Sertão dos Inhamuns é cenário de romance da cearense Kah Dantas sobre memória e autoconhecimento

“Inhamuns” é a primeira narrativa longa da escritora, enfatizando a necessidade de o passado ser confrontado

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Publicado pela editora Moinhos, o romance de Kah Dantas é resultado de longos enamoramentos da autora com a região do Ceará na qual a trama é ambientada
Foto: Jaqueline Oliveira

Era uma noite bonita e lúbrica, lembra Kah Dantas. Chovia em Fortaleza e, enquanto a escritora fumava, ocorreu-lhe um enredo protagonizado por uma mulher sendo tomada por um homem no meio ermo do sertão, num reencontro adúltero e com ares de tragédia. Desse primeiro vislumbre surgiu um conto e, com ele, perguntas a serem alimentadas urgentemente.

“Elas fizeram essa narrativa crescer”, explica a cearense, em entrevista ao Verso. “Isso foi quando eu viajei para Tauá, a principal cidade dos Inhamuns, para encontrar as respostas. Eu as achei, o conto virou prelúdio e o romance se estruturou e nasceu”. Nesta terça-feira (10), mais uma etapa desse processo se concretizou. Foi quando “Inhamuns”, novo livro de Kah, passou a ser enviado às casas dos primeiros leitores e leitoras, que adquiriram o livro na pré-venda.

Legenda: Na visão de Kah Dantas, este é um romance que apresenta ao público a impossibilidade de restar incólume por meio e depois de um processo de autoconhecimento
Foto: Jaqueline Oliveira

Publicado pela editora Moinhos, o romance é resultado de longos enamoramentos da autora com a região do Ceará na qual a trama é ambientada – distante 337 quilômetros da Capital. Durante muito tempo, o Sertão dos Inhamuns povoou o imaginário de Dantas. No posto de escritora, ela sentiu o desejo de desenvolver alguma história sediada nesse cenário, um lugar que sempre lhe pareceu mágico desde que leu o nome da localidade pela primeira vez, estampado numa linha de ônibus intermunicipal cearense.

Dito e feito. No início de 2019, as linhas começaram a ser escritas e, pouco mais de um ano depois, Kah estava terminando a conclusão da versão que já seria a definitiva. Nesse movimento, ela conta que as circunstâncias pandêmicas demoraram um pouco para dar cabo de sua alegria.

“No começo, acho que eu estava em negação, muito desnorteada, então concluí várias atividades, revisões, escrevi muitos poemas, cozinhei bastante. Depois, foi como se batessem forte no meu rosto. Pessoas que eu conhecia e a quem eu queria bem estavam partindo – muitas, muito rapidamente. A partir daí eu sequei por dentro, vivenciei muitas tristezas, tive crises feias de ansiedade, interrompi as atividades, desaprendi a ser professora, a ler, a escrever”.
Kah Dantas
Escritora

Salva pelo amor de seu companheiro e dos gatos que os dois têm juntos, Kah conseguiu enviar o original para a editora depois de compreender que a história estava pronta e que não seria nesse momento sombrio que alguma novidade significativa e imprescindível à narrativa lhe ocorreria. Um passo definitivo para o que viria depois, no agora.

Passado rejeitado

Em síntese, “Inhamuns” conta a história de uma jornalista residente em Porto Alegre (RS),  convocada a viajar a trabalho à sua terra natal – a região cearense do título – de onde ela partiu fugitiva e, portanto, sem nenhuma perspectiva de retorno. De volta a esse solo permeado por memórias adormecidas, a protagonista vivenciará uma teia de prazeres e dissabores, enrodilhada em mistérios e reencontros geradores de complexos panoramas.

Na visão de Kah Dantas, este é um romance que, acima de tudo, apresenta ao público a impossibilidade de restar incólume por meio e depois de um processo de autoconhecimento. Para falar sobre isso e sobre como “finais felizes” são um evidente privilégio, ela decidiu tecer o reencontro dessa jornalista com seu passado rejeitado e as memórias derivadas dele, oferecendo a leitores e leitoras uma narrativa melancólica, mas que, supõe a autora, bela e corajosa em muitos momentos.

A miséria e a solidão humanas não são únicas, e eu quis evocar certa qualidade delas na história dessa mulher – características que eu espero que sejam reconhecidas e confrontadas nas leituras que fizerem da obra”, torce a cearense, residente em São Paulo.  

Autora de “Boca de Cachorro Louco” (Aliás Editora, 2018) e ”Orgasmo Santo” (Gosto Duvidoso, 2020), Dantas examina como “Inhamuns” dialoga com esses seus dois outros projetos. Segundo ela, as obras anteriores ao romance foram escritas muito impulsivamente. A primeira, além de autobiográfica, não passou por nenhum processo de planejamento ou estudo para a sua escrita. Kah simplesmente catou algumas memórias dolorosas de um relacionamento abusivo, desenvolvidas em forma de diário, e publicou – primeiro de forma independente, depois sob a tutela da Aliás Editora.

“A segunda, por sua vez, reúne uns exercícios de escrita, alguns contos eróticos, que, apesar de não serem completamente autobiográficos e já ensaiarem um passeio por artifícios da ficção, foram produzidos de maneira ainda muito irrefletida”, detalha. Logo, ambos os livros nasceram de um processo mais apaixonado, baseado no componente “sinto, logo escrevo”, como descreve a escritora. Com “Inhamuns”, foi tudo diferente. 

Ela viajou até o município de Tauá, fez pesquisa de campo, leu inúmeros textos historiográficos, planejou a estrutura do romance, fez um curso de escrita criativa – no qual submetia excertos do livro em andamento para apreciação –, além das várias edições e revisões pelas quais a obra passou.

