Apaixonada por reisado, mestra Flatenara Silva mantém e repassa tradição familiar no Cariri cearense

Neta e filha de mestres de reisado, a técnica de enfermagem brinca desde os dois anos e hoje comanda o Reisado Mirim Santo Expedito

Escrito por Gabriela Custódio , gabriela.custodio@svm.com.br
Flatenara Silva e o pai, mestre Cicinho
Legenda: Flatenara e o pai, mestre Cicinho. O Reisado Mirim Santo Expedito, comandado por ela, foi fundado quando a mestra tinha por volta dos 10 anos
Foto: Acervo pessoal

Em todo 6 de janeiro, ruas de diversos locais do Ceará e do Brasil são animadas e coloridas pelos cortejos de brincantes em comemoração ao Dia de Reis. Eles cantam e dançam relembrando a visita de Melchior, Gaspar e Baltazar ao menino Jesus, ainda na manjedoura, com ouro, incenso e mirra como presentes. A data encerra o ciclo natalino.

Filha de mestre Cicinho e neta de mestre Zequinha, Cícera Flatenara Azarias da Silva brinca reisado desde os dois anos, em Juazeiro do Norte, no Cariri cearense. Ainda pequena, encenava os papeis de rainha e princesa com a irmã no Reisado Manoel Messias. Hoje ela tem 26 anos e comanda o Reisado Mirim Santo Expedito como mestra, dando continuidade à tradição familiar.

Para mim, é uma coisa sem explicação. Porque eu me considero alucinada, apaixonada pelo reisado. Comecei a brincar com dois anos, desde pequena, e eu sou a única mulher da família que está seguindo a tradição. (…) Todo ano eu digo: ‘esse ano eu não vou mais brincar, esse ano eu não vou mais brincar’. Mas eu não consigo. Eu nasci para isso.
Cícera Flatenara Azarias da Silva
Mestra do Reisado Mirim Santo Expedito

A jovem ainda concilia a profissão como Técnica de Enfermagem com a paixão e a atuação no folguedo. De geração em geração, o costume da família chegou aos filhos de Flatenara, um menino de 6 anos e uma menina de 2 anos. Eles “são loucos pelos reisados. Se não brincarem, choram que Ave Maria!”, conta a mãe.

O grupo liderado pela mestra foi fundado quando ela tinha por volta dos 10 anos. “Como todo mundo de casa brinca, ele (meu pai) queria montar (um reisado) para minha mãe. Só ela que não brinca. Ela não quis, porque ela é mais da parte de ajuda. Ela ajuda bastante na questão de cuidar, de segurar os menores, de alimentação, de fazer o traje”, conta. Quando todos conseguem se reunir, somam mais de 30 participantes.

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Além de manter a tradição, o Reisado Mirim Santo Expedito também é importante para tirar crianças e a adolescentes da rua e auxiliar diferentes áreas da vida, como a escola e o convívio familiar. “Você tem que estudar” e “você tem que obedecer seu pai e suas mãe” são algumas frases ouvidas pelos participantes. “Sem contar que é uma tradição para os nossos filhos, que são quem vai ficar no dia que a gente se encantar”, complementa.

TESOURO VIVO DA CULTURA

Em 2019, o Reisado Mirim Santo Expedito foi reconhecido como Tesouro Vivo da Cultura pela Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (Secult). “O protagonismo das meninas, sob a condução de Flatenara Silva, reconfigura o papel do feminino no universo do reisado e representa o futuro de uma tradição que, através dos jovens, encanta e atualiza a memória dos mais velhos e de seus antepassados”, afirmou a pasta ao divulgar o resultado do edital.

Segundo os mestres mais velhos, ter mulher dançando reisado não era comum como agora, no Século XXI. Mulher brincava Guerreiro, folguedo considerado patrimônio imaterial de Alagoas. Mas isso mudou. “Para eles, antigamente, era só para homens. (Mas) mulher pode fazer o que ela quiser. Ela pode dançar reisado, pode ser Mateus, pode ser uma Catirina. Hoje em dia pode. A gente pode o que a gente quiser”, defende.

Mas a tradição, atualmente, está ameaçada e Flatenara pede mais valorização por parte do poder público. “Hoje em dia, infelizmente, tem algumas pessoas que não têm nenhum histórico, não têm nenhuma tradição, e inventam de botar reisado na rua para estar com briga, acabando com a tradição que já existe, desrespeitando os mestres mais velhos que fazem quilombo na rua”, desabafa. Nesse contexto, ela cobra mais proteção para os grupos de reisado, policiamento e regulamentação.

RECONHECIMENTO NACIONAL DO REISADO

Costume de origem europeia, o reisado tem diferentes expressões e nomes no Brasil. Também chamada de “Terno de Reis”, “Tiração de Reis”, “Companhias de Santos Reis” e “Folias de Reis”, entre outras nomenclaturas, a tradição é objeto de três pedidos de reconhecimento abertos no Departamento de Patrimônio Imaterial (DPI) do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). São eles: Reisados de Pernambuco, Folias de Reis Fluminenses e Folias de Reis do Estado de São Paulo.

A Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe) já realizou o Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) dos Reisados em Pernambuco. A Superintendência do Iphan no Rio de Janeiro e a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) também já realizaram o INRC para identificar as Folias de Reis em 15 (quinze) municípios do Estado do Rio de Janeiro.

“Atualmente, o Iphan está realizando a fase de contratação de pesquisa transdisciplinar para complementar esses estudos e identificar as semelhanças e singularidades dessas manifestações nas diferentes localidades nas quais elas são expressivas e consideradas como referência cultural, com o enfoque de pesquisa de campo, nas regiões Nordeste e Sudeste do país”, informa o Instituto.

O objetivo é a produção de material escrito e audiovisual, além de um mapa, para embasar o processo de reconhecimento dessas manifestações culturais. “Com essa pesquisa, que está no horizonte próximo, será possível obter levantamentos quantitativos e qualitativos dos grupos atuantes e suas diversidades atuais e históricas”, complementa o Iphan, em nota.

Tragédia

O dia de festa, porém, acabou se transformando em dia de luto. Por volta das 4h deste sábado (6), o  Mestre de Reisado, Cicinho, foi morto a tiros aos 44 anos de idade no Bairro Pio XII, em Juazeiro do Norte. A Polícia investiga o caso.

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