Bebê Pitaguary é o primeiro a ser registrado com nome da etnia indígena no Ceará

Heine Kayan Pitaguary nasceu quase sem vida e foi reanimado na maternidade

Escrito por
Clarice Nascimento clarice.nascimento@svm.com.br
(Atualizado às 17:56)
Close-up de um bebê recém-nascido sorrindo, usando um cocar indígena feito de penas marrons e pretas, e enrolado em uma toalha branca.
Legenda: Heine Kayan Pitaguary vive na Aldeia Santo Antônio dos Pitaguarys, em Maracanaú, na Região Metropolitana de Fortaleza
Foto: Arquivo Pessoal

Heine Kayan Agostinho Vieira Pitaguary só tem oito dias de vida, mas já é um personagem marcante da história do Ceará. Ele é o primeiro bebê a ser registrado com o nome da etnia na certidão de nascimento. O menino nasceu no último dia 16 de outubro, no município de Maracanaú, na Região Metropolitana de Fortaleza. 

Incluir o nome do povo indígena Pitaguary é uma forma de fortalecer a luta identitária, afirma o pai de Heine Kayan, Madson Vieira, de 30 anos. “Para nós, é muito emocionante e gratificante conseguir esse feito. Nem eu, nem a Jennifer [mãe do bebê] não tivemos esse direito, mas hoje o Kayan pode e a gente está passando para ele”, disse ele em entrevista ao Diário do Nordeste. 

O pequeno é fruto do relacionamento do professor da Escola Indígena Itá-Ara, na Aldeia indígena Monguba, em Pacatuba, a cerca de 36 km de Fortaleza, e Jennifer Agostinho, de 23 anos, comunicadora indígena e artesã. 

“Foi muito emocionante [receber o registro]. Ficamos sem palavras mesmo. Saber que ele tem essa segurança porque a gente não sabe como vai ser daqui a 20 ou 30 anos dentro do território”, comenta a mãe. “Quando estiver maiorzinho, ele vai ter noção de pertencimento e ter orgulho de si e do seu povo”, complementa Madson. 

Registro civil de Heine Kayan Pitaguary
Legenda: Na certidão de nascimento, o nome de Heine Kayan consta a etnia Pitaguary, a qual ele pertence
Foto: Arquivo Pessoal

Logo nas primeiras horas de vida, Kayan fez jus ao significado de seu nome: guerreiro. O parto foi descrito por Jennifer como “bem complicado”. Ela passou 24 horas em trabalho de parto, mas sem evolução, resultando na necessidade de uma cesárea de urgência.

“Nessas 24 horas, a criança também vai trabalhando na barriga, querendo se posicionar. Ele foi se desgastando, cansando e, no momento do parto, ele saiu praticamente sem vida”, relata o pai Madson Vieira.

Foram duas tentativas de reanimação até Heine Kayan voltar à vida. “Eu estava ali fora, esperando me chamarem. Só depois que ele chorou, eu fui encontrar ele e me explicaram o que tinha acontecido. A Jenni foi uma guerreira, teve muita força, e ele também que passou todo esse tempo sofrendo”, afirma. 

A força veio das orações, diz ela. “Foi um momento muito forte que eu não tinha noção do que estava acontecendo. Só rezava muito, pedia a Deus e aos Encantados de luz para abençoarem ele. E eu sentia essa força que acalmava o meu coração”, relata. 

Veja também

Na primeira noite, o bebê teve que usar oxigênio para poder se estabilizar e recebeu alta no dia seguinte. “Foi realmente um milagre, ninguém conseguia explicar”, diz a mãe. 

Kayan não tem um significado certo quando a gente pesquisa, mas escolhemos esse nome antes de saber que era um menino. Ele significa guerreiro, que tem força, resistência. Kayan Pitaguary é a resistência pura, a força, o nosso guerreiro que vai dar continuidade ao nosso povo.
Jennifer Agostinho
comunicadora, artesã e mãe do Heine Kayan.

