Cearenses deixam de almoçar para fazer lanche: 'muito difícil eu cozinhar uma refeição completa'
Levantamento aponta que até 11,1% dos brasileiros deixaram de almoçar em função da dificuldade orçamentária e da priorização de alimentos que proporcionem maior prazer
Há pouco mais de um ano, a fotógrafa Rachel Vieira, de 22 anos, vem trocando a maioria das refeições principais por lanches e itens industrializados. A decisão se fez necessária diante do forte aumento de preços na alimentação e a corrosão do poder de compra, além da rotina agitada da jovem, que a impedem de ter tempo para preparar as refeições.
Itens como macarrão instantâneo, biscoito recheado, salgadinho, refrigerante e semelhantes ganharam o protagonismo nos hábitos alimentares de Rachel. Feijão, verduras, legumes e proteínas não cabem no orçamento da fotógrafa, que gira em torno de R$ 900 por mês, incluindo o que ganha nos eventos e uma bolsa que recebe da Prefeitura de Fortaleza.
"Tem dias que tenho pagado aluguel, água, luz e as contas todo mês só aumentam, inclusive as 'misturas', o feijão e as verduras, o que muitas vezes me faz comer alguma coisa que possa enganar meu estômago na rua", relata.
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Rachel está entre a parcela de brasileiros que estão reduzindo as refeições principais e as trocando por lanches, por exemplo. Segundo o relatório Consumer Insights da Kantar, aponta que a incidência de refeições, como o almoço, caiu 11,1% no País entre julho e setembro deste ano em comparação com igual período de 2021.
Outras refeições tradicionais, como o café da manhã (-7%), lanche da tarde (-5,5%) e jantar (-4,2%) também vem perdendo espaço. Em compensação, as marmitas preparadas em casa para consumo na rua ganharam 12,3% de adeptos, assim como as refeições feitas depois do jantar e o lanche da manhã também cresceram 11,6% e 6,7%, respectivamente.
Impacto da pandemia
A executiva sênior da Kantar, Jenifer Novaes Ferreira, lembra que, por conta da pandemia, o consumo do brasileiro se concentrou mais em casa do que fora dela, tendência que, apesar do fim das restrições de circulação e das atividades econômicas, ainda permanece.
O levantamento demonstra que o consumo total no País ainda está 5% menor no terceiro trimestre deste ano que no quarto trimestre de 2019, o último antes da chegada da Covid-19. Apesar disso, o consumo dentro de casa registra um aumento de 3% em relação ao fim daquele ano e o consumo fora de casa ainda registra um tombo de 14%.
A especialista explica que isso acontece diante da forte pressão inflacionária que os brasileiros vêm precisando enfrentar em um cenário econômico ainda desafiador. Tendo em vista que as compras em casa estão ligadas às prioridades da família e que o consumo fora do lar está mais relacionado a contextos de trabalho, estudos e lazer, a população tem priorizado o consumo em casa devido à corrosão da renda.
No Nordeste, o consumo total está 4% abaixo dos níveis pré-pandemia e, diferente da média nacional, o consumo em casa está 2% menor que no fim de 2019, enquanto o consumo fora do lar registra retração de 5%.
Ferreira esclarece que o consumo fora do lar na Região se manteve mais estável devido a características do mercado de trabalho. Sendo formado majoritariamente por vagas menos qualificadas e tecnológicas, uma parcela menor dos trabalhadores pôde realizar suas atividades profissionais em regime home office, de forma que precisaram continuar saindo para ir ao trabalho mesmo nos picos de contaminação.
Além disso, a predominância das classes C e D no Nordeste indicam um consumo fora do lar já baixo mesmo antes da pandemia, o que contribui para a maior estabilidade.
"Nordeste, consumidor vem fazendo compras fora de casa, mas vem fazendo a tentativa de escolher categorias de mais baixo custo, especialmente de coxinhas, esfirras, salgados em geral, que vão ter força maior na escolha fora de casa", detalha.
