A Prefeitura de Fortaleza deixou de utilizar parte dos recursos previstos exclusivamente para ações e políticas públicas voltadas para crianças e adolescentes em 2024. No total, foram designados na Lei Orçamentária Anual (LOA) R$ 146,7 milhões, mas o valor não foi integralmente aplicado para efetivar as medidas.
A denúncia consta em nota técnica do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca Ceará), que analisa e monitora a utilização dos recursos financeiros para a infância e a adolescência.
De acordo com o balanço, que considera o período de janeiro a setembro, o orçamento da LOA para crianças e adolescentes sofreu um corte de R$ 32 milhões, restando R$ 114,7 mi em relação ao montante inicial. Do total, apenas R$ 79,5 milhões foram de fato aplicados na área nos 9 primeiros meses do ano: uma subutilização de mais da metade dos recursos registrados na lei orçamentária.
Em nota, a Secretaria Municipal do Planejamento, Orçamento e Gestão (Sepog) informa um número mais atualizado: a Pasta afirma que, até novembro, somente 31,8% do orçamento inicial ainda não haviam sido executados.
Ainda conforme o levantamento do Cedeca, do valor que foi aplicado na rede de proteção infantojuvenil de Fortaleza até setembro, cerca de R$ 45,4 mi (57%) foram gastos com “Gestão da Terceirização Corporativa da Prefeitura Municipal de Fortaleza Social” e R$ 7,1 mi com remuneração de pessoal ativo – ou seja, com recursos humanos.
Assim, dos mais de R$ 146 milhões previstos inicialmente para a área, apenas cerca de R$ 28,8 milhões foram gastos com políticas e ações em si – o equivalente a 18% da previsão.
A Sepog justifica, em resposta à reportagem, que "a dotação destinada à terceirização de pessoal na área social forma as equipes de enfrentamento às violências contra criança e adolescentes, como os programas 'Ponte de Encontro' e 'Rede Aquarela'".
Além do orçamento designado na LOA para 2024, as políticas públicas específicas para infância e adolescência são assistidas pelo Fundo Municipal de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente (FMDCA), dispositivo definido por lei como instrumento de arrecadação e investimentos.
O valor previsto no FMDCA para ser executado ao longo do ano era de R$ 6 milhões, conforme o monitoramento do Cedeca – mas, do total, apenas R$ 1,2 milhão foi gasto entre janeiro e setembro.
Políticas não realizadas
Ainda de acordo com o documento, estava prevista pela Prefeitura de Fortaleza a execução de 25 ações e políticas destinadas a crianças e adolescentes. Do total, 9 não foram executadas e outras 13 usaram menos de 50% do orçamento ao longo de nove meses em 2024.
Entre as que não foram executadas estão a implementação de plataforma para acompanhar meninas e meninos em situação de violações e a implantação de núcleos de convivência para essa faixa etária em situação de rua.
Políticas que utilizaram 0% do orçamento
- Implantação de núcleos de convivência para crianças e adolescentes em situação de rua;
- Implantação de plataforma de acompanhamento a crianças e adolescentes em situação de violação de direitos em atendimento na rede municipal;
- Capacitação dos profissionais da Funci e rede de enfrentamento à violação dos direitos contra crianças e adolescentes;
- Implantação de conselhos tutelares;
- Capacitação de servidores;
- Capacitação para as Organizações da Sociedade Civil registradas no Comdica (Conselho Municipal de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente de Fortaleza);
- Capacitação de entidades da sociedade civil vinculadas ao Comdica;
- Elaboração de planos para o fortalecimento das políticas públicas para crianças e adolescentes;
- Apoio e realização de eventos.
Já entre as ações que utilizaram apenas parte do orçamento, menos da metade, está o Cartão Missão Infância, benefício de transferência de renda destinado a crianças de zero a 3 anos incompletos em situação de vulnerabilidade social.
