Mudança em planos de saúde pode afetar pacientes com câncer ou autismo: “acham que somos prejuízo”

Para quem já vivencia limitações no acesso aos procedimentos e terapias pelos planos de saúde, a decisão a ser tomada pelo STJ gera temor

Escrito por Theyse Viana/Thatiany Nascimento , ceara@svm.com.br
judicialização
Legenda: O paciente Lucas Braga tem Atrofia Muscular Espinhal e está em internação domiciliar. A família teme os efeitos da possível mudança em relação aos planos de saúde
Foto: Helene Santos

“Às vezes, temos que deixar a dor de lado pra brigar com plano de saúde.” A fala de Fátima Braga, mãe de Lucas, 20, que tem uma doença rara, ilustra a preocupação atual de milhares de cearenses: uma possível mudança profunda na cobertura dos planos de saúde.

O Superior Tribunal de Justiça (STJ) deve decidir, até maio, se a lista de procedimentos de cobertura obrigatória dos planos de saúde, instituída pela Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), será exemplificativa ou taxativa.

Na prática, o STJ julgará se as operadoras são ou não obrigadas a cobrir exames, cirurgias, tratamentos e outros serviços que não estão previstos na relação da ANS, trâmite que tem gerado temor em usuários do Ceará e de todo o País.

1,3 milhão
de pessoas tinham plano de saúde no Ceará, em dezembro de 2021, segundo dados mais recentes da ANS.

“Tristeza e retrocesso”

Caso a lista passe a ser taxativa, as decisões judiciais seguirão esse entendimento, e o que não está listado não precisará ser coberto. Uma tristeza e um retrocesso, na avaliação da mãe de Lucas, que tem Amiotrofia Espinhal (AME) tipo 1. 

Fátima relata que desde o diagnóstico, feito ainda bebê, até hoje, muitas foram as burocracias enfrentadas junto ao plano de saúde para garantir acesso à assistência. Lucas está em internação domiciliar, ou “home care”, e “se adequa ao que está previsto na resolução sobre home care''. 

Na terça-feira (3), os sistemas do STJ foram alvo de um ataque cibernético, e a transmissão das sessões de seis colegiados foi interrompida
Legenda: O STJ julgará se as operadoras são ou não obrigadas a cobrir procedimentos (como exames, cirurgias e tratamentos) não previstos na relação da ANS.
Foto: Marcello Casal Jr./Agência Brasil

Mas se o rol passar a ser taxativo, Fátima pondera que limitações podem surgir no dia a dia, já que “a ANS, desde 2006, não andou com nada em relação ao home care, então, cada plano de saúde faz do seu jeito”, afirma. 

"Um plano A dá fisioterapia de 60 minutos, outro, de 20 minutos. Outro exemplo é que meu filho fez uma cirurgia devido a um edema e um abscesso no palato. O plano alega que é estética, e eu provei que não é. Às vezes, temos que deixar a dor de lado para brigar com o plano de saúde”.
Fatima Braga
Mãe de paciente com Amiotrofia Espinhal

“Muitas terapias não estão na lista da ANS”

A fundadora da Associação Fortaleza Azul (FAZ), Daniela Botelho, cuja filha caçula, Liz Botelho, 14, é autista, também expressa preocupação e angústia com a possibilidade da mudança.

“Já foi muito difícil conseguirmos na Justiça que um plano de saúde credenciasse as clínicas especializadas. Temos um tratamento de excelência hoje, com todas as terapias incluídas. Mas pessoas que têm outro plano recorrem à decisão da Justiça”, cita.

Na avaliação de Daniela, caso a decisão do STJ descarte a ideia de um rol exemplificativo, os planos de saúde “estarão respaldados a negar os pedidos”.

R$ 5 mil
seria o valor gasto por mês apenas com o tratamento privado completo para autistas, sem plano de saúde, como estima Daniela.

Nas clínicas, afirma ela, os pacientes ligados à FAZ têm profissionais da fonoaudiologia especializados, terapeutas ocupacionais, psicomotricidade, psicopedagogia, psicologia comportamental. “E muitas dessas terapias não estão no rol da ANS”, completa.

