Tratamento de autismo: reclamações sobre planos de saúde crescem 22 vezes no CE em 4 anos

Demora na oferta de terapias e falta de profissionais lideram queixas de famílias de pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA)

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@svm.com.br
Pessoas com autismo precisam de profissionais como terapeuta ocupacional, psicólogo, nutricionista, entre outros
Legenda: Pessoas com autismo precisam de profissionais como terapeuta ocupacional, psicólogo, nutricionista, entre outros
Foto: Shutterstock

Pagar um plano de saúde é, para muitos, uma tentativa de acessar serviços de forma mais rápida. Mas para pacientes com Transtorno do Espectro Autista (TEA) no Ceará o investimento tem sido frustrado: em 2023, quase 900 reclamações por falta ou demora no atendimento especializado foram feitas à Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

O número se refere somente às queixas registradas por pessoas com TEA, e representa cerca de 11% de todas as reclamações sobre as empresas de plano de saúde no Ceará. A demanda de pacientes autistas, aliás, cresce a cada ano: em 2019, foram 39 reclamações; frente a 877 em 2023, 22 vezes mais.

Os dados foram obtidos pelo Diário do Nordeste junto à ANS e estão atualizados até novembro deste ano.

Uma das quase 900 reclamações abertas neste ano é da dona de casa Renata da Silva, 45, mãe de Pedro, 5. Ele foi diagnosticado com TEA aos 2 anos de idade, após 5 meses de investigação com especialistas do plano de saúde. Mas, até a entrevista para esta reportagem, estava sem tratamento.

“Ele teve o acompanhamento semanal certinho por 2 anos e meio, até abril deste ano. Mas de vez em quando eu precisava faltar, não sabia que tinha que justificar, e retiraram o Pedro do grupo (de pacientes em terapia). Ele está sem acompanhamento há 9 meses”, lamentou Renata.

Após abrir o procedimento junto à ANS, Renata afirma que o plano de saúde ofereceu como solução “consulta com um profissional uma vez por mês, sempre num local diferente”. “Não aceitei. O tratamento para autismo é intensivo e semanal. A criança tem que ter um vínculo com o médico, eles não aceitam os terapeutas com facilidade”, justifica.

‘Liguei pro SAC mais de 30 vezes’

Diagnosticado há 1 ano, o pequeno Samuel, 3, filho de Yanna Monteiro, 29, sequer conseguiu ingressar nas terapias necessárias a pessoas com TEA. “Continua na fila de espera desde maio, sem previsão”, reclamou a dona de casa em entrevista à reportagem, na quarta-feira (13).

O retorno do menino ao neuropediatra também está atrasado há 2 meses. “Ele está bem agitado e sem medicação, porque não tinha vaga pro médico e sem receita não posso comprar. Liguei pro SAC mais de 30 vezes. Dizem que tenho que esperar”, desabafa Yanna.

R$ 1.560
seria o valor mínimo por mês, em média, para custear as terapias de Samuel em clínicas particulares. O menino precisa de consultas com psicoterapeuta, fonoaudiólogo, terapeuta ocupacional e nutricionista especialistas em TEA.

Renata e Yanna são usuárias do plano de saúde com mais beneficiários do Ceará: o Hapvida, que soma mais de 638 mil clientes no Estado; à frente da Unimed Fortaleza, que ocupa a segunda posição com 318 mil usuários, segundo dados da ANS de setembro de 2023.

Das 877 reclamações à ANS por negativa de atendimento a pacientes com TEA no Ceará neste ano, 674 foram referentes ao Hapvida (76,8%); 143 à Unimed (16,3%), e as 60 restantes distribuídas entre outras operadoras.

A reportagem questionou o Hapvida sobre quais as dificuldades no atendimento a pacientes com TEA, o que causa as demoras e a baixa disponibilidade de profissionais especializados, se houve aumento de demanda desse perfil, se a empresa tem ampliado o quadro e quais as medidas tomadas para resolver os problemas.

Em nota, a empresa declarou que “trabalha, diariamente, para dar o melhor atendimento aos seus clientes, com profissionais qualificados, e está sempre em constante busca de melhorias, inclusive com ampliação das estruturas físicas das unidades, aumento do quadro de profissionais e serviços exclusivos para os atendimentos de pacientes com TEA”.

Sobre o caso de Samuel, o Hapvida afirmou que o pequeno “está com as terapias agendadas e com a família acolhida pela equipe”. Já em relação a Pedro, a operadora justificou que suspendeu o atendimento “em decorrência das ausências do paciente em abril e maio de 2023”, mas garantiu que já contatou a família e incorporou o paciente novamente às terapias.

“A operadora permanece empenhada em prestar seus serviços com a qualidade, eficiência e está sempre aberta às famílias para quaisquer esclarecimentos e diálogo”, finalizou a nota.

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Daniela Botelho, fundadora da Associação Fortaleza Azul (FAZ), pontua que, além do Hapvida, reclamações contra outros planos de saúde “chegam diariamente” por parte de familiares de pessoas com TEA.

Mãe de Liz, 16, diagnosticada com autismo, Daniela afirma que a FAZ já precisou recorrer à Justiça contra a operadora da qual ela é cliente, a Unimed, para “derrubar a limitação do número de sessões” das terapias.

“No laudo da minha filha, tem 10 sessões por semana, mas a Unimed só libera 5. Dificultam principalmente pros recém-diagnosticados, que entram numa lista de espera e não sabem que o plano tem no máximo 15 dias pra dar uma resposta. Como a associação já tem o domínio, presta essa assessoria às famílias”, diz.

Daniela afirma ainda que a FAZ orienta as famílias de pessoas com TEA não apenas sobre prazos, mas sobre a existência de clínicas especializadas do plano de saúde e credenciadas para atender meninos e meninas autistas.

