Universidades públicas do Ceará perderam cerca de R$ 23,8 milhões para pesquisa científica em 2020
Corte de recursos pelo Governo Federal refletiu em descontinuidade de programas de pós-graduação e aumento da escassez de bolsas
Em 2020, as universidades públicas cearenses receberam do Governo Federal em torno de R$ 23,8 milhões a menos — em relação a 2019 — para custear bolsas de pós-graduação e pesquisa científica. O corte de recursos provocou a descontinuidade de programas e aumentou a escassez de bolsas permanentes, sobretudo de mestrado, doutorado e pós-doutorado.
Na Universidade Estadual do Ceará (Uece), foram R$ 6,1 milhões a menos no ano passado. No Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), R$ 5,5 milhões. Na Universidade Federal do Ceará (UFC), R$ 4,7 milhões. Na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), R$ 1,5 milhão.
Os números estão no portal da transparência da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) e dão conta, também, de perdas de R$ 2,4 milhões, R$ 2,6 milhões e R$ 707,8 mil, respectivamente, na Universidade Estadual do Vale do Acaraú (UVA), na Universidade Regional do Cariri (Urca) e na Universidade Federal do Cariri (UFCA).
Em algumas dessas universidades, os impactos da diminuição de verba da Capes ainda estão sendo avaliados. Caso da UFC, por exemplo. No entanto, na Uece, que teve o prejuízo financeiro mais significativo, já se tem registro de “importante perda” de bolsas de mestrado, doutorado e pós-doutorado.
Além disso, segundo a universidade, duas pesquisas do Programa de Pós-Graduação em Ciências Veterinárias tiveram de ser descontinuadas por causa do corte.
Não apenas a Uece, mas toda a ciência do Brasil está enfrentando uma situação dramática, pois quando deveria haver um investimento maior no desenvolvimento de pesquisas, sofremos cortes de verbas”.
O IFCE também precisou descontinuar ou, em alguns casos, substituir programas. Segundo a pró-reitora de Pesquisa, Pós-Graduação e Inovação, Joelia Marques de Carvalho, o instituto tem investido recursos próprios e captado outros por meio de fomento externo, para que “nenhuma pesquisa, docente ou estudante de pós-graduação, sejam prejudicados”.
Isso porque ela acredita que “a pesquisa acadêmica e aplicada é a chave para o desenvolvimento da sociedade” e, portanto, “temos que sempre encontrar formas para mantê-la”.
Por conta própria, a Unilab também tem tentado se manter com menos aporte de recursos federais. A universidade informou que nenhuma bolsa de iniciação científica ou de mestrado foi cortada e que todas as pesquisas que estavam em andamento, continuam.
“Desde que a atual gestão da Unilab assumiu, as ações de pesquisa e pós-graduação foram tratadas como prioridade. Todas as bolsas dos editais de iniciação científica e de pós-graduação foram mantidas”, assegura Olavo Garantizado, pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação.
Cortes federais
Os cortes nas bolsas vieram após a publicação da portaria 34 da Capes no dia 18 de março de 2020. O documento modificou critérios para o recebimento de verbas para as bolsas, o que, em nível nacional, provocou, segundo a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), uma perda de 10% do total de bolsas de pós-graduação permanentes financiadas pela agência desde sua implementação, exatamente 70 anos atrás.
“Se está com uma restrição orçamentária enorme. Em todas as agências de fomento e, também, na Capes”, comenta a vice-presidente da SBPC, Fernanda Sobral. Segundo a representante, os cortes impactam especialmente as bolsas permanentes de pós-graduação. “E também na ausência de reajustes nessas bolsas, que estão sem há alguns anos”, afirma.
Tem efeito dominó. Se as bolsas não chegam, chegam em quantidade insuficiente ou sem regularidade, as universidades não conseguem se planejar para oferecê-las aos candidatos. Sem bolsas para custear o trabalho, programas são descontinuados e pesquisadores chegam a desistir dos estudos por, literalmente, não terem como se sustentar durante. Assim, a pesquisa científica do País vai minguando. Bem como os resultados que serviriam à sociedade.
Centralização de recursos
A Capes, por outro lado, nega que bolsas tenham sido cortadas devido à restrição orçamentária para a pesquisa. Em nota, informou que, em 2020, concedeu 3,8 mil benefícios a mais para estudantes de pós-graduação por meio de um novo modelo de concessão.
“O modelo redistribui as bolsas de acordo com a nota de avaliação, a localização e a titulação de cada curso, valorizando ainda os doutorados. Atualmente, a Capes concede 99,6 mil bolsas de mestrado, doutorado e pós-doutorado no Brasil e no exterior. Não há cortes”, escreveu a coordenação, garantindo que deve manter esse quantitativo de benefícios em 2021.
Porém, a revisão do modelo de distribuição das bolsas pode provocar desigualdade nos repasses, uma vez que prioriza recursos para universidades com maiores notas.
“Cursos novos, que nunca podem ter as notas maiores, porque é muito difícil, ficam prejudicados e não estão recebendo bolsas. A pós-graduação precisa de estímulo para crescer. Outro prejuízo é que grande parte dos cursos que têm as maiores notas está na região sudeste. Estava ocorrendo uma descentralização [de investimentos], começando a ocorrer. Mas, se você só dá oportunidades para determinadas regiões, essa centralização pode voltar”, alerta Fernanda Sobral.
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Frustração
“A sensação é de a gente ter corrido bastante atrás de um prêmio que nos foi garantido, mas cada vez a linha de chegada vai se afastando mais”. É assim que a doutoranda Débora Silva Costa, 28, define a atual conjuntura acadêmica no Brasil.
Graduada em jornalismo pela UFCA e com mestrado pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Débora, que é do Crato, no Cariri, conta que tem os estudos patrocinados por bolsas há muito tempo — do ensino fundamental ao médio e ao superior.
Na universidade, ela lembra, tanto na graduação quanto no mestrado, “por mais que fossem valores baixíssimos, [as bolsas] foram me possibilitando ter além do básico que os meus pais podiam me oferecer, que era casa e comida. Podia comprar uma roupa, um calçado, participar de eventos científicos que precisassem de viagem, comprar material escolar”, cita.
De família com poucos recursos financeiros, mas com empenho e vontade de se aprofundar nos estudos sobre comunicação, Débora foi incentivada por professores a se qualificar em mestrado e doutorado.
Eu não tinha muita percepção se existia solo fértil [na pesquisa]. A gente entra na graduação muito jovem. Quando isso aconteceu [a decisão de fazer mestrado], eu tinha 20 anos. E eu ia mesmo assim porque eu gostava de estudar. Via pessoas concluindo o mestrado e doutorado e virando professoras em universidades federais e vi que isso poderia ser um futuro também pra mim, não era mais distante da minha realidade, mas algo com o que eu poderia sonhar”.
O único momento em que ela não conseguiu ter acesso a um financiamento estudantil foi em 2020, quando foi aprovada em primeiro lugar na sua linha de pesquisa na seleção de doutorado da UFC.
Devido à sua colocação, ela conta que tinha expectativa de ser contemplada com uma bolsa. “Porque, no mestrado, como a quantidade de bolsa era maior, tinha bolsa suficiente pra que todos que precisassem, recebessem. E eles distribuíam de acordo com as colocações. Como eu tinha ficado numa boa, imaginava que seria contemplada. Existia a necessidade de me mudar pra Fortaleza porque as aulas eram presenciais até então. Fiz esse ‘ato de fé’ imaginando que teria bolsa, mas, também, porque eu tinha juntado um dinheiro durante uma época em que eu tinha trabalhado como professora”.
No entanto, a escassez de bolsas, especialmente por ser um programa novo de doutorado, acabou deixando Débora fora da pequena lista de contemplados. “Bateu desespero, vontade de desistir do doutorado, um desânimo muito grande, uma incerteza sobre o futuro. Porque, apesar de ter juntado esse dinheiro, a situação ia ser complicada. E eu digo que só não desisti porque muitos amigos me ajudaram em várias situações difíceis”, conta a jornalista, que também não tem conseguido emprego em paralelo.
Há uma semana, Débora voltou para o Cariri para morar na casa da tia e acompanhar de lá, remotamente, as atividades do doutorado. “Passei um ano inteiro sem ver praticamente ninguém, não conhecia ninguém. Foi bem exaustivo porque o doutorado exige muito da gente. Por mais que não tenha nenhuma contrapartida, a gente tem que trabalhar, produzir. E agora, voltando pro Cariri, não vai ser diferente”.
A frustração, ela conclui, é na perspectiva profissional e, sobretudo, na de quem, quando jovem, “sonhou em ter pela primeira vez uma vida digna para si e para sua família”. “Tantas mentes brilhantes e dispostas, que podem e querem colaborar com o crescimento do País, tanto nos aspectos científico e econômico, mas, sobretudo, em se tratando do progresso humano e social”, lamenta.
De acordo com Fernanda Sobral, da SBPC, em torno de 90% da produção científica brasileira vem da pós-graduação. E, sem revisão orçamentária e incentivo financeiro, além dos prejuízos e das frustrações pessoais para cada pesquisador, “muito da nossa pesquisa também tem a perder”, afirma.