Centenas de famílias foram retiradas de suas casas ou estão vivendo em áreas de "risco iminente" de deslizamentos em Itapipoca, no Vale do Curu, distante cerca de 130 km de Fortaleza. Conhecido como a "cidade dos três climas" por abrigar em seu território praias, serras e sertão, o município decretou situação de emergência devido às fortes chuvas que têm atingindo o Ceará.
Nessa quarta-feira (22), o Diário do Nordeste esteve na cidade, tanto no bairro de Ladeira como em distritos da região serrana, para acompanhar a saga dos moradores retirados de casa ou que continuam em áreas de risco.
A Defesa Civil emitiu alerta de evacuação na região desde a quarta-feira (15). Com as fortes chuvas do sábado (18), 430 pessoas deixaram suas casas e buscaram refúgio em residências de parentes diante do risco de rolamento de pedras. Outras 32 foram alojadas em uma escola municipal disponibilizada como abrigo temporário, e mais de 250 permanecem nas áreas de risco.
Das 7h da manhã de sábado (18) até as 7h de domingo (19), o município registrou volume de 92 milímetros de chuva, conforme dados da Funceme. Até o dia 22 deste mês, Itapipoca registrava a sexta maior média de precipitações em março, de 374,1 milímetros acumulados. O previsto para todo o mês era de 286.1 milímetros.
Em Ladeira e Sanharão, por exemplo, dois bairros da área urbana próximos de barrancos e paredes de serras, a população vive com medo da água que cai do céu. Além das encostas, a infraestrutura precária dos locais também eleva os riscos para os moradores.
Sem ter "para onde ir", muitos preferem ficar nas casas interditadas como se a presença fosse suficiente para impedir danos aos imóveis. Outros saíram no dia de alerta da chuva, mas já voltaram. Por isso, a Prefeitura da Itapipoca afirma que, hoje, não é possível mapear com exatidão quantas famílias estão na área de risco ou em casas de parentes.
Quem decide voltar assume o risco, mas por se ver sem opção.
Ladeira
No bairro de Ladeira, por exemplo, alguns casas permanecem fechadas, sem ninguém. Outras muitas já voltaram à rotina. Lá, os perigos são por conta das várias pedras que se concentram na região, que podem passar sobre as casas em enxurradas.
Para a dona de casa Maria Luciana Santos, de 52 anos, o medo das "pedras bolando" não foi suficiente para ela e o marido deixarem o local que moram no último fim de semana, que fica bem no alto da ladeira principal que dá nome ao bairro. Sem ter para onde ir, os dois foram os únicos da comunidade a permanecer no local no dia, mesmo com o alerta da Defesa Civil Municipal.
"Eu dormi em casa mais o meu marido, porque não tem quem arranque ele daqui. Ele num é velho, mas é igual aqueles velhos turrão: num sai não. Todo mundo saiu. Uns para casa de família, outros pra escola. Ficou só eu e ele. Só nós"
A situação vivenciada por dona Maria Luciana não é nova, por mais que cause episódios de pânico — perigosos para uma pessoa com pressão alta e cardíaca. Em 2019, o volume das precipitações levaram "pedregulhos" do alto da encosta à residência dela, chegando a destruir um alpendre no quintal. Desde então, ela afirma que a casa está condenada pela Defesa Civil, mas que a falta de opção, fruto de um "mau negócio", a faz permanecer.
"Queriam me tirar daqui aí eu digo 'pra onde é que eu vou?'. Eu não tenho para onde ir, eu tenho que ficar aqui mesmo enquanto ela tiver de pé. (...) Eu fico aqui de teimosa, eu sei", justifica.
Apesar da coragem para ficar em casa diante dos alertas, as fortes chuvas em Itapipoca em 2019 deixaram marcar na saúde de Maria Luciana até hoje. No último sábado, durante a chuva, os sonhos faziam a relembrar as pedras rolando para o seu quintal em 2019.
"Já tá com duas noites que eu acordo porque, para mim, eu to escutando as pedras bolando", acrescenta.
'Volta com medo'
Já a dona de casa Gorete Viana, de 49 anos, chegou a sair com o filho de 13 anos diante do risco de desabamento. Nesta semana, no entanto, ela já voltou para sua propriedade. Antes disso, relembra que a escola em que o garoto estuda é que foi abrigo até então.
"O agente veio e disse que a gente não podia ficar aqui, que a gente tinha que dormir em algum lugar que não tivesse perigo. Aí a gente desceu e foi dormir lá (na escola)", explica, reforçando que o local era um dos disponibilizados pela Prefeitura.
O retorno para casa ocorreu devido à falta de condições financeiras de se abrigar em outro lugar. Diferente de outros vizinhos, os familiares de Gorete vivem na mesma situação que ela. Um deles, inclusive, é Maria Luciana, que tem a casa no alto da Ladeira.
"Não tenho é condições de sair, porque a gente tem o Bolsa Família, mas num dá pra pagar o aluguel, pagar tudo, né? Comprar comida... Por isso que a gente não saiu ainda. Todo mundo que mora por aqui, bem dizer, tem só isso mesmo. Se pudesse, a gente saía, né?"
Mocambo de Cima
A equipe de reportagem também foi a Mocambo de Cima, no distrito de Arapari, acompanhar o trabalho da Defesa Civil municipal e da Secretaria de Assistência Social para fazer os primeiros levantamentos a partir dos chamados das comunidades afetadas pelas precipitações.
De terça (21) para quarta (22), 20 famílias que vivem na região serrana acionaram os órgãos de assistência em situação de emergência.
Para chegar à localidade, foi preciso subir a serra. Em alguns trechos, apenas carros modelo 4x4 conseguem passar, por causa das estradas de terra danificadas.
Em vários locais, a água chegou bem perto de entrar nas casas. Não só pelos grandes volumes de chuva registrados em pouco tempo, mas porque muitas construções ficam próximas ao leito do riacho Sororó.
Entre elas, está a morada de taipa de Lindalva Gonçalves de Sousa, 29, que reside há cerca de 8 anos numa área de difícil acesso. Para a Defesa Civil, as paredes de barro e madeira podem não suportar as próximas chuvas. O órgão apontou “risco estrutural iminente” no local.
“O riacho subiu quase na porta de casa. Minha família tirou as coisas e subi lá pra mãe. Dormi lá. Só terça foi que voltei”, conta a dona de casa, que vive com o marido e a filha de 5 anos.
Com a casa interditada, Lindalva foi informada de que precisará recorrer à ajuda de parentes ou ao aluguel social. Ela, contudo, não tem perspectiva em mente. “Por enquanto, não sei o que vou fazer não”, confessa.
Desabamento
O futuro leva ao choro a auxiliar de serviços gerais Maria de Sousa Gonçalves, 55, ao ser questionada pela reportagem. Ela também teve a residência, onde mora há 26 anos, interditada depois que dois quartos vieram abaixo, na tarde do último sábado. “Dói perder o que a gente construiu”, compreende.
Susto grande com a chuva nunca havia ocorrido como neste ano. No sábado, ela passou um bom tempo ajudando o marido e o filho a retirar água do entorno da residência. Mal sabiam eles que a casa já estava sendo invadida. “Parecia um rio”, recorda.
Tomei banho e só deu tempo de botar a roupa. Escutei um papoco grande e botei a mão na cabeça. Gritei por Deus e fiquei parada. Meu menino correu e disse ‘pai, o que foi?’ Na minha mente, foi a casa que desceu. Quando olhamos pra trás, a casa tinha descido. Dois quartos de uma vez.
A família se refugiou na casa de uma cunhada de Maria. Quando finalmente retornaram à moradia, viram um cenário de destruição. Porém, ela relata que, tirando um motor de puxar água, não perderam nada importante - exceto uma vida de memórias desde que chegou a Mocambo, em 1986.
“Deus preservou nossa vida e deu esse grande livramento, porque bem poderia ser um momento em que a gente tivesse dormindo”, percebe.
Encostas em risco
Em outro ponto de Arapari, a situação da casa do agricultor José Adriano da Silva, 41, até dá medo. Ela fica vizinha a uma encosta de barro que já cedeu com as últimas chuvas, e o aspecto atual não passa qualquer segurança. Segundo Cláudio Brito, coordenador da Defesa Civil de Itapipoca, se chover novamente, a casa pode ser invadida.
A casa onde Adriano mora há 19 anos, com a esposa e três filhos, “tá toda rachada”, como ele mesmo reconhece, pelos efeitos de uma chuva nunca antes vista. Conforme o agricultor, o plano é “esperar pela mão de Deus” e procurar o aluguel social cedido pela Prefeitura, agora que o imóvel foi interditado.
Paula Braga, secretária de Assistência Social de Itapipoca, explica que a prioridade é a retirada das famílias da área serrana que permanecem nos locais ainda sob riscos.
“A secretaria está providenciando o aluguel social e enviando cestas básicas, kits de higiene pessoal e colchões. O aluguel social será providenciado para todas as pessoas que tiveram a casa desabada. Como é um processo burocrático, essas pessoas estão em casas de familiares”, detalha a gestora.
Perda do sustento
Há 30 anos vivendo em Mocambo, Maria de Jesus, 51, é outra que nunca viu um “inverno” assim. Segundo ela, o monitoramento na prática é o volume do riacho: quando a água sobe, a comunidade já fica em alerta porque pode “levar tudo”.
Por ficar num trecho mais elevado da serra, na casa dela não entrou água, mas os vizinhos “de baixo” saíram todos. Além de provocar as mudanças, a água em excesso também prejudicou lavouras e comprometeu o sustento de algumas famílias.
Quando o açude tá cheio, alaga mesmo. Aqui era cheio de horta, todo mundo perdeu. Banana, cebola, cheiro verde… foi embora tudo. Meus irmãos mesmo tinham plantação pra complementar a renda. Desceu tudo. Replantar só quando a gente ver que não tem mais perigo.
Ajuda pública
De acordo com a gestão municipal de Itapipoca, equipes técnicas estão em campo para verificar as necessidades e fazer todos os levantamentos das áreas afetadas. Moradores do bairro Ladeira, por exemplo, foram alertados sobre riscos de inundação e rolamento de blocos de rochas.
Ainda de acordo com a Prefeitura, a Comissão Municipal de Defesa Civil (Comdec) e outras secretarias seguem monitorando os riscos e realizando ações de mitigação.