é o único elemento que pode catapultar uma empresa; obviamente ter recursos disponíveis para apostar no negócio já “aprimora a embarcação” para que essas mães sigam navegando no empreendedorismo, porém essa é uma outra questão que as especialistas colocam como delicada dentro desse contexto.
Isso porque as mães muitas vezes são as principais - ou as únicas responsáveis - pela gestão das finanças na casa e, principalmente quando se empreende dentro do próprio lar, pode ficar difícil compreender e separar devidamente o que é recurso da empresa e o que é recurso do negócio.
O cenário também é ilustrado pelo estudo da Be.Labs, já que 52,9% das empreendedoras cearenses são chefes de família, sendo que 22,35% das mulheres são as únicas provedoras e 43,53% são responsáveis junto com os companheiros(as) por garantir moradia, comida, alimentação e lazer para o lar.
“Principalmente quando o negócio é dentro de casa, o risco de misturar as contas da empresa com as do lar é maior. Para que isso não aconteça, é preferível ter duas contas correntes, administrando o recurso da empresa de forma separada dos recursos da casa. Quando o empreendedor ou empreendedora não faz essas contas, acaba gastando na vida pessoal mais do que a empresa pode pagar”, frisa Alice Mesquita.
Financiamento e política de incentivo
O estudo da Be.Labs também pontua que, além das discrepâncias entre homens e mulheres na hora de empreender, por eles em geral não terem a jornada tripla e quádrupla, não sendo responsabilizados pelos trabalhos de cuidado (afazeres domésticos e criação dos filhos), “mulheres sofrem mais que os homens para conseguir acesso a linhas de crédito e financiamento”.
Diante das dificuldades que as mulheres enfrentam ao empreender, se comparadas aos homens - e da dificuldade ainda maior que as mães enfrentam - Marcela reforça a necessidade de políticas públicas para mães empreendedoras e mulheres empreendedoras.
Uma dessas iniciativas é o projeto Sebrae Delas (Desenvolvendo Empreendedoras Líderes Apaixonadas pelo Sucesso), acessível a empreendedoras de todo o País a partir de conteúdos hospedados em plataformas digitais, como o YouTube, por exemplo.
“Essa mudança de realidade passa por programas de capacitação, políticas públicas e está diretamente ligado a uma estrutura de sociedade patriarcal. Acreditamos muito no quanto os vieses inconscientes estão ligados ao nosso dia a dia. Quantas vezes a pergunta é direcionada diretamente ao homem? Então além de trabalhar políticas e programas de incentivo, precisamos trabalhar os vieses para que a gente possa ir aos poucos mudando essa realidade”, arremata Marcela.