3 a cada 5 partos realizados no Ceará são cesáreas; especialistas discutem sobre riscos e benefícios
Em 2000, as cesarianas representaram 27,2% dos partos ocorridos no Estado. Duas décadas depois, em 2021, o índice passou para 61,4% dos 120.266 nascimentos registrados
Com a indicação correta, a cesárea pode salvar vidas de mães e bebês. O Brasil e o Ceará têm batido recordes de nascimentos por meio de cirurgias, mas realizar mais cesáreas não é sinônimo de salvar mais pessoas. Pelo contrário. Quando praticada em excesso, sem real necessidade, não se observa o mesmo benefício diretamente relacionado ao aumento de procedimentos. Pior: começa a haver prejuízos.
A proporção de partos cesáreos realizados no Ceará tem crescido constantemente ao longo das últimas duas décadas, com exceção de dois anos — 2015 e 2017 — quando o indicador apresentou discretas reduções em relação ao ano anterior. Em 2000, início do período analisado pelo Diário do Nordeste para esta reportagem, as cesarianas representaram 27,2% dos partos ocorridos no Estado.
Em 10 anos, esse percentual saltou para 48,9%, com a cirurgia realizada em quase metade dos partos. No ano seguinte, 2011, a proporção de cesáreas ultrapassou a de partos vaginais pela primeira vez no Ceará — posto que não perdeu mais desde então. No intervalo analisado, o ápice foi atingido em 2021. Nos dois anos seguintes, cujos dados ainda são preliminares, esse comportamento se mantém.
No ano de 2021, o mais recente da série histórica com dados consolidados, três em cada cinco partos realizados no Ceará foram cesáreas. Ao todo, 73.883 mulheres deram à luz um ou mais bebês por meio de cirurgia — 61,4% dos 120.266 nascimentos registrados. Com isso, o Ceará foi o 9º estado com maior percentual de cesáreas em todo o País. No Nordeste, ficou na 3ª colocação, atrás do Rio Grande do Norte (64,4%) e da Paraíba (61,5%).
Nacionalmente, o levantamento aponta que a cesárea foi feita em mais da metade (57%) dos partos realizados no Brasil em 2021. Metade dos estados tem indicador maior que o nacional, e os dois extremos estão localizados na região Norte do País. Enquanto Rondônia (RO) tem a maior proporção (68%), Roraima (RR) apresenta o menor percentual de cesarianas (32,6%). Os dados foram coletados pelo Diário do Nordeste no Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (Sinasc), do Ministério da Saúde (MS).
EXPERIÊNCIAS COM A CESÁREA
Estudante de Direito e estagiária em um escritório jurídico, Marina Linhares, 22, teve seu primeiro filho há nove meses. Ela tentou “de tudo” para ter um parto vaginal, mas os planos mudaram. Com diagnóstico de diabetes gestacional, houve uma tentativa de indução do parto normal na 40ª semana da gestação. As contrações vieram, mas não houve dilatação.
O bebê estava com batimentos alterados, então ela decidiu não tentar induzir o parto novamente e seguir para a cirurgia. “Eu não iria colocar em risco a vida do meu filho, então eu preferi ir para a cesárea”, conta. Marina relata um misto de sentimentos. Ao mesmo tempo em que se sentiu acolhida pela equipe, teve medo da cirurgia em si. “Mas confiei em Deus, porque eu sabia que era a melhor via de parto para que o meu filho nascesse com segurança e saúde”, diz.
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Karoline Coutinho, de 25 anos, também teve sua primeira filha há nove meses. Na 19ª semana de gestação (5º mês), teve o diagnóstico de pressão alta. Encaminhada pelo médico para uma nutricionista, ela passou a seguir uma dieta restritiva e a monitorar constantemente a pressão. Mas, ainda assim, na 35ª semana (8º mês), teve um pico de pressão alta e foi medicada.
Na 38ª semana, foi encaminhada para a cesárea. Por mais que quisesse o parto vaginal, Karoline conta que ficou aliviada. “É uma incerteza, quando você tem pressão alta, se o seu bebê está bem, se não está”, lembra. Com uma cirurgia rápida e de sucesso, em 48 horas ela teve alta e voltou para casa, onde teve como foco ficar com a filha e se recuperar da cesárea. “É uma cirurgia e é importante a gente respeitar, então eu só fazia esforço para ficar com a minha bebê, para cuidar dela. Deixei outras prioridades para lá”, afirma.
Para Marina, a recuperação após a cirurgia não foi tão tranquila, tanto fisicamente quanto mentalmente. “Eu senti muita dor nas costas, foi muito complicado para mim. Eu não pude dar o primeiro banho do meu filho, não pude fazer as coisas que eu, que queria o parto normal a todo custo, poderia fazer”, conta. Tranquila de que a cirurgia necessária naquele momento, ela continua com desejo do parto normal caso tenha outro filho.
