'Um ano na fila': crianças com deficiência enfrentam falta de vagas ou longa espera por matrícula
Oferta de profissional de apoio e de plano individual é prevista em lei
Cerca de um ano. Esse é o tempo que a zeladora Anne Soares, 32, já aguarda na fila por uma vaga em creche pública para o filho José Kael, 3. Para o menino autista, cada semana sem interação com outras crianças e sem educação especializada é sinônimo de perda – realidade que diversas famílias relatam enfrentar em Fortaleza.
O Diário do Nordeste conversou com mães de crianças com deficiência que precisam não só da vaga, mas de profissionais de apoio escolar e do chamado Atendimento Educacional Especializado (AEE), mas encontram dificuldades para efetivar as matrículas e o direito.
Anne é uma delas.
“O Kael é hiperativo, agressivo, tem horas que ele fica muito agitado, sobe nas coisas, quebra. A médica queria que ele interagisse com outras crianças, mas ele já vai fazer 4 anos e não consigo vaga na creche”, desabafa a mãe.
Falaram que ele tá na fila de espera, e se um garotinho desistir da vaga, colocam ele. Fui em outra creche, não tinha vaga. Eu disse que meu menino é autista, que tá precisando interagir com coleguinhas, mas já tá com mais de ano que ele tá nessa fila.
A realidade se repete para a dona de casa Mercedes dos Santos, 39, que tem o problema triplicado: três dos filhos são hiperativos e autistas, mas, segundo ela, não contam com acompanhamento especializado na escola. “Nunca foi falado nada disso”, confessa.
“Minha menina já tem 2 anos, desde 1 ano que tento vaga na creche, e nada. Tá na fila de espera, me ligaram e disseram que só ia ter vaga pra 2023”, conta Mercedes, frisando, ainda, outro problema que atinge os dois filhos mais velhos, de 7 e 9 anos.
Consegui vaga pros mais velhos, mas num colégio que é mais longe de casa. No mais perto não tinha. Tem dias que eles nem vão, porque são asmáticos e se cansam fácil.
Em setembro deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que o Estado tem o dever constitucional de garantir o direito à creche e escola para a educação infantil – os municípios, assim, não podem negar matrícula alegando indisponibilidade de vagas. Os pais podem recorrer à Justiça em caso de negativa.
‘Busquei vaga ainda grávida’
A dona de casa Missilene Braga, 28, vivencia uma questão ainda mais complexa. O filho Bernardo, de 3 anos e 9 meses, ingressou na creche pública desde cedo, porque ela “foi atrás de vaga quando ainda estava grávida”.
Prestes a completar 4 anos, idade em que a criança deve sair da creche e entrar na pré-escola, Bernardo foi “retirado do sistema” da instituição infantil e realocado para uma escola mais distante de casa, decisão com a qual Missilene não concorda.
Ele tem 4 anos, mas estacionou nos 2 anos. Ele não fala, não aponta, não escreve. Só fica na creche porque precisa estar entre crianças. Colocaram ele quase em outro bairro, agora. Mas, pra mim, ele tinha que permanecer na creche.
A dona de casa pontua, ainda, que não há informação de que um profissional especializado acompanhará Bernardo na nova escola. “Eu que preciso correr atrás de um professor extra. Mas infelizmente dizem que não tem”, lamenta.
Diogo Negritude, professor efetivo da rede municipal de Fortaleza e coordenador do projeto social Igualdade Para Todos, afirma que a demanda de pais de crianças e adolescentes com deficiência se multiplica no período de matrículas. O projeto auxilia os que não sabem a quem recorrer.
“As famílias têm demonstrado grande fadiga quanto à luta por essas vagas. Os pais relatam que, na maioria das vezes, a gestão da escola afirma não haver profissional para os devidos cuidados”, afirma.
Muitas vezes, mesmo quando acontece a matrícula, a educação é desigual. Por não ter o profissional especializado em todas as escolas, a criança ou jovem é excluído de forma velada. É importante que haja os devidos cuidados voltados para a inclusão.
Recorrer à Justiça
Parte das demandas ligadas à educação especial pública chega à Defensoria Pública do Estado. Mariana Lobo, supervisora do Núcleo de Direitos Humanos e Ações Coletivas, pontua que a falta de profissional para o acompanhamento de crianças é a principal.
“É obrigação da escola, tanto pública como privada, dar o profissional de apoio e também fazer a adaptação das atividades escolares, do plano pedagógico e ter um profissional de AEE, que possa trabalhar com essa criança dentro das necessidades dela”, explica.