Era em uma dessas clínicas da Unimed que Luna, 7, era atendida até 1 ano atrás – quando precisou interromper as terapias de TEA para fazer uma cirurgia. Após isso, não conseguiu vaga para retornar. Segundo a mãe da menina, Rosélia Castro, 38, ela está na fila de espera há cerca de 8 meses.

“Fiz o atestado e tudo, mas quando fomos retornar, a vaga dela tinha sido cedida a outra pessoa. Abri reclamação, falei com o plano, mas cansei de ir atrás. Hoje, ela está fazendo pelo SUS”, diz a dona de casa, ressaltando, porém, que a rede pública não oferece todas as terapias de que Luna necessita. Uma das metas de 2024, então, é retomar as tratativas junto ao plano.

A Unimed informou, por nota, que “oferece atendimento a pacientes com TEA regularmente e tem realizado esforços para atender os beneficiários, conforme as regras do contrato”. “Para evoluir nesse atendimento, a Unimed Fortaleza está em fase de expansão da sua rede própria”, completa a empresa.

A Unimed listou, ainda, que possui “5 clínicas especializadas credenciadas e 4 unidades próprias para atendimento aos pacientes com transtornos globais do desenvolvimento”, com “profissionais multidisciplinares, especialistas e com formação técnica específica no atendimento pediátrico e de neurodesenvolvimento”.

Prejuízos da falta de tratamento para TEA

A psicóloga infantil Carolina Ramos observa que o maior número de diagnósticos de pessoas com TEA não é necessariamente um “aumento de casos”, mas ocorre porque “temos um maior conhecimento, maior acesso às informações e serviços e melhor formação de profissionais” para identificar o transtorno.

A profissional lamenta que “existe, sim, uma dificuldade” de acesso às terapias completas via planos de saúde, inclusive porque “pessoas que têm qualificações estão atendendo na clínica particular, já que o plano acaba sendo limitador”.

Com plano, num atendimento de meia hora, uma vez na semana, não é suficiente para se obter a quantidade de estímulos para a criança se desenvolver com mais qualidade. O profissional que se qualifica em TEA atende num ambiente onde consiga ter uma carga horária compatível com o que o paciente precisa.
Carolina Ramos
Psicóloga infantil

A psicóloga explica, ainda, que “o tempo não volta”: iniciar as terapias de forma precoce, com os estímulos adequados, é o melhor caminho para que a criança com TEA evolua e atinja uma maior autonomia, beneficiando não só a si, mas à própria família.

“Todas as crianças que atendi em 10 anos de experiência com TEA evoluíram, algumas tanto que conseguiram atingir objetivos terapêuticos a ponto de não precisar mais de algumas terapias. Deram um salto na escola, na socialização”, frisa.

“Há objetivos terapêuticos que precisam ser atingidos numa faixa etária específica: se demora, fica muito longe da faixa etária da criança. Quanto mais cedo ela é estimulada, mais vai conseguir alcançar a curva de desenvolvimento natural. Isso é decisivo”, finaliza Carolina, lamentando o fato de que “muitas pessoas não podem pagar” para ter esse acesso.

O que os usuários podem fazer

O principal canal para recebimento de demandas de usuários de planos de saúde no Brasil é a ANS, que analisa individualmente as solicitações, tenta solução administrativa junto às empresas e, caso não haja, pode aplicar multa à operadora que descumprir a assistência.

Os dados da ANS apresentados no início da reportagem se referem às queixas abertas pelos clientes de planos no Ceará, e ainda estão em análise para investigar eventual infração das prestadoras de serviço.

“A mediação feita pela ANS busca solucionar de forma ágil as queixas dos beneficiários e, ao mesmo tempo, objetiva que as operadoras reparem sua conduta irregular e resolvam os problemas dos beneficiários e evitando, assim, a abertura de processo administrativo e judicial”, pontua o órgão, em nota.

A Agência orienta que quem estiver enfrentando problemas de atendimento “procure, inicialmente, sua operadora para que ela resolva o problema e, caso não tenha a questão resolvida, registre reclamação junto à ANS”, pelos canais:

  • Formulário eletrônico na Central de Atendimento ao Consumidor;      
  • Central de atendimento para deficientes auditivos: 0800 021 2105;
  • Núcleo da ANS no Ceará (Av. Heráclito Graça, 273, 9ª andar do Edifício do Banco Central do Brasil), sob agendamento online;
  • Disque ANS - 0800 701 9656.

Outra alternativa é recorrer aos órgãos de Justiça. Rebecca Machado, supervisora do Núcleo da Defesa do Consumidor (Nudecon) da Defensoria Pública do Estado, afirma que a maior demanda de pessoas com TEA relacionada aos planos de saúde é por acesso às terapias completas.

“Normalmente, são pacientes que possuem laudo, são acompanhados por neurologistas, é feita a prescrição médica da terapia e têm dificuldade de ter acesso. São pessoas de mais baixa renda ou renda comprometida até pela situação de saúde”, analisa a defensora.

“Quando o plano já fez a negativa, ingressamos com ação judicial. Quando não há negativa, mas há dificuldade de acesso ao tratamento ou terapia, tentamos administrativamente, por envio de ofícios. Não temos tido um grande retorno”, lamenta Rebecca.

Com a demanda crescente, a Defensoria criou um canal exclusivo para atendimento de demandas de pacientes com TEA, que funciona pelo WhatsApp (85 98976-5670), das 8h às 12h e das 13h às 15h.

“Fazemos atendimento virtual e presencial, porque algumas famílias, principalmente as que não têm com quem deixar o familiar com TEA, não conseguem vir”, explica a supervisora do Nudecon.

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