Limitação de oportunidades
Moradora do Bom Jardim, Rachel estima destina de R$ 150 a R$ 200 para alimentação durante o mês inteiro. "Teve um tempo que eu ainda fazia as compras porque não chegava tão cansada em casa e fazia comida. Mas agora, com preço lá em cima e o salário lá embaixo e o cansaço matando, tenho que enganar a fome com alguma coisa mais barata frequentemente".
Quando ainda prepara alguma refeição em casa, a fotógrafa relata que costuma ser arroz acompanhado de algum embutido, como salsicha, linguiça, hambúrguer, empanado, ou mesmo ovo.
Feijão é raro. Muito difícil eu cozinhar uma refeição completa agora"
No dia em que conversa com nossa reportagem, Rachel conta que não tomou café da manhã, por já não ter o costume de fazer essa refeição, e almoçou na casa de uma amiga, apenas arroz e salsicha. À tarde, ela separou um biscoito recheado e suco e afirmou que provavelmente jantaria macarrão instantâneo.
A fotógrafa revela que gostaria de ter uma alimentação mais balanceada, mas desanima ao pensa nos preços dos itens.
"Não gosto de refrigerante, tomo mais suco. Dos males o menor. Mas o refrigerante está mais barato que um suco natural ou mesmo industrial. Essa minha alimentação não é só irresponsabilidade, mas também sou uma vítima da economia no Brasil. Só tenho uma refeição adequada quando passo o dia no CDVHS", ressalta.
O CDVHS é o Centro de Defesa da Vida Herbert de Souza, instituição na qual Rachel atua como voluntária e como bolsista quando há oportunidade.
A jovem também teme desenvolver problemas de saúde em função da alimentação pouco nutritiva que leva. Atuando como autônoma e no segmento cultural, onde as oportunidades de trabalho e renda são ainda mais escassas, Rachel ainda não visualiza melhoras significativas nos ganhos e, consequentemente, na alimentação.
"Depende de muita coisa acontecer (para se alimentar melhor). Preciso que os artistas de Fortaleza sejam pagos com um cachê digno, preciso terminar meus estudos. Preciso que as bolsas para a juventude aumentem. Então eu só posso deixar meu futuro com Deus"
A jovem atualmente cursa o Ensino Médio através do Centro de Educação de Jovens e Adultos (Ceja).
Preferência por marmitas
A executiva sênior da Kantar, Jenifer Novaes Ferreira, ressalta que o Nordeste é a região do País que mais tem contribuído para o crescimento do hábito de fazer marmitas. Segundo ela, quase 60% da alta de 12,3% dessa prática foi originada na Região. A especialista ainda estima que o custo de uma marmita é, em média, R$ 10,72, enquanto uma refeição fora de casa custa R$ 17,81.
Ferreira argumenta que, mesmo em um cenário considerado pós-pandêmico, o brasileiro, e o nordestino principalmente, não está confiante que o contexto econômico irá mudar de forma drástica. Isso gera cautela na população, que freia o consumo e os gastos.
A gente vê que o brasileiro é impactado pelo cenário econômico, mas também pelas restrições diminuídas. Agora, ele precisa sair de casa, mas fazer alimentação dentro da residência ainda acaba compensando. Então, a gente viu que marmitas feitas em casa para serem comidas fora ganharem cada vez mais espaço"
Apesar dos desafios financeiros e econômicos, a especialista pontua que as pessoas estão buscando refeições que gerem algum prazer, de forma a se recompensar. Essa é também uma das razões para o fortalecimento de refeições secundárias, como o lanche da manhã e o de depois do jantar.
"O brasileiro tenta satisfazer a necessidade de subsistência, mas mantendo a sensação de algo que ele merece. É por isso que a gente vê o depois do jantar ganhando força: é momento que paro, vou assistir TV, aproveitar com filhos e companheiro, ocasiões impulsionadas por prazer, sabor, onde acaba entrando categorias de menor custo, mas que trazem o apelo de indulgência", explica Ferreira.