O Ceará se destaca como um dos estados do Brasil onde há maior risco de falta de alimentos nos domicílios com crianças menores de 10 anos. O alerta é de um levantamento da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) divulgado nesta quarta-feira (14).
No Estado, 51,6% dos lares onde há crianças estão enquadrados em insegurança alimentar moderada (redução significativa de alimentos disponíveis) ou grave (a fome em si, seja por falta de comida ou por haver apenas uma refeição no dia).
A pesquisa foi realizada por meio de uma amostragem representada por 506 pessoas ouvidas no estudo, dos quais 128 eram residências de famílias com crianças.
No Nordeste, o Ceará fica atrás apenas do Maranhão (63,3%), de Alagoas (59,9%) e de Sergipe (54,6%). Em relação ao Brasil, onde a média é de 37,8%, fica na sétima colocação do ranking.
O 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (Vigisan) também aponta que apenas 14,8% dos domicílios cearenses onde há crianças estão com situação alimentar confortável. Outros 33,6% são classificados em insegurança leve, quando existe preocupação de acesso aos alimentos.
“Outro dia minha filha tava comendo só farinha com café porque era o que tinha”, conta Daiane Silva, que mora no bairro Siqueira com os quatro filhos de 7, 6, 3 anos e 1 ano e 6 meses. Mãe solo, não trabalha porque, vinda de Uruburetama, no interior do Ceará, não tem com quem deixar as crianças.
Com benefícios governamentais, ela consegue pagar água, aluguel e energia, restando pouco para a comida. A mulher chegou a pedir esmola na rua, mas diz que parou ao ouvir que “isso não era certo”. “Era muito cansativo e ainda morria de medo por eles”, diz.
Além de fazer malabarismos para pôr comida no prato, a mãe também se preocupa com o impacto da qualidade do que os filhos comem - mas não só. “Eu cozinho num fogareiro e, quando faz fumaça, minha filha começa a cansar”, afirma.
A preocupação com o que comer também atribula diariamente a manicure Natália Alves, moradora do Conjunto João Paulo II, no bairro Barroso. Em sua casa, são sete bocas, incluindo o marido e mais cinco filhos, de idades entre 4 meses e 12 anos.
Para cuidar do bebê e sem dinheiro para comprar material de trabalho, ela está desempregada. A família sobrevive com auxílios governamentais e “bicos” do esposo, que atua como reciclador, além da ajuda de projetos sociais.
A gente paga aluguel, água e luz, e o que sobra não dá pra muita coisa. Recebemos cesta básica, frutas e verduras, doações de bolachas e biscoitos. Mas já chegou dias, muitas vezes, que eu não sabia o que dar de comer aos meus filhos.
Com pouco dinheiro, as alternativas alimentares também se limitam: a família recorre bastante a produtos industrializados, como salsicha e mortadela. A mãe se preocupa com os filhos porque ela mesma já desenvolveu obesidade nível 3. “Acho que se tivesse mais escolha, a gente estaria melhor, mas temos que comer o que tem”, lamenta.
Luiza Santos, coordenadora do projeto Amor ao Próximo, também no Barroso, está precisando “priorizar a prioridade”, porque a quantidade de famílias atendidas – hoje são 180 – vem aumentando na mesma frequência em que as doações estão reduzindo.
“Do começo do ano pra cá, quando a pandemia começou a cair, a caridade diminuiu junto”, percebe. Sem apoio do poder público, a iniciativa depende de doações e campanhas de financiamento.
“Diariamente recebo não é nem pedido de ajuda, é de socorro. Geralmente são famílias chefiadas por mulheres e catadores. Tem gente que come praticamente do lixo, então estamos tentando priorizar a prioridade, porque precisar, todas elas precisam”, sustenta.
Condições de vida
O avanço da pobreza entre as famílias e o endividamento pós-pandemia são dois dos principais fatores para alastrar a fome entre os brasileiros, como destaca Francisco Menezes, analista de Políticas da ActionAid, instituição de apoio à realização da pesquisa Vigisan.
“Fatores como endividamento e insegurança alimentar grave estão diretamente relacionados, e são mais graves nos lares com crianças em praticamente todos os estados. As desigualdades se refletem nas diferentes regiões”, observa.
A alimentação tem enorme peso no orçamento das famílias de menor renda. Assim, a inflação e, mais ainda, a inflação dos alimentos vem não só corroendo a capacidade de as pessoas se alimentarem, como afetando a qualidade da comida consumida.
O especialista alerta que “só é possível superar a fome com o devido enfrentamento da raiz do problema, e isso envolve geração de conhecimento com rigor técnico aliado a retomada, implementação e desenvolvimento de políticas públicas efetivas e estruturadas em âmbitos nacional, estaduais e municipais”.
Infância sem saúde
A falta do direito básico à comida gera um efeito dominó de negações. A primeira peça derrubada é a saúde física: da desnutrição à obesidade, são múltiplos os prejuízos de uma alimentação ausente ou precária, como lista Renata Belizário, nutricionista e professora da Universidade Estadual do Ceará (Uece).
“Anemia, deficiência de vitaminas, dificuldade de concentração, irritabilidade, falta de energia pra brincar ou desempenhar atividades diárias são algumas consequências. A criança não alcança o potencial de crescimento”, pontua a especialista.
A desnutrição, efeito que a sociedade mais associa à fome, é só um dos resultados gerados pelo acesso deficiente à alimentação, como explica Renata.
Geralmente, a insegurança alimentar moderada está relacionada com a redução da qualidade da alimentação das famílias e com o aumento do sobrepeso e da obesidade infantis. Já a insegurança grave, que é a fome, tanto pode estar associada a isso como à desnutrição.
O cenário vivenciado na infância, então, reverbera na vida adulta. “A insegurança alimentar traz os aspectos da fome oculta, que é o consumo de alimentos ultraprocessados, relacionados ao desenvolvimento de doenças crônicas (como diabetes e hipertensão) na vida adulta”, cita.
Efeitos da fome cruzam gerações
Além do corpo, as perspectivas das crianças que vivem hoje em insegurança alimentar no Ceará também se esvaziam. Renata Belizário destaca que a infância é um período de mudanças intensas, de modo que “qualquer variabilidade traz consequências até a gerações futuras”.
“Há um risco muito maior de aparecimento de doenças e infecções, pelo baixo sistema imunológico, prejudicando a atenção, a memória e a capacidade de aprendizagem de forma geral. Tudo isso leva a criança a um mau rendimento escolar”, avalia a nutricionista.
Isso acaba gerando um efeito cascata: se tem um mau rendimento escolar, uma criança com fome tem maior chance de abandonar os estudos na adolescência, prejudicando no trabalho quando adulta, vivendo sem perspectiva de melhores salários e condições.
A pesquisadora alerta que “para encarar o desafio da insegurança alimentar e nutricional infantil, é preciso pensar em sustentabilidade e elaborar políticas públicas que atravessem diversas áreas”.
“Temos que pensar na alimentação das crianças tanto dentro como fora da escola. Não podemos melhorar a comida só na escola sem promover condições pra que as famílias consigam acesso a comida de verdade em casa”, frisa Renata.
Garantir a presença de nutricionistas na atenção básica, que inclui os postos de saúde e as equipes de saúde da família, também é medida apontada pela professora como essencial para diagnosticar e conhecer as necessidades das famílias.
“Precisamos ajudar a população com campanhas de educação nutricional, fazer projetos, pesquisas. Implementar políticas públicas efetivas, e não só teóricas, para que não tenhamos uma população futuramente adoecida”, finaliza.
Para ajudar
Projeto Amor ao Próximo, no Barroso - (85) 98628-6557