‘Perdi a juventude e não assinaram minha carteira’: que avanços a lei trouxe a empregadas domésticas

Lei garante direitos trabalhistas a empregados domésticos há 10 anos, mas ainda derrapa na cultura de “servidão”

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@svm.com.br
Legenda: As empregadas domésticas precisam ser enxergadas e ouvidas.
Foto: Shutterstock

Quando trabalhadores domésticos passaram a ter, por lei, os mesmos direitos que os demais, em abril de 2013, a rotina de Lúcia* mudou. Na casa onde já era empregada há 20 anos, passou a ser apenas diarista. Já era “avulsa” e continuou a ser.

“Mas eles me davam 13º, férias… Só não era assinada. Quando começou a lei, passei a ficar só 2 dias com eles”, lembra Lúcia*, cujo nome verdadeiro não será revelado, para preservá-la, já que continua trabalhando para os “patrões que são como pais”.

Perdi a juventude trabalhando e nunca assinaram minha carteira. Hoje eu vejo a besteira que fiz de nunca ter contribuído (com o INSS). Já tenho mais de 50 anos, Deus sabe quando vou conseguir me aposentar. 
Lúcia*
Diarista

Nesta quinta-feira, 27 de abril, Dia da Empregada Doméstica, Lúcia está em uma das três “casas de família” onde trabalha para garantir o sustento. Desde os 15 anos de idade, quando largou os estudos e veio do interior à capital, perdeu até o direito de adoecer.

“É cansativo, porque quando eu tava todo dia na mesma casa, fazia uma coisa, mantinha limpo. Na diária não: eu vou, limpo, faço tudo no mesmo dia. E além disso, tô doente. Se tivesse pago o INSS, poderia tirar uma licença, né?”, questiona.

Avanços no trabalho doméstico

Foto: Shutterstock

A chamada “PEC das Domésticas”, aprovada em abril de 2013, trouxe avanços inquestionáveis à categoria: jornada e salário definidos, férias remuneradas, fundo de garantia e outros direitos conferidos por uma carteira assinada.

O problema é que, 10 anos depois, as garantias derrapam numa cultura de servidão. “Como se fossem da família”, muitos trabalhadores continuam na informalidade, como pontua Mariana Férrer Rolim, procuradora do Ministério Público do Trabalho (MPT/CE).

“O progresso da legislação foi muito importante, foi a superação do estigma desse trabalho. Mas ainda há muito descumprimento por parte dos empregadores, que não respeitam os direitos na integralidade; e um número relevante de pessoas sem carteira assinada”, lamenta.

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denúncias de irregularidades no trabalho doméstico foram registradas no Ceará desde 2020, uma delas já neste ano de 2023, de acordo com o MPT/CE.
 

Desde o ano passado, uma demanda específica aumentou no Ceará, segundo a procuradora: as denúncias sobre empregados domésticos vivendo em condições análogas às de escravos, “em cárcere privado e sem qualquer direito, como assinatura de carteira ou mesmo pagamento de salário”.

Mariana explica que o foco da atuação do MPT/CE, além de casos graves como esse, são as situações coletivas. “Nos casos individuais, o caminho mais efetivo para o trabalhador doméstico, que não tem muita proteção sindical, infelizmente, é buscar a Justiça do Trabalho”.

Ainda é muito presente a cultura de que ‘é uma pessoa da família’, ‘trato como da família, dou tudo’, mas os direitos não são cumpridos. É uma cultura que precisa ser modificada. Na grande maioria, são mulheres negras que estão nesse trabalho.
Mariana Férrer Rolim
Procuradora do MPT/CE

Direitos e deveres

Legenda: Lavadeiras de roupas também são consideradas empregadas domésticas
Foto: Shutterstock

O empregador que descumpre a lei, explica a procuradora do trabalho, deve “responder judicialmente, arcar com todas as consequências legais de pagamentos retroativos e recolhimento de tributos”. 

Além dos valores a serem pagos ao trabalhador, o empregador deve responder por irregularidades junto ao sistema tributário, já que deixou de pagar impostos inerentes à contratação de um funcionário, como reforça Mariana.

Entre as obrigações do empregador, segundo o Ministério do Trabalho, estão:

  • Pagar o salário em dinheiro, depósito, transferência bancária ou por qualquer outro meio que permita o livre acesso da trabalhadora ao pagamento; 
  • Fornecer à empregada um recibo/demonstrativo de pagamento, contendo as verbas salariais que estão sendo pagas;
  • Efetuar o pagamento até o dia 7 do mês seguinte ao trabalhado.

Já as proibições incluem:

  • Reter o salário de forma proposital, o que configura crime; 
  • Realizar descontos no salário por fornecimento de alimentação, vestuário, higiene ou moradia, além de pagamento de despesas em caso de acompanhamento em viagem.

Quem é a empregada doméstica?

“Empregada doméstica é aquela que presta serviços de forma contínua, subordinada, onerosa, pessoal e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família, em âmbito residencial, por mais de 2 dias por semana”, como define o Ministério do Trabalho e Emprego.

Entre as profissões, estão:

  • Babá; 
  • Cozinheira; 
  • Governanta; 
  • Lavadeira;
  • Vigia;
  • Cuidadora de idosos; 
  • Faxineira; 
  • Piloto particular de avião e helicóptero; 
  • Motorista particular;
  • Jardineira; 
  • Caseira. 

Dados do Sistema de Escrituração Digital das Obrigações Fiscais, Previdenciárias e Trabalhistas (eSocial) atualizados em março do ano passado mostram que cerca de 90% dos trabalhadores domésticos registrados são mulheres.

‘Só é da família enquanto é serviçal’

Apesar dos “avanços significativos” conferidos pela legislação, ainda falta fiscalização para que seja colocada em prática, como critica Socorro Osterne, professora da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e pesquisadora de relações de gênero e cidadania feminina.

“O grande gargalo é que os empregadores não cumprem nem um terço do que a lei garante, diante das situações em que as mulheres, geralmente pobres, da periferia e negras, são submetidas”, observa.

O desrespeito à jornada de trabalho máxima de 8 horas por dia é, segundo Socorro, o principal limite descumprido por empregadores. “Geralmente, elas dão 10h, 12h de expediente, dormem no local sem adicional noturno”, frisa.

Essa resistência em considerar empregadas domésticas sujeitos de direito é sustentada pelas raízes podres do período escravocrata brasileiro, como contextualiza a professora.

“‘Gosto muito da moça que trabalha aqui, é como se fosse da família’. Pode até ser, mas a família patriarcal, escravocrata. Porque ela é considerada um ser inferior: só é da família enquanto é serviçal, submissa e não luta pelos seus direitos”, sentencia Socorro.

A pesquisadora lamenta que “o Estado não tem mãos pra alcançar esse problema, e existe uma nítida dificuldade de fiscalizar essa profissão”, o que faz se multiplicarem “casos de trabalho análogo à escravidão, sob essa cultura da servidão”.

As relações sociais ainda são predominantemente coloniais. São corpos cotidianamente esgotados, historicamente ancorados na cultura da escravidão. Existem as empregadas com direitos respeitados, bem tratadas. Mas não são maioria.
Socorro Osterne
Professora e pesquisadora da Uece

Inclusa nessa não-maioria está Maria Elizete Sousa, empregada doméstica na mesma casa há 23 dos 45 anos de vida. “Sempre bem tratada e respeitada”, teve a carteira assinada pelos patrões pouco tempo após a efetivação do direito em lei.

“O que mudou foi eu ficar mais segura, pagar o INSS, ter férias direitinho, aumento de salário todo ano, essas coisas. A rotina ficou igual, e graças a Deus a relação com a família nunca teve diferença por eu querer meus direitos”, destaca. 

Como denunciar

A trabalhadora ou trabalhador doméstico que estiver em situação irregular ou alguém que conhecer a situação e quiser denunciar pode fazê-lo por meio do site.

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