Bolsas de pós-graduação estão sem reajuste há 9 anos; poder de compra cai 57% no período

Valores que deveriam ser aplicados nos estudos se tornam meio de subsistência para pós-graduandos

Escrito por Nícolas Paulino , nicolas.paulino@svm.com.br
Legenda: Pesquisadores relatam que falta de investimento gera indignação e frustração.
Foto: José Leomar/SVM

Meios de financiamento de pesquisas e de permanência no ambiente acadêmico, as bolsas de pós-graduação – mestrado e doutorado – da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) estão sem novo reajuste há 9 anos. Com as altas na inflação, estudantes cearenses relatam dificuldades na condução dos estudos.

A Capes é vinculada ao Ministério da Educação (MEC) e é o principal órgão de fomento da pesquisa do Brasil. Desde março de 2013, o valor permanece o mesmo: são R$ 1,5 mil para estudantes de mestrado e R$ 2,2 mil para doutorandos.

Daquele período a agosto deste ano, o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) medido pelo IBGE foi acumulado em 74,79%, corroendo o poder de compra da população. Assim, ajustando os valores das bolsas para o cenário atual, é como se mestrandos recebessem R$ 858 e, os doutorandos, R$ 1.258 – ou seja, 57% do valor original.

Deste modo, a Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG) calcula que, apenas para corrigir as perdas inflacionárias nesse intervalo, os valores das bolsas atualmente deveriam ser em torno de R$ 2,4 mil para mestrandos, e de R$ 3,6 mil para doutorandos.

Em nota, a Capes declarou que “está ciente e sensível” ao reajuste porque ele “reflete os anseios da comunidade acadêmica, à medida que reivindica a valorização e o investimento na alta formação de pessoal”.

“Com o objetivo de subsidiar a tomada de decisões por instâncias superiores do Governo Federal, no que diz respeito ao reajuste dos valores das bolsas, a CAPES elaborou um estudo técnico que considerou o histórico da evolução dos valores das bolsas e o impacto orçamentário e financeiro”.

A Coordenação, porém, não detalhou prazo para que ocorra a atualização dos valores. Atualmente, mais de 2,5 mil alunos são beneficiários no Estado:

Doutorando em Engenharia de Pesca na UFC, com bolsa da Capes, Renato Farias considera que o valor da bolsa é baixo para os tempos atuais. Ele consegue se manter apenas de “maneira básica” - alimentação, transporte e custos de pesquisa - porque mora com os pais e não precisa arcar com aluguel ou contas de casa.

“Hoje é impossível comprar um carro e mantê-lo ou pagar aluguel em um bairro tranquilo de Fortaleza. Há 10 anos, era possível comprar um carro com o valor pago aos doutorandos. Era possível morar sozinho e ter boas condições”, avalia.

Além disso, segundo ele, as maiores dificuldades são relatadas por pessoas oriundas de outros Estados, que precisam dividir apartamento e despesas de casa para que a pós-graduação seja viável.

José Henrique Freitas, ex-aluno do doutorado do Programa de Pós Graduação de Bioquímica da UFC e coordenador geral da Associação de Pós-Graduandos na instituição (APG-UFC), defende que a bolsa foi criada para ser usada no projeto de pesquisa, não necessariamente com comida e transporte. 

Além disso, alguns estudos exigem a compra de materiais cujo preço evolui com as mudanças na inflação, logo os custos não conseguem ser cobertos e o trabalho precisa ser interrompido. “Alguns têm que mudar a própria pesquisa para caber no orçamento”, explica. 

A pandemia também representou “um ano perdido” para muitos pesquisadores. Inclusive, foi período de desistências, segundo o coordenador. “Isso já acontece porque a universidade é um ambiente competitivo, e você o tempo todo é cobrado a produzir. Mas a bolsa é ligada à permanência estudantil, sem bolsa é difícil de continuar”, relata.

Aluguel aumentou muito, alimentação hoje está praticamente o triplo. A bolsa deixou de ser um auxílio para melhorar o estudo e se tornou subsistência. 
José Henrique Freitas
Coordenador geral da APG-UFC

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Escolha de prioridades

A falta de reajuste também atinge bolsas do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que possui os mesmos valores das ofertadas pela Capes.

Renata Araújo, doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciências Naturais da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e beneficiária do CNPq, tem parte dos gastos cotidianos supridos pelos pais.

Ela reconhece que muitos pós-graduandos “precisam abrir mão de muitos gastos, especialmente aqueles com lazer e às vezes até mesmo de uma alimentação mais saudável”.
 

A pesquisadora se preocupa com a continuidade do fornecimento da própria bolsa porque as agências de fomento prorrogaram o tempo para que os estudos sejam concluídos, “porém a bolsa não foi prorrogada. Ou seja, muitos já estão ou estarão em um futuro breve, concluindo suas pesquisas sem nenhuma fonte de renda”. 

O CNPq foi procurado pela reportagem para informar o número de bolsas concedidas a estudantes do Ceará e se tem previsão de reajuste dos valores, mas não enviou retorno até a publicação desta matéria.

Legenda: Estudos com insumos de laboratórios tendem a sofrer com a falta de recursos financeiros.
Foto: Fabiane de Paula

José Henrique Freitas, coordenador geral da APG-UFC, lembra que a ANPG aprovou, ainda em 2020, o Plano Emergencial “Anísio Teixeira” para a ciência brasileira, que inclui pedidos como a ampliação do número de bolsas e o reajuste das que já existem. Porém, a nível nacional, a discussão avançou pouco.

“Nem todo programa de pós-graduação recebe o mesmo número de bolsas que recebia. Ainda poderemos ver alguns perdendo as que têm porque dependem de publicações, e o Nordeste é um pouco menos equipado. Precisamos de uma política pública forte para aumentar tanto o valor como a distribuição”, pensa Freitas.

Pesquisas desestimuladas

Para Renato Farias, o cenário atual de financiamento da Pós-Graduação no Brasil é “extremamente preocupante”, tanto pelos cortes nas cotas de bolsas quanto nos valores repassados às universidades para a manutenção de reagentes químicos, equipamentos e laboratórios. 

Além disso, compartilha a disseminação de sentimento de pouca motivação e muita frustração entre alunos de mestrado e doutorado, relacionados sobretudo aos problemas financeiros da falta de bolsas e de perspectivas futuras na pesquisa. 

“Temos carga horária de 40h semanais e em regime de exclusividade, o que não nos permite outra atividade com o intuito de complementar a renda. Além disso, as atividades da pós-graduação por muitas vezes excedem as 40h previstas”, exemplifica.

Renata Araújo complementa que, com o aumento da inflação nos últimos meses, “tem ficado cada vez mais difícil fechar as contas do mês”. Por isso, há pós-graduandos que oferecem serviços de revisão, formatação de trabalhos acadêmicos e reforço escolar, ou fiscalizam provas de concursos, para conseguir um rendimento extra.

“Já que não podemos ter vínculo empregatício, são alguns ‘bicos’ que conseguimos fazer sem prejudicar o nosso rendimento. Mas é muito desmotivador saber que a mão de obra de um pós-graduando, que é extremamente qualificada, ser tão desvalorizada ao ponto de alguns simplesmente desistirem”, lamenta.

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