CARTA DE FORTALEZA
Desde 1985, a Organização Mundial da Saúde (OMS) aponta que a taxa ideal de cesáreas de um país deve ser em torno de 10% a 15%. Esse preceito consta na chamada “Carta de Fortaleza”, documento criado após a conferência sobre tecnologias apropriadas para o parto, com convidados e representantes da Organização Mundial da Saúde (OMS) e da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), realizada naquele ano na capital cearense.
O Brasil é o segundo país com maior percentual de cesáreas em todo o mundo, atrás apenas da República Dominicana (56,4%). Outros países com altas taxas são Egito (51,8%), Irã (47,9%) e Turquia (47,5%).
Praticamente nenhum país, principalmente os países em desenvolvimento, tem essas taxas (indicadas pela OMS). As taxas são sempre acima de 30%, 40%. Então, é possível que, pela cultura que já se instituiu em relação à cesárea, a gente não consiga chegar nesses 10% a 15%. Mas, quando olhamos para o Brasil e vemos que mais da metade das crianças nascem de cesárea, entendemos que isso está fora do contexto. Não existe nenhuma situação em que isso seja aceitável.
Vários fatores têm influência no alto índice brasileiro. A enfermeira obstetra e educadora perinatal da Jasmim para Gestantes, Manu Gomes, aponta que essa é uma construção cultural que tem como alicerce a violência obstétrica, a desinformação sobre o parto vaginal e o cuidado da mulher centrado na agenda médica.
“Tivemos uma geração de violências obstétricas. Nossas mães pariram com dor, deitadas, sem acompanhante, com fome, ligadas a um soro de injeção de força e com episiotomias (corte no períneo). Então, o que foi passado na geração seguinte? ‘É melhor marcar uma cesárea do que sofrer o que eu sofri’. Mas o que ela sofreu foi do parto? Não. Foi a maneira como o parto foi conduzido”, afirma a enfermeira.
O ginecologista e obstetra Samuel Verter, mestre em Saúde Coletiva, pontua a existência de cada vez mais indicações de cesáreas relativas ou que “não são reais”, seja por vontade da paciente ou por conveniência do médico. “Tem colegas que, no final da gestação, tocam a paciente — e não tem necessidade de toque durante o pré-natal, a não ser que ela esteja em trabalho de parto — e dizem que o bebê está muito alto ou que o colo está fechado. E não necessariamente isso é uma indicação de cesárea”, exemplifica.
Verter também afirma que esse índice ideal estabelecido pela OMS não considera um aspecto da saúde pública brasileira: a autonomia da mulher. É estabelecido pelo Sistema Único de Saúde (SUS) que a mulher pode decidir pela realização da cesárea mesmo sem indicação médica, e o Conselho Federal de Medicina (CFM) regulamentou essa possibilidade a partir a 39ª semana da gestação.
Hoje, discutimos muito se o desejo materno deve ser uma indicação absoluta de cesárea. Nos outros países não é. A maioria das mulheres não quer a cesárea, elas querem não sentir dor, e na maioria desses outros países, principalmente os desenvolvidos, eles dão analgesia de parto, mesmo no sistema público.
No Brasil, o médico aponta a dificuldade de acesso à analgesia de parto, corroborando para os altos índices da cirurgia. Ao mesmo tempo em que defende a autonomia da mulher, ele destaca a necessidade de a decisão pela cesárea ser tomada de forma consciente, considerando os riscos e os benefícios, e compartilhada com a família e com a equipe que está prestando assistência.
Ricardo Tedesco, membro da Comissão Nacional Especializada em Assistência ao Abortamento, Parto e Puerpério da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), também aponta o direito da mulher à escolha do tipo de parto, sem a devida instrução sobre o assunto, como um fator que influencia os altos números de cirurgias.
Ele afirma que isso é mais preocupante entre as mais jovens. “São mulheres que acabam tendo gestações de repetição. Se ela começa com uma cesárea aos 15 anos, quando ela tiver 20, ela está na quarta cesárea. E sabemos que, quanto maior o número de cesáreas, maior é o risco materno”, alerta.
O CICLO VICIOSO DAS CESÁREAS
O índice de cesáreas segue um ciclo vicioso: quanto mais cirurgias são realizadas, maior a chance de outras cesáreas serem feitas. Isso porque, quando uma mulher está grávida pela segunda vez e já fez uma cesárea, ela pode ter um segundo parto vaginal. Quando há duas cesáreas anteriores, o terceiro parto tem indicação relativa para cesárea, uma vez que aumentam as chances de rotura uterina. Já na quarta gravidez, se houve três cesáreas anteriores, a cirurgia é uma indicação absoluta, explica Verter.
Com isso, há um esforço internacional para os profissionais evitarem que o primeiro parto da mulher seja uma cesariana. “Tendo um parto normal anterior, ela (a paciente) já passou por esse processo. O corpo dela já sabe o que tem que fazer no segundo parto, então provavelmente também vai ser um parto normal. O que ela acha que tem de dor, ela já conhece, já sabe até onde ela vai. Não é mais um sofrimento, porque ela já sabe tudo que vem pela frente”, aponta Samuel Verter.