De todo modo e apesar de processos e gêneros tão distintos para os dois primeiros livros e este último, cada um deles conheceu um pouco do prosear aflitivo e enxerido de Kah, conforme a própria referencia, “do tipo que te chama ao papel, muitas vezes em momentos inoportunos”, ri.

Geografias físicas e sentimentais

Ciente de que um lugar nunca é apenas um lugar, mas um espaço que se embrenha na vida das pessoas que o habitam e toma parte delas para si, Dantas explica que, apesar de ter retratado uma parte dos Inhamuns partindo do contexto urbano da cidade de Tauá até os arredores rurais – munida do desejo de descrever um lugar tão bonito, geográfica e geologicamente rico, e inclusive lançando mão de causos e personagens reais que ela fez questão de conhecer, visitar e estudar –  compreende que esse Inhamuns narrado pode ser encontrado em muitos lugares, físicos ou sentimentais, dentro e fora do Ceará. 

“É o diálogo com a memória da gente, os sonhos que se realizaram ou morreram, as marcas e cicatrizes, tal qual o monumento ancestral que a protagonista do romance viaja para documentar. A presença desse sítio arqueológico não está nessa história por acaso: ele simboliza a permanência do passado e o assombro que ela causa, sendo parte de nós até que o tempo decida por outra coisa”.
Kah Dantas
Escritora

Quanto a ambientar o enredo no sertão – território revisitado em vários momentos pela literatura, embora ainda merecedor de olhares mais ampliados acerca de suas peculiaridades – Kah é enfática: a paisagem sertaneja é muito vasta. “Por muito tempo, o sertão foi associado à seca, à penúria, ao êxodo na figura do retirante. Não por nós, naturalmente, mas especialmente por esse eixo literário que, inclusive, atarracou o termo ‘regional’ à escrita que se produz fora dele. Isso lá tem cabimento”, protesta.

“Eu fico feliz demais em poder dizer que, cada vez mais e não é de hoje, a multiplicidade do sertão tem sido representada por uma diversidade de autores e autoras que trabalham aspectos vários dessa paisagem, urbanizada ou não, com diferentes aspectos climáticos, culturais... Tem muita coisa acontecendo, muita cidade e gente diferente, e, consequentemente, muita história boa, de todo tipo! E eu posso dizer que o ‘Inhamuns’ se encaixa nesse mosaico nada clichê, trazendo uma diversidade de características sertanejas”.

Legenda: “É muito difícil viver a partir de ausências, de lacunas, então chega o momento em que essa protagonista não tem mais para onde fugir", diz Kah Dantas
Foto: Jaqueline Oliveira

Nessa configuração maximizada pela pluralidade, a escritora considera o fato de que o romance possui uma maneira muito forte de sugerir que o passado precisa ser revirado, confrontado. Pudera: a gente não existe sem a nossa história e é preciso conhecê-la e tentar entendê-la para poder fincar melhor os pés no mundo e enfrentar as adversidades e injustiças nele. 

“É muito difícil viver a partir de ausências, de lacunas, então chega o momento em que essa protagonista não tem mais para onde fugir – especialmente enquanto mulher, um signo laborioso desde antes do parto”, situa.

Formas de contar

No que toca a como observa e consome os diferentes gêneros literários, há um tempo Kah Dantas tem se debruçado sobre romances breves, com linguagem mais leve e acessível a um público leitor que não é feito apenas de leitores e leitoras profissionais. “Isso, claro, sem implicar que essa narrativa seja, por isso, menos bela, bem construída e/ou elegante”, sublinha.

Justamente por apreciar esses pequenos romances, ela suspeita que acabou desejando criar algo semelhante com “Inhamuns”. Logo, o processo de construção do romance, nessa perspectiva, acabou se dando naturalmente

Sob outro espectro, em termos específicos de composição narrativa, a escritora dedicou muita atenção às questões locais, com sua gente e memória reais. E não apenas porque quisesse conferir verossimilhança ao texto, mas por querer que as pessoas conheçam esse lugar como ela conheceu e, principalmente, desejem visitá-lo, vê-lo e homenageá-lo com seus próprios olhos.

Legenda: Kah Dantas referencia "Inhamuns" como o seu trabalho literário mais querido e importante
Foto: Jaqueline Oliveira

“Já quanto à protagonista, é alguém que tem um pouco de todos nós dentro de si. Pois, como se não bastasse partilhar das misérias dos homens, uma parte de nós ainda tem de secar as lágrimas que fazem nascente no útero. O certo é que toda mulher guarda uma dor de ser mulher, em maior ou menor medida”.

Referenciando a obra como o seu trabalho literário mais querido e importante – pelo qual recebeu um prêmio em dinheiro do governo de São Paulo, viabilizando a sua rápida publicação – Kah Dantas, desde o anúncio da pré-venda do livro, tem andado feliz e apavorada ao mesmo tempo, ansiosa para saber como ele será recebido. 

Apesar desse “aperreio doce na alma”, nas palavras da literata, a alegria de ter sido capaz de desenvolver e concluir esse projeto provoca singular emoção toda vez que ela se demora um pouco mais nos detalhes, pensando em todo o trajeto do livro. 

“É uma história desde já inscrita nos esforços da literatura cearense independente e feita por mulheres – pois, sim, não abro mão nem da minha cidadania distante do centro, nem de denunciar o fogo cruzado de machismo e da misoginia debaixo do qual nós, mulheres, produzimos, ainda mais em circunstâncias financeiras adversas”.
Kah Dantas
Escritora

“Inhamuns” é mais um passo certeiro no contrafluxo dessas tentativas de silenciamento. Uma obra que urge.

 


Inhamuns
Kah Dantas

Moinhos
2021, 128 páginas
R$45/ R$35,99 (e-book)

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