O primeiro nome do bebê, Heine, foi inspirado no escritor e poeta alemão Christian Johann Heinrich Heine, considerado o “último dos românticos”, e foi ideia do pai Madson. Da família, apenas o bebê está registrado com o nome da etnia, mas os pais afirmam que pretende, no futuro, incluir essa identificação também em seus próprios documentos. 

Além dele, a líder e secretária de Gestão Ambiental e Territorial Indígena no Ministério dos Povos Indígenas, Ceiça Pitaguary, também carrega o nome no registro, mas só incluiu após adulta. 

6,2 mil
pessoas se autodeclaram Pitaguaris no Ceará, conforme o Censo Demográfico de 2022 do IBGE.

O Ceará é o 14º estado do Brasil com o maior número de etnias identificadas (140) e os Pitaguaris é a terceira mais numerosa do Estado. Quase metade deles (53,4%) não moram dentro das terras delimitadas. 

Procedimento no cartório

Madson Vieira foi responsável por ir atrás do registro civil de Kayan. Ele explica que, no primeiro momento, a filial do cartório, localizada na maternidade, não tinha muitas informações de como proceder. “Eles são acostumados a fazer o registro comum, quando cheguei com a novidade, houve um pouco de dificuldade”, diz.

Jennifer afirma que era solicitado o Registro Administrativo de Nascimento Indígena (RANI), um documento que era emitido por muitos anos pela Funai e que servia para registro civil e de identificação de pessoas indígenas, mas hoje está em desuso. 

Antigamente, para registrar o nascimento de uma pessoa indígena, a família precisava solicitar uma Declaração de Nascido Vivo (DNV) no hospital onde o bebê nasceu e depois ir a uma unidade regional da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) solicitar o RANI. Só então que o cartório emitia o registro civil da criança. 

Bebê recém-nascido dormindo. Ele veste um body branco com traços do grafismo indígena.
Legenda: O primeiro nome do bebê, Heine, foi inspirado no escritor e poeta alemão Christian Johann Heinrich Heine, e Kayan significa guerreiro, que tem força.
Foto: Arquivo Pessoal

Todo esse processo representava uma barreira no acesso ao registro das crianças e, por isso, a Constituição Federal de 1988 garantiu o direito básicos dos povos indígenas, excluindo a exigência do RANI. 

“Meu companheiro precisou entrar em contato com a Funai para explicar que esse documento não existia mais. Foi então que encaminharam para a matriz do cartório e lá, deu tudo certo”, afirma. 

No registro, o nome de Kayan tem uma observação: Pitaguary é sua naturalidade, a etnia indígena a qual ele pertence. 

Daniel Rodrigues Braga, tabelião e registrador do Cartório Braga em Maracanaú — onde foi feito o documento, explica que o local já havia realizado o atendimento de registro de etnia no caso da liderança Ceiça Pitaguary. 

“Para o cartório, essa novidade representa a concretização dos direitos dos povos indígenas, assegurados pela Constituição Federal e materializados no documento primário da cidadania, que é a certidão de nascimento. Participar desse marco histórico é motivo de honra e satisfação para nós”. 

Ele completa que, no próximo mês, o estabelecimento irá realizar uma ação de divulgação na Aldeia para tornar o procedimento mais conhecido e para que “mais indígenas busquem o Cartório para receberem o atendimento de registro ou sua alteração”

Permissão nacional

Desde fevereiro, as pessoas indígenas podem inserir no registro civil, em cartório, o nome da etnia, bem como registrar a naturalidade como sendo da aldeia ou do território onde nasceu, ao lado do município onde a localidade está situada. A inclusão e a ordem do nome são indicadas pelo declarante. 

Além disso, é possível adicionar os dados na língua indígena e, caso haja dúvida, o registrador deverá consultar pessoa com domínio do idioma indígena, a ser indicada pelo declarante.

Essa mudança faz parte da Resolução Conjunta n.º 3/2012, confirmada pelo plenário do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). Antes da alteração, era necessária a autorização de um juiz para que a etnia da pessoa indígena fosse inserida nos documentos oficiais. 

Newsletter

Escolha suas newsletters favoritas e mantenha-se informado
Este conteúdo é útil para você?