A enfermeira obstetra Manu Gomes acrescenta que, quando já houve uma cesárea, a próxima gravidez requer uma atenção a mais devido ao risco de complicações como acretismo placentário — invasão da placenta no útero —, ruptura uterina e hemorragia pós-parto. Ela pontua ainda os impactos do tipo de parto para o bebê, desde a resistência contra infecções ao desenvolvimento neuropsicomotor.
“Quando a mulher entra em trabalho de parto e ele nasce de forma natural, é um bebê que pediu para nascer. Então, temos certeza que o pulmão dele está todo formado e que ele vai, sim, assumir a respiração fora da barriga. Ele terá menos infecções do trato respiratório alto, porque passou pelo canal vaginal da mulher e adquiriu essa resistência com as bactérias do canal vaginal”, explica.
INDICAÇÕES PARA CESÁREA
Quando realmente há indicação, porém, a cesárea pode salvar vidas. Veja, abaixo, casos em que a cirurgia é indicada.
- Pressão alta refratária, que não melhora com o tratamento medicamentoso (pré-eclâmpsia com sinais de gravidade)
- Eclâmpsia
- Diabetes descompensada
- Sofrimento fetal agudo
- Placenta prévia (que está recobrindo o colo do útero, impedindo a passagem do bebê)
- Trabalho de parto prolongado sem progressão
- Parada secundária da dilatação
- Parada secundária da descida do bebê
- Bebês macrossômicos, acima de 4,280kg
- Bebê muito pequeno
- Posição transversa ou pélvica do bebê
- Síndrome de Hellp
- Prolapso de cordão
- Desproporção cefalopélvica (DCP)
- Frequência cardíaca fetal não-tranquilizadora
- Descolamento prematuro da placenta com feto vivo
- Ruptura de vasa prévia e inserção velamentosa do cordão
- Herpes genital com lesão ativa no início do trabalho de parto
- Antecedente de cesariana corporal, ruptura uterina ou miometrectomia.
MUDANÇA DE CULTURA
Para mudar esse cenário, Ricardo Tedesco aponta algumas propostas. Ele defende que haja uma mudança cultural que reconheça que a cesárea só é boa quando realmente há necessidade de ela ser realizada. Além disso, destaca a importância de a mulher ter informações adequadas para compreender o que é a cesárea e as implicações da decisão, sem que a cirurgia seja "demonizada".
Ele cita a necessidade de oferecer condições adequadas para o parto normal, com acolhimento e métodos para alívio da dor, farmacológicos ou não. “Isso é fundamental. Se você disser, ‘olha, você vai ter um acompanhamento e, quando você tiver uma dor mais forte, nós vamos tratar essa dor’, muda completamente o pensamento das mulheres a respeito do parto”, comenta. Tedesco destaca, ainda, a importância de instruir melhor as mulheres a respeito das opções de indução do trabalho de parto.
Também se recomenda que, depois das cesáreas, principalmente as complicadas, os centros façam reuniões para revisar o que faltou, o que foi feito para que aquele parto não virasse cesárea e o que poderia ter sido oferecido para a mulher para que, nos próximos, as atitudes possam ser tomadas oportunamente e os desfechos possam ser diferentes.
Manu Gomes destaca o papel da enfermagem obstétrica na desconstrução dessa cultura. Esses profissionais atuam tanto no SUS, realizando partos de risco habitual, quanto na rede privada, em equipes interdisciplinares. "As enfermeiras obstétricas têm um modelo de assistência menos intervencionista. Nós esperamos que o parto aconteça de maneira natural, fisiológica, no tempo do corpo da mulher, no tempo das contrações, sem pressa e sem estímulo à necessidade de apressar aquele parto", explica ela, referindo-se ao cenário do sistema público.
Além da maior conscientização sobre o tipo de parto, Manu Gomes cita a importância de políticas públicas a longo prazo sobre o tema e de maior valorização do profissional de Enfermagem. “É uma enxurrada de fatores que realmente atrapalham para que esse movimento de humanização, de autonomia, de empoderamento da mulher, tenha um crescimento contínuo”, afirma.
Ana Maria Martins, assessora Técnica da Rede de Atenção Materno Infantil da Secretaria da Saúde do Estado do Ceará (Sesa), afirma que a pasta acompanha os indicadores de parto normal e cesariana e tem se preocupado com esses números. Ela explica que a atuação da Secretaria sobre o tema ocorre principalmente no âmbito da Rede Cegonha, estratégia do Ministério da Saúde operacionalizada pelo SUS que preconiza o parto humanizado e as boas práticas.
Especificamente na rede Sesa, a gestora aponta um alto índice de cesáreas relacionadas inclusive ao perfil das unidades hospitalares, que recebem pacientes de todo o Estado e com diversas patologias. "As nossas unidades têm um perfil terciário, então, são muitos partos prematuros e de bebês com má formação", explica.
Em algumas unidades, ela aponta que o trabalho de conscientização é mais "perceptível", como é o caso do Hospital Geral Dr. César Cals (HGCC), que conta com o apoio da residência em Enfermagem Obstétrica. "É o que, de fato, faz as coisas acontecerem", afirma.