Até junho de 2024, foram mais de 15 mil famílias atendidas com os R$ 50 mensais, de acordo com publicação oficial da prefeitura. Mas o relatório do Cedeca aponta que só um terço do orçamento designado ao cartão foi executado, o equivalente a R$ 3,7 milhões.
Políticas que utilizaram menos de 50% do orçamento
- Qualificação profissional para adolescentes e jovens em situação de vulnerabilidade e risco social – 2,39% utilizados
- Manutenção do programa “Sim, eu existo” – 3,98% utilizados
- Desenvolvimento das ações de primeira infância no Sistema Único de Assistência Social –
- Criança Feliz – 6,39% utilizados
- Desenvolvimento de serviço multidisciplinar de atendimento e acolhimento para entrega
- legal – 11,56% utilizados
- Desenvolvimento de ações do Plano Municipal pela Primeira Infância de Fortaleza (PMPIF)
- – 12,71% utilizados
- Desenvolvimento do serviço especializado em abordagem social de crianças e
- adolescentes – Ponte de Encontro – 22,81% utilizados
- Financiamento de projetos por meio de editais – 26,71% utilizados
- Enfrentamento à violência sexual contra as crianças e adolescentes – Rede Aquarela –
- 29,22% utilizados
- Aquisição de equipamentos, mobiliários e veículos – 32,52% utilizados
- Manutenção e funcionamento administrativo – 33,10% utilizados
- Manutenção do Cartão Missão Infância – 34,65% utilizados
- Manutenção do Conselho de Defesa dos Direitos da Criança e Adolescente – 36,66%
- utilizados
- Manutenção dos Conselhos Tutelares – 45,44% utilizados
Prefeitura rebate metodologia do monitoramento
Procurada pelo Diário do Nordeste, a Prefeitura de Fortaleza destacou, por meio da Sepog, que "o orçamento voltado para crianças e adolescentes não deve considerar apenas a função 243 (filtro utilizado pelo Cedeca), que trata especificamente desse público, porque é uma política pública transversal", de modo que "os investimentos e ações partem de diversos órgãos e orçamentos, como Saúde e Educação".
"Dessa forma, a Prefeitura de Fortaleza utiliza a metodologia da Abrinq para monitorar o Orçamento da Criança e Adolescente (OCA), desde 2018. Nesse ano, o OCA conta com 47 programas, 201 ações e uma meta financeira de R$ 4,4 bilhões, com mais de R$ 3,8 bilhões executados até outubro, aproximadamente 87% do total", complementa a Sepog, informando que os relatórios trimestrais de execução dos orçamentos estão disponíveis no Canal do Planejamento.
O Cedeca, procurado pela reportagem, reafirmou a importância de observar o orçamento exclusivo para crianças e adolescentes, e não somente a transversalidade.
Ingrid Lorena, assistente social e coordenadora do monitoramento feito pela instituição, destacou que "a subfunção 'Assistência à Criança e ao Adolescente' é um nível de detalhamento do orçamento público que serve para evidenciar os recursos exclusivos destinados para crianças e adolescentes".
"Tratamos em nosso estudo a execução dessas ações específicas ao longo dos anos e o que evidenciamos é que muitas políticas - que estão inseridas neste nível de detalhamento - não apresentam nenhuma execução ou têm pouco recurso diante da imensa demanda existente nas políticas para infância e adolescência", pontua.
Ela reforça que a metodologia OCA, da Fundação Abrinq, mencionada pela Sepog, "é uma importante iniciativa, no entanto, a aplicação dela, por si só, não qualifica a análise do orçamento que é destinado para criança e adolescente", uma vez que "considera tanto o orçamento exclusivo para este público, quanto o não exclusivo (destinado para a população geral, mas que também beneficia crianças e adolescentes indiretamente".
Quais os prejuízos de ‘não gastar’
A subutilização de recursos financeiros exclusivos deixa de fortalecer ações e serviços estruturais específicos para a infância, fase da vida que, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), deve ter prioridade absoluta na execução de políticas públicas.