Segundo a defensora pública, as secretarias de educação são notificadas, é realizada uma audiência extrajudicial e, em 99% dos casos, o problema se resolve de forma administrativa.
Desde os 2 anos de idade, Saimon, 7, frequenta creches e escolas da rede municipal de Fortaleza. Para conseguir um profissional de AEE e um de apoio em sala de aula para o menino com Síndrome de Down, a mãe precisou recorrer à Defensoria “todas as vezes”.
“Toda escola sempre passa pra gente que não tem como fornecer a pessoa. Os profissionais da própria escola influenciam você a ir pra Defensoria”, relata Francisca Gomes, 52, cujo filho conta com profissional de AEE uma vez por semana, no contraturno das aulas, e com apoio de cuidadora na sala diariamente.
“Ele interage com todo mundo, brinca, participa, mas não são todos os professores que veem as coisas de bom grado. Onde ele tá agora é bem assistido, mas o que a gente sente mais falta é de um psicopedagogo, pra incentivar ele a falar, a participar”, diz a mãe.
O que a escola deve ofertar a alunos com deficiência
De acordo com o Ministério da Educação (MEC), “os sistemas de ensino devem matricular os alunos com deficiência, os com transtornos globais do desenvolvimento e os com altas habilidades/superdotação nas escolas comuns do ensino regular e ofertar o Atendimento Educacional Especializado”.
O atendimento tem como função “identificar, elaborar e organizar recursos pedagógicos e de acessibilidade que eliminem as barreiras para a plena participação dos alunos, considerando suas necessidades específicas”, como define o MEC.
O AEE deve constar no Projeto Pedagógico das escolas regulares, garantindo:
- Sala de recursos multifuncional: espaço físico, mobiliários, materiais didáticos, recursos pedagógicos e de acessibilidade e equipamentos específicos;
- Matrícula no ensino regular da própria escola ou de outra escola;
- Plano de ensino com identificação das necessidades educacionais específicas dos alunos, definição dos recursos necessários e das atividades a serem desenvolvidas;
- Cronograma de atendimento dos alunos;
- Professor para o exercício da docência do AEE;
- Tradutor e intérprete de Língua Brasileira de Sinais, guia-intérprete e outros que atuam no apoio às atividades de alimentação, higiene e locomoção;
- Articulação entre professores do AEE e os do ensino comum.
O que diz o Poder Público
Sobre o assunto e as reclamações das famílias entrevistadas, a reportagem enviou à Secretaria Municipal de Educação (SME) os seguintes questionamentos:
- Como essa demanda de crianças e adolescentes para educação especial é dimensionada;
- Quantos profissionais especializados a rede municipal possui;
- O que é feito quando a escola é procurada e não possui esse profissional;
- Se há possibilidade de o aluno com deficiência não ser matriculado ou de a matrícula ser efetivada com atraso por falta de estrutura da escola para atendê-lo;
- Quantos alunos buscaram a unidade escolar e precisaram ficar à espera de vaga, em 2022;
- E quais os desafios da educação especial e inclusiva, hoje.
A SME informou, em nota, que oferece aos alunos com deficiência, TEA e superdotação "pleno acesso à educação no âmbito da escola comum" e que "atende a 100% da demanda por vagas inclusivas na educação".
A Pasta afirma que assegura a matrícula antecipada desses estudantes "com o objetivo o intuito de identificar as necessidades educacionais específicas deles, mapear as escolas e assegurar de forma prévia a organização dos suportes e recursos de acessibilidade física e pedagógica".
"As condições de acesso, permanência e aprendizagem são asseguradas a todos, indistintamente. Somente após a matrícula é que as necessidades específicas de cada estudante serão avaliadas quanto aos recursos pedagógicos, materiais e/ou apoio especializado para atender as suas demandas", pontua a SME.
A SME informa que oferta o AEE no contraturno aos estudantes com deficiência, “seja nas 252 Salas de Recursos Multifuncionais, em instituições conveniadas ou por meio de práticas pedagógicas inclusivas em sala de aula comum”.
Além disso, a Pasta garante dispor de "515 profissionais de apoio escolar e 571 assistentes de inclusão escolar que realizam acompanhamento desses estudantes, além de convênio com 7 instituições para a oferta do AEE”.
As matrículas da Educação Inclusiva em Fortaleza iniciaram na última sexta-feira (11) e seguem até 17 de novembro. Os pais devem buscar a escola em que pretendem matricular o filho entre 8h e 11h e 13h e 17h, portando a documentação informada no site.