'Suicídio não é falta de Deus no coração', diz padre especialista em prevenção ao fenômeno
Motivado por vários fatores, suicídio desafia compreensão de familiares e amigos e exige atenção a mudanças de comportamentos.
Lício de Araújo Vale era só um garoto de 13 anos quando o pai tirou a própria vida, aos 43. Com o passar dos anos, o espanto inicial foi sendo substituído por ódio. Sim, ódio, por sentir-se abandonado numa fase de importantes mudanças e decisões de vida.
Décadas depois, já ordenado padre, ele decidiu se especializar no tema para auxiliar outras pessoas a evitar o ato e ajudar famílias a lidarem melhor com as ausências repentinas.
Em conversa com o Diário do Nordeste na manhã desta quarta-feira (27), em evento na Faculdade Católica de Fortaleza, o suicidólogo, especializado em prevenção ao suicídio e pesquisador sobre o luto e a valorização da vida, aborda temas como luto, cyberbullying e sinais de risco.
Como o senhor vivenciou o luto pela morte do seu pai e como despertou o desejo de ajudar outras pessoas?
Por volta dos 18 anos, eu comecei a me perceber com perguntas como: “ele não pensou em mim?” “Não era importante pra ele?” O que me caracterizou no meu luto não foi tanta tristeza da perda, mas raiva, ódio, porque o suicídio dele pra mim soou como abandono. Então, eu comecei a extrapolar, a beber muito, a dirigir em altíssima velocidade. Entrei num processo autodestrutivo e um amigo me sugeriu: “Lício, você está muito mal, vai pra terapia”.
Nos 30 anos de terapia, eu pude trabalhar o ódio que eu sentia do meu pai e resgatar a história dele. Meu pai foi abandonado pela mãe biológica, que era flagelada da seca de 1932. Para salvá-lo, ela o deu a um homem rico em troca de 20 kg de comida. Então ele vivenciou essa dor e só pôde dar a mim e à minha mãe dor e abandono. Isso me ajudou a entender e dar sentido àquela perda.
Já por volta dos 50 anos, eu decidi me capacitar do ponto de vista intelectual e fiz o curso de especialização da prevenção e posvenção do suicídio exatamente pra poder começar a fazer esse trabalho.
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Existem fatores que poderiam justificar um suicídio?
O porquê a gente nunca terá porque ele morre com a pessoa, por isso digo que o luto do suicídio é um pouquinho mais complicado. O suicídio é um fenômeno complexo, tem vários fatores que se associam: psicológicos, familiares (como a rejeição na separação), sociodemográficos (como desemprego).
O suicida não quer matar a sua vida, ele quer matar a sua dor de alma.
No caso do meu pai, foi o abandono, porque ele virou alcoólatra e o alcoolismo o levou a uma depressão. Por isso que, no luto, buscar esse porquê só potencializa a culpa e só aumenta o sofrimento.
Na posvenção, a gente coloca que esse ente querido não morreu por suicídio, mas foi vítima da sua dor. Assim como um paciente de câncer é vítima da dor dele, né?
E com isso, a gente faz com que o enlutado perceba que a pessoa se matou pra tentar finalizar sua dor de alma, os seus traumas. Você não responde o porquê, mas consegue dar algum sentido.
O suicida pode passar despercebido pela família, pelos amigos, ou costuma apresentar sinais?
A pessoa que atenta contra a própria vida dá basicamente dois sinais:
- De fala: são expressões diretas como “Eu quero morrer”, “Eu vou me matar”, ou indiretas, como “Eu estou pensando em fazer uma besteira” ou “Quando você voltar, eu não vou estar mais aqui”;
- Mudanças comportamentais: temos as diretas, nos padrões de humor, sono e alimentação; e as indiretas, como se desfazer de coisas importantes, fazer um testamento, fechar a conta bancária.
Se ocorrer essa associação, é sempre bom ligar o farol amarelo porque essa pessoa pode estar em risco de suicídio.
Para quem tem pensamentos suicidas, como buscar ajuda? E para quem convive com alguém assim, como prestar uma ajuda qualificada?
As redes sociais podem contribuir para o adoecimento mental da população brasileira?
O cyberbullying é um dos fatores de risco pra suicídio. Toda comunicação é uma comunicação; quer dizer: se uma pessoa brinca com isso, a gente tem que ficar atento. Se ela brinca aquela vez e ponto, ou se ela sempre brinca, quando se torna uma mudança comportamental.
Tanto precisa de tratamento quem faz o cyberbullying, que acusa e muitas vezes projeta coisas mal resolvidas suas nos outros, como a própria pessoa que é alvo. As redes tornaram mais aberto esse tipo de risco, porque no anonimato você se sente no direito de desrespeitar, ofender e desqualificar.
É muito comum que se escute, num país de maioria cristã, que o suicídio é “falta de Deus”. O que o senhor tem a responder para essas pessoas?
Eu costumo dizer o seguinte: suicídio não é ato de coragem. Porque às vezes, as pessoas dizem que o suicida precisa de força, outros que é covarde, e o mais comum: que é falta de Deus no coração.
Suicídio não é nada disso. Suicídio é um ato desesperado de alguém que não sabe mais como lidar com a sua dor.
Então, a única saída que ele encontra é se autoexterminar porque, do ponto de vista psicológico, a emoção presente é a desesperança; ele não tem mais esperança em nada, nem em ninguém, de que aquela sua dor possa ser olhada, cuidada e tratada.
O padre Lício é membro da Associação Brasileira de Estudos e Prevenção ao Suicídio (Abeps) e da Sociedade Internacional de Profissionais de Prevenção e Tratamento de Uso de Substâncias (Issup), entidade apoiada pela Organização das Nações Unidas (ONU) e pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Caso você esteja se sentindo sozinho, triste, angustiado, ansioso ou tendo sinais e sentimentos relacionados a suicídio, procure ajuda especializada em sua cidade. É possível encontrar apoio em instituições como o Centro de Valorização da Vida (CVV), os Centros de Atenção Psicossocial (Caps). O CVV funciona 24 horas (também em feriados) pelo telefone 188 e também atende por e-mail e chat (acesse https://www.cvv.org.br/). Os Caps oferecem ajuda profissional. No Ceará, procure os Caps (clique e veja a relação completa dos Caps de Fortaleza) e o Hospital de Saúde Mental, telefone: (85) 3101.4348.