Os cortes e a não execução do orçamento previsto para meninos e meninas apontam a um caminho oposto, de “omissão”, segundo opina Ingrid Lorena.
A pesquisadora cita que “a porcentagem de execução de políticas públicas fundamentais tem sido reduzida drasticamente em Fortaleza”, impactando na expansão das redes de educação e de saúde infantil.
“Uma ação voltada pra gestão de RH tem mais de 50% de execução, enquanto uma para pessoas em situação de rua tem 0% de execução. Isso mostra quais são as prioridades que o poder público tem escolhido investir”, critica.
Na área da educação, Ingrid observa que a falta de investimentos prejudica, por exemplo, a ampliação das vagas em creches. “Hoje temos apenas 37,7% das crianças com idade de creche matriculadas, abaixo dos 50% que o Plano Nacional de Educação recomenda”, frisa.
Já em saúde, a assistente social avalia que o foco das políticas públicas deveria ser o eixo mental. “Crianças de 9 a 10 anos, meninos negros, têm buscado mais atendimento nos CAPS. Mas Fortaleza tem um déficit de 13 equipamentos”, contabiliza.
Segundo a pesquisadora do Cedeca, “desde 2019 não temos execução orçamentária para construção de novos Centros de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil (CAPSi), e também não temos ampliação”.
“Estamos vivenciando um cenário que os CRAS estão fechando. O poder público tem recomendações, pesquisas e evidências mostrando onde e o que tem sido feito. Mas não tem sido uma prioridade para a agenda pública”, pontua.
“Com essas políticas, se fossem bem estruturas, com investimento realizado, a gente muito provavelmente teria redução da violência da nossa cidade, crianças protegidas, com perspectiva de futuro, que vão entendendo o que é ter direitos”, finaliza Ingrid.
Veja nota da Sepog na íntegra
"O orçamento voltado para crianças e adolescentes não deve considerar apenas a função 243, que trata especificamente desse público, porque é uma política pública transversal. Os investimentos e ações partem de diversos órgãos e orçamentos, como Saúde e Educação.
Dessa forma, a Prefeitura de Fortaleza utiliza a metodologia da Abrinq para monitorar o Orçamento da Criança e Adolescente (OCA), desde 2018. Nesse ano, o OCA conta com 47 programas, 201 ações e uma meta financeira de R$4,4 bilhões, com mais de R$3,8 bilhões executados até outubro, aproximadamente 87% do total.
Os relatórios trimestrais de execução desse e de outros cinco orçamentos temáticos estão disponíveis no Canal do Planejamento (www.planejamento.fortaleza.ce.gov.br).
Em relação aos levantamentos realizados pelo Cedeca Ceará, destacamos que:
- 68,2% da subfunção 243 (criança e adolescente) foi executada até novembro de 2024, estimada em R$146,7 milhões na LOA 2024.
- a dotação destinada à terceirização de pessoal na área social forma as equipes de enfrentamento às violências contra criança e adolescentes, como os programas “Ponte de Encontro” e “Rede Aquarela”. O orçamento previa R$50 milhões e a execução atual é de R$60,5 milhões.
Até o final de 2024, a Gestão Sarto finaliza a entrega de 33 Centros de Educação Infantil (CEI) e 33 berçários, apresentando um crescimento de 14,61% em comparação com a gestão anterior. O número de matrículas apresentou um crescimento de aproximadamente 10%, o que destaca o atendimento da rede de educação infantil do município de Fortaleza com o 1º lugar do Nordeste.
Já a despesa com a saúde mental de crianças e adolescentes é realizada pela Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), usada principalmente nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Essas despesas estão no Fundo Municipal de Saúde, na ação 2514, dentro do programa de Atenção Especializada à Saúde. O valor planejado era de R$ 26,9 milhões, mas já foram gastos R$ 33,7 milhões, ou seja, 25,4% a mais do que o previsto. Entre 2021 e maio de 2024, os três CAPS Infantis realizaram 248.758 atendimentos, um aumento de 43,40% em comparação com a gestão anterior."