Além disso, o receio de Daniela é que o possível aumento das restrições nos planos cause uma superlotação ainda maior o SUS, “que já não funciona para os autistas, com fila de espera de 1 ano pra consulta”. 

Das 300 famílias associadas à FAZ, todas têm plano de saúde, segundo ela. “Se isso passar, vai ser um impacto até para os planos, as pessoas vão deixar de aderir. Mas eles acham que nossos filhos são prejuízo."

Entidades também temem alteração

A gestora da Associação Nossa Casa de Apoio a Pessoas com Câncer e coordenadora da Rede Mama, Daniele Castelo Branco, afirma que ambas as entidades são favoráveis que o rol da ANS siga exemplificativo, “garantindo que cada paciente tenha acesso ao melhor tratamento para o seu caso, de acordo com as prescrições médicas”. 

Em nota, a Ordem dos Advogados do Brasil Secção Ceará (OAB/CE) externou “preocupação” quanto ao julgamento, “ante as repercussões que pode vir a ter na vida de pessoas com deficiência, doenças raras, idosos e todos os beneficiários dos planos”.

É imperioso afirmar-se que a limitação a tratamentos listados no Rol da ANS pode vir a colocar em risco, de forma contundente, a saúde e a vida de pessoas.
Nota OAB-CE

O documento é assinado pelas Comissões de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência, dos Direitos da Pessoa Idosa, de Defesa dos Direitos das Pessoas com Doenças Raras e pela vice-presidente e coordenadora geral das Comissões da OAB/CE.

O julgamento da questão foi adiado porque o ministro do STJ Villas Bôas Cueva pediu mais tempo para decidir o voto. Não há nova data definida, mas nova sessão deve ocorrer até maio. Enquanto isso, cearenses seguem apreensivos com a possível alteração. 

“Prejuízo social” como efeito

Atualmente, as decisões judiciais, em geral, consideram a lista da ANS exemplificativa, ou seja, a encaram como referência mínima. Logo, os planos têm obrigações de ir além dela e devem cobrir outros tratamentos que não estão no rol, mas que tenham justificativa, não sejam experimentais, além de serem prescritos por médicos. 

Caso isso mude, pessoas com autismo, câncer e doenças raras podem não conseguir continuar ou começar um tratamento com a cobertura do plano de saúde, já que os procedimentos não estão previstos na lista.

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O presidente da Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Doenças Raras da OAB-CE , Alexandre Costa, alerta, ainda, que a decisão afeta todos os usuários, pois as negativas dos planos de saúde tendem aumentar consideravelmente.

Essa decisão vai trazer um conforto aos planos de saúde. Outro problema é que a ANS jamais teria como prever toda e qualquer doença que usuários possam vir a ser acometidos, considerando que, só raras, existem de 6 a 8 mil doenças.
Alexandre Costa
Presidente da Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Doenças Raras da OAB-CE

O advogado também chama atenção para o fato de que qualquer pessoa que vier a ter uma doença rara, não catalogada ou que não teve tratamento desenvolvido, estará fora da cobertura, com o rol taxativo.

Outro aspecto é que a restrição retira do médico o poder de decidir sobre o tratamento “Porque por mais que ele saiba que determinado insumo ou tratamento seja mais benéfico, ele vai se limitar a prescrever, sabendo que o cidadão é usuário do plano de saúde. É um prejuízo social enorme”.

Judicialização da saúde

Alexandre pondera que a definição do rol como taxativo “seria uma carta-branca para os planos” e uma certeza de que, no que diz respeito à judicialização de pedidos de tratamentos, “o Judiciário vai negar de pronto, prejudicando o acesso dessas pessoas à Justiça”.

“No momento em que esse rol taxativo estiver vigorando, fecha as portas do Judiciário para infinitas demandas, repercutindo na saúde e na vida das pessoas com doenças raras, doenças terminais, câncer”. 

Para o advogado, com essa interpretação, a sociedade maximizaria o equilíbrio financeiro das operadoras de planos de saúde – mas o custo disso seria reduzir o direito à vida e à saúde.

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