Bets, concorrência asiática e falta de mão de obra: entenda desafios da indústria calçadista em 2024
Setor enfrentou ainda a crise climática no Rio Grande do Sul, segundo maior produtor de pares do Brasil
Pouco a celebrar, muito a criticar. Esse foi o tom da coletiva da BFShow, principal feira de calçados do Brasil, realizada em São Paulo em novembro. Reunindo os nomes das maiores marcas do setor calçadista do País, os empresários falaram sobre os principais desafios do setor em 2024: bets, concorrência do mercado asiático e falta de mão de obra qualificada nas indústrias.
Soma-se a isso as enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul entre abril e maio. O estado sulista foi em 2023 o segundo maior produtor de calçados do País, com mais de 206 milhões de pares fabricados, atrás somente do Ceará, que produziu aproximadamente 225 milhões.
Inicialmente, os números da indústria calçadista no Brasil são positivos, mas o crescimento ficou abaixo do esperado pelo mercado, na análise dos empresários do setor. Uma das principais críticas era de que o consumo estava "estacionado" em 2024.
A projeção da Associação Brasileira das Indústrias de Calçados (Abicalçados) é que o setor feche 2024 produzindo entre 882 e 893 milhões de pares, crescimento próximo dos 3% em média na comparação com o mesmo período do ano anterior.
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Queda nas exportações explica cenário pessimista
Segundo dados da própria Abicalçados, o que também explica esse crescimento menor são as exportações, que vem caindo progressivamente com o passar dos anos. Em 2023, foram vendidos para o exterior pouco mais de 118 milhões de pares. A projeção para 2024 é, no cenário mais otimista, ultrapassar os 100 milhões de calçados exportados.
Na direção oposta, existe o aumento da importação. Os dados da associação apontam que, até o início de outubro, cerca de 30 milhões de pares chegaram ao Brasil, com 80% desse volume vindo direto de China, Vietnã e Indonésia.
Para proteger o mercado interno, vigora uma série de medidas para evitar a concorrência do produto importado, seja com taxas de importação ou com tarifas antidumping, prorrogadas até 2027 pelo governo do então presidente Jair Bolsonaro (PL), em 2022. Essas medidas, no entanto, são direcionadas somente para os pares chineses.
Estuda-se uma ampliação para calçados importados de modo geral, principalmente para o Vietnã, que já corresponde a quase metade de tudo o que é comprado do exterior em pares. Haroldo Ferreira, presidente da Abicalçados, expõe que essas solicitações devem ser encaminhadas ao Governo Federal no início de 2025.
"Acreditamos que em janeiro tenhamos identificado esses números, e vamos entrar com processo junto ao Governo para solicitar. Os números que já temos de aumento de importação demonstram que os preços dos produtos têm o mesmo dumping que a China pratica. A legislação tem ritos do que tem que ser feito, mas estamos trabalhando", diz.
Dumping asiático prejudica indústria brasileira
Roberto Argenta, presidente da Calçados Beira Rio, conclui que é preciso voltar a ganhar território nas exportações de calçados, que no passado já corresponderam a quase 20% da produção brasileira, mas hoje patina para bater a casa dos 5%. Para isso, é preciso investir em redução expressiva de tributação para o setor.
"A indústria calçadista brasileira, para se tornar bem competitiva, tem que exportar mais. O mercado interno está 'um pouco a gente empurra, um pouco a gente puxa'. Não dá para definir bem", defende.
Para Pedro Bartelle, presidente da Vulcabras, "o produto asiático briga deslealmente no nosso País", principalmente pelo fato de o excedente da produção em países como China e Vietnã virem para nações emergentes quando as pátrias mais desenvolvidas (sobretudo Estados Unidos e Europa) estão enfrentando crises mais sérias.
Se o Brasil tivesse condições igualitárias, a indústria seria mais do que o dobro do tamanho e empregaria muito mais em um País que precisa como o Brasil. Quando os mercados mais ricos estão bem, a produção asiática acaba vindo normal para o Brasil, mas quando existe uma crise, os asiáticos não param de produzir, e os excedentes de produção acabam sendo escoados em países emergentes, como o Brasil. Essa sempre é uma preocupação e acho que os governos devem estar atentos a isso.
O gestor da empresa, que tem fábrica em Horizonte, na Região Metropolitana de Fortaleza, pressupõe que a redução nas exportações de calçados brasileiros está associado com a crise econômica na Argentina, aliada à falta de segurança jurídica.
"O principal mercado para a Vulcabras é a Argentina. O poder aquisitivo diminui muito, mas o consumo ainda existe, só que a segurança jurídica para fazer negócio não existe. Chegávamos para os países vizinhos porque a gente os trata como se fossem estados nossos, conseguimos entregar e repor. Para conseguir exportar mais, precisaríamos de incentivos para deixar competitivos como os asiáticos. Não é produtividade nem eficiência", analisa.
Um dos grandes gargalos da indústria calçadista em 2024 foi a falta de mão de obra qualificada para as indústrias. Até setembro deste ano, a Abicalçados afirma que o setor empregava 295 mil pessoas, aproximadamente, uma alta de 15 mil empregos em relação a 2023, mas ainda aquém do que a indústria necessita.
"Cassino na mão de qualquer um" tira público do comércio calçadista
Em uma das falas mais aplaudidas da BFShow, Roberto Argenta não poupou reclamações para as apostas online, popularizadas pelo nome de bets. O presidente da Calçados Beira Rio faz uma relação entre o aumento dos jogos virtuais com a diminuição do consumo em lojas de calçados.
"As pessoas se iludem: 'estou endividado com conta de luz, com isso e aquilo, vou jogar'. Pode ser que acerte e resolva a vida, mas afunda mais ainda. Tira muito dinheiro de consumo das lojas, e esse ano fez falta. Governo está agindo com muita lentidão para resolver esse problema. É melhor ter cassinos onde é controlado do que cassino no bolso de todo mundo que não tem controle. Esse problema é muito mais sério do que a gente imagina", alerta.
O presidente da Abicalçados mantém o tom crítico sobre as bets e a quantidade consumida pela população. Em 2024, o consumo aparente esperado pela associação é de mais de 850 milhões de pares comercializados, entre vendas e exportações.
"As bets prejudicam o consumo nacional de produtos gerados pela indústria. Vai ter que ter uma adequação à legislação, porque do jeito que está, prejudica a economia nacional", reforça Haroldo Ferreira.
*O repórter viajou a São Paulo a convite da BFShow.