Sereia de Ouro: O povo que transforma
A identidade cearense pode ser compreendida a partir de sua intrínseca relação com os quatro elementos naturais. Do sertão ao litoral, entre o calor do fogo e a força dos ventos, saberes e fazeres são revitalizados
Se cada pessoa é um mundo, bem que o cearense poderia ser considerado um universo. Nossa natureza é testemunha: entre a poeira que assenta do chão e a brisa soprada das altitudes, o calor capaz de criar e o mar esfomeado de mergulho, há potência, beleza, criatividade. Um povo modelado pela pluralidade do entorno, incansável na labuta e no desejo de reinvenção. Essas qualidades, encontradas no cotidiano do cearense, estão na base dos valores destacados, desde 1971, pelo Troféu Sereia de Ouro.
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Não à toa, é a partir dessa intrínseca relação com os quatro elementos naturais que a identidade do sangue alencarino é formada. Tem como base o estreito diálogo com o meio, as geografias capazes de delinear tipos e trabalhos. Desafiam e, ao mesmo tempo, inspiram.
Agraciado com o Troféu Sereia de Ouro no ano passado, o mestre do couro Espedito Seleiro expressa o que, para ele, significa ser cearense em meio a tantas paisagens e particularidades culturais, territoriais e humanas.
“O cearense é uma nação de gente que é resolvida pra tudo. Acho que nós somos fortes. Deus dá o frio conforme o cobertor. Já que ele nos botou no Ceará, é pra gente aguentar o que vem, resolver e dar certo”, sublinha o artesão, de sua oficina em Nova Olinda. “Também, o bicho é criado com pão de milho, fava, rapadura, farinha de mandioca da Serra do Araripe… Não tem jeito!”, assegura Espedito Seleiro.
A vida que vem da terra
Não há intempérie que esmoreça a força de um povo vocacionado a ir além. Junto à natureza, está destinado a chegar ao mais pleno da condição humana: a satisfação de ser e viver em comunhão consigo e com o mundo – transpondo barreiras, amanhecendo novidades. Prossegue inspirando e resistindo.
Aqui, serão contadas histórias arquetípicas do cearense, que se adapta e transforma realidades: o espírito tenaz que o Sereia de Ouro destaca anualmente.
A de José Marçal é a primeira delas. Nascido em Canindé, o vaqueiro já conta 78 anos vividos e é exemplo dessa terra de gente capaz. Ele exerce o ofício de lida com a terra desde a tenra idade. “É um prazer grande que eu tenho de gozar da terra. Todos os anos, quando tem um inverno bom, nós trabalhamos, plantamos, o gado fica mais bonito. Tudo que a gente faz é na terra”, diz.
Enquanto o olhar passeia pelos vales, corpo ocupando a sela de um cavalo, o sertanejo reflete que a profissão é perigosa. Vaqueiro quando pisa na mata, não vê o que pode ter ali. Mas, dominando o território em que está, empreende o sustento e a produção diária. Garante a paz de viver. “Mesmo com tudo que passamos, não tem chão melhor que esse aqui, não. A gente aprende e repassa”, afirma.
Também é por meio de um saber compartilhado entre gerações que as irmãs agricultoras Socorro e Tereza Teixeira da Silva, moradoras da zona rural do Cariri, valem-se da terra para afirmar a existência. “Ela representa tudo para nós. Quando Deus manda as chuvas, a gente começa a plantar – milho, feijão, fava – e espera nascer. É muito bom chegar na roça, apanhar feijão verde e ‘quebrar’ milho pra comer. Levamos pra casa e para os amigos”, situa Socorro.
Ao que complementa Tereza, igualmente apegada ao solo – abrigo e providência. “A nossa vida é a roça. Sem a roça, não somos nada. Quando a gente chega no campo e vê tudo verde, é sinal de que vamos ter uma colheita boa. Aquilo é só felicidade e alegria”, define.
A esperança, portanto, é que o chão seja sempre banhado para promover fartura. “Espero que Deus mande um inverno melhor ainda. Se esse foi bom, que ele mande um melhor. Tendo inverno, nós temos nosso legume, nosso alimento na mesa. Dá sossego”, conta a agricultora.
Também forjado no seio da agricultura, o xilógrafo José Lourenço, de Juazeiro do Norte, potencializou a força da terra para suas obras. Faz parte de uma longa tradição de mestres da criatividade e das artes, seguidas vezes laureados na comenda Sereia de Ouro.
Nascido no berço da xilogravura nordestina, ele transfere para os trabalhos sob sua assinatura toda a singularidade que os quatro elementos naturais exercem no Ceará. “A xilogravura é feita na madeira. A melhor para o serviço é a imburana de espinho”, explica.
“No inverno, ela retém a água. Como tem pouca fibra, quando você a corta, ela ainda está molhada, verdinha dentro. Uma peça que é feita do miolo da imburana, daqui a 100 anos, vai estar intacta. O cupim não come, não dá praga, não dá nada. Então, é a ideal”.
Enlace marítimo
E se a cartilha do labor com a terra é afoita em zelo e resistência, o panorama do mar não poderia ser diferente. Quem diz é Elizeu Crispim, pescador com mais de três décadas de contato ininterrupto com o oceano cearense. Na Praia de Ponta Grossa, em Icapuí, por meio do esforço de estar diariamente sobre ondas, ele constituiu família e edificou empreendimentos. O pescado que alimenta o paladar também aperfeiçoa o viver.
“Comecei a pescar acompanhando meu pai, Jonas Crispim, de 68 anos, numa jangadinha”, conta, encarando o extenso terreno de água à frente. “Meu pai me levava para o mar, ajeitava uma linha para mim, eu via ele pescar e fui aprendendo. Nunca mais parei”.
Segundo o pescador, a dificuldade que o mar traz é o inesperado, o movimento intenso que adquire no período de ventos. Por outro lado, isso tudo ensina e revigora. “Adoro a praia. O mar me traz o sustento, o peixe, a experiência, a emoção de pescar, de estar todo dia em casa, de trabalhar com isso. É emocionante pescar. Você chega no mar e, de repente, vem a surpresa de um peixe grande… Isso emociona a gente”, sublinha. Destaca ainda que o oceano cearense é diferente de qualquer outro em que já esteve. “É um litoral muito bonito e, particularmente, a praia em que moro é a melhor”, graceja.
O enlace com a água, assim, percorre as estradas, de areia e de líquido, desse e de tantos outros filhos do mar, empenhados em garantir a sobrevivência e a dignidade. Mas não só isso. Ainda no breu da madrugada, ao levantarem para preparar as redes de pesca, revitalizam uma cultura capaz de levar o Ceará para a frente, em intensas dinâmicas de ânimo e coragem.
Energia singular
Tais sentimentos são feito a estrela-mãe, cor de fogo: quando brota no horizonte, traz a certeza de mais um dia. Convoca ao início de inúmeras atividades. Ivanilson Ribeiro da Costa, mais conhecido como seu Manim, amanhece imbuído de um sem número de serviços. No posto de Mestre de Rapadura, acorda com o sol para dar conta de todo o trabalho. “A gente fazer o que gosta é muito bom. Eu faço esse serviço com amor, de coração, com vontade mesmo”, revela.
Ainda que o vigor marque sua forma de falar sobre o ofício, ele confessa que é o calor o responsável por acordá-lo para iniciar a labuta. A força do fogo.
“É esse elemento que me dá a profissão, me deixa até com mais coragem pra fazer tudo. Porque, no momento que o ‘cabra’ esquenta… Tudo já fica melhor. Você acende o fogo, já sobe garapa, dá aquele vapor, aquela quentura”, explica.
Próximo a uma temperatura de 200 C°, o Mestre trabalha para que a cana-de-açúcar vá, aos poucos, dentro de um período de uma hora, se transformando em uma das iguarias mais apreciadas pelo cearense. A rapadura fabricada pelas mãos de seu Manim alimenta e encanta. “É o fogo que tira as impurezas no preparo do doce. No momento em que a garapa vai fervendo, as impurezas vão subindo, vai tirando tudo que é ruim”, explica.
E, enquanto faz um movimento com os braços semelhante a uma dança – passando uma escumadeira de um lado para o outro, nesse processo de preparo da rapadura – festeja: “É muito bom o momento em que você vê as pessoas provando e gostando do que você fez. Eu fico feliz. Vale a pena esse trabalho todo, isso é uma arte. Esse processo com a rapadura é muito rico. E ele só é possível de fazer por causa do fogo, do calor, da quentura”.
Seu Manim trabalha no Engenho Tradição. O empreendimento foi fundado em 1860 e localiza-se no município de Pindoretama, considerado a Capital Nacional da Rapadura. A proprietária, Maria Socorro Pereira Ferreira, reitera a fala do Mestre. “O manejo com o fogo é uma tradição, é cultural. Serve para aquecer. Quando a gente chega aqui desmotivado, com frio, de repente o calor reanima e trabalhamos com gosto. É o que me dá, até hoje, o sustento, a capacidade de manter e desