Ceará já registra mais denúncias de trabalho infantil em 2022 do que em todo o ano passado

Em 2021, 93 casos foram investigados pelo Ministério Público do Trabalho – número que já chegou a 109 só nos 5 primeiros meses deste ano

Escrito por Theyse Viana , theyse.viana@svm.com.br
Crianças trabalhando em feira livre no Ceará
Legenda: Trabalho em feiras livres é uma das formas de trabalho infantil
Foto: Fiscalização do trabalho/Ministério do Trabalho e Previdência

Trabalhar não deveria estar entre as tarefas de uma criança ou adolescente, mas a forte cultura de que “trabalhar desde cedo forma caráter” leva centenas de pequenos ao trabalho infantil. Em 2022, só até maio, 109 novas denúncias passaram a ser investigadas no Ceará – mais do que as 93 registradas em 2021, e quase o triplo das 40 de 2020.

Os dados são do Ministério Público do Trabalho no Ceará (MPT/CE). Antonio de Oliveira Lima, procurador do órgão, explica que cada denúncia pode incluir mais de uma criança. Ele relembra que 82 mil pessoas de 5 a 17 anos trabalhavam em território cearense, em 2019.

O dado é o mais recente sobre o assunto, e faz parte da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) Contínua, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

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Para o procurador do MPT/CE, o número elevado de denúncias “ainda é pequeno em relação à realidade de crianças e adolescentes trabalhando no Ceará”, cenário cuja prevenção ganha foco neste Dia Nacional e Mundial de Combate ao Trabalho Infantil.

Só em 2022, até abril, 140 crianças e adolescentes foram resgatadas da situação de trabalho infantil, após 93 fiscalizações realizadas pelos Auditores Fiscais do Trabalho. Fortaleza, Eusébio e Maracanaú estão entre as cidades das ocorrências.

100
acidentes de trabalho envolvendo crianças e adolescentes foram registrados, nos últimos 5 anos, pelos Auditores Fiscais do Trabalho no Ceará.

“A criança passava a aula toda dormindo”

No Ceará, casos de crianças flagradas em situação de trabalho se multiplicam – e, nesse contexto, a escola se torna espaço importante de identificação dos casos. A diretoria de uma escola de Pacajus, que não será identificada para preservar a vítima, descreve dois dos casos.

“Detectamos porque a criança passava a aula toda dormindo, e numa conversa ela revelou a situação. Em outro caso, a criança relatou que ia vender lanche à noite”, diz a profissional de educação. Um 3º caso semelhante foi relatado à reportagem, este ocorrido na cidade de Jaguaribe.

Um menino do 5º ano sempre estava dormindo em sala de aula. Começamos a conversar pra saber o porquê, ele disse que é porque acordava 4h pra ajudar tirando leite de gado nos currais.

Segundo a profissional de educação que relatou o caso, os pais da criança foram chamados e acataram as recomendações de que ele deveria apenas estudar e descansar. Assim como esta, as outras duas situações foram revertidas após diálogo com as famílias.

“O trabalho infantil aprisiona as pessoas na miséria”

trabalho infantil lixão
Foto: Fiscalização do trabalho/Ministério do Trabalho e Previdência

Quem também foi salvo pela educação foi o estudante Felipe Caetano, 20. Nascido em Aquiraz, na Região Metropolitana de Fortaleza, ele começou a trabalhar aos 8 anos, vendendo pranchas e servindo mesas como garçom. “Muito por uma questão cultural e de certa forma pela necessidade”, como ele relembra.

Após assistir a uma palestra do procurador Antonio Oliveira de Lima sobre prevenção e combate ao trabalho infantil, na escola, Felipe se reconheceu. “Me conscientizei que a condição em que eu estava era de violação de direitos”, diz.

Conversei com a minha família e pra eles foi estranho. Minha mãe, meus avós e meus tios sempre trabalharam desde cedo. Era cultural e comum. Ouvir de um filho que ele queria deixar de trabalhar foi espantoso.
Felipe Caetano
Estudante e ativista

Anos depois, aos 13, Felipe foi ao MPT para propor a criação do Comitê Estadual de Adolescentes e Jovens na Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (Ceapeti/CE), que após 1 ano de atuação foi ampliado ao nível nacional.

Felipe Caetano
Legenda: Jovem cearense Felipe Caetano é co-fundador de comitê nacional de combate ao trabalho infantil
Foto: Arquivo pessoal

Hoje, além de co-fundador do Comitê Nacional de Adolescentes pela Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (Conapeti), Felipe Caetano é membro do Conselho Jovem do Unicef Brasil, e atua fortemente na luta por educação como prevenção.

O combate ao trabalho infantil é de política pública, não de polícia. É preciso educação. O filho do trabalhador também vai trabalhar na infância, por necessidade. O trabalho infantil aprisiona as pessoas na miséria.
Felipe Caetano
Estudante e ativista

Felipe destaca que o Ceará “já conseguiu reduzir muito o trabalho infantil”, mas aponta que “falta a promoção de ainda mais escolas em tempo integral, a profissionalização dos pais e criar mais postos de aprendizagem profissional”.

“A gente costuma ver notícias de que foi cortador de cana de açúcar e hoje é um promotor, juiz. E só vemos isso porque são exceções. A regra é o aprisionamento na pobreza, na miséria e a perpetuação desse ciclo”, lamenta o jovem.

Piores formas de trabalho infantil

Trabalho infantil na construção civil
Foto: Fiscalização do trabalho/Ministério do Trabalho e Previdência

Todo trabalho realizado por crianças e adolescentes menores de 14 anos anos é proibido, como reforça o MPT. Também é vedada toda prática laboral de adolescentes de 14 a 16 anos sem vínculo de Jovem Aprendiz.

Para pessoas entre 16 a 18 anos, será considerada trabalho infantil atividade “insalubre, perigosa, noturna, em lixões, doméstica ou nas ruas”, segundo elenca o procurador Antonio Lima.

A Organização Internacional do Trabalho (OIT) lista, ainda, aquelas que são definidas como “piores formas de trabalho infantil”. São elas:

  • Venda e tráfico de crianças,
  • Sujeição por dívida,
  • Servidão,
  • Trabalho forçado ou compulsório;
  • Prostituição, produção de pornografia ou atuações pornográficas;
  • Utilização, recrutamento e oferta de criança para atividades ilícitas, como tráfico de entorpecentes;
  • Trabalhos que, pela natureza ou pelas circunstâncias, podem prejudicar a saúde, a segurança e a moral da criança.

No Brasil, o decreto nº 6481, de 2008, detalha todas as 93 atividades consideradas violação de direitos de crianças e adolescentes por trabalho infantil. As principais áreas são:

  • Agricultura, Pecuária, Silvicultura e Exploração Florestal;
  • Pesca;
  • Indústria extrativa;
  • Indústria de transformação;
  • Produção e distribuição de eletricidade, gás e água;
  • Construção civil;
  • Comércio de reparação de veículos (borracharias, por ex.);
  • Transporte e armazenagem;
  • Saúde e serviços sociais;
  • Serviço doméstico.

Empresas podem ser multadas

O procurador Antonio Lima explica que empresas que são flagradas na prática de trabalho infantil são multadas em R$ 1 mil para cada criança e adolescente submetido à situação de violação de direitos. 

“As que já assinaram TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) sobre o assunto e descumpriram a determinação são multadas em R$ 3 mil. Elas também podem sofrer condenação em uma Ação Civil Pública do MPT”, lista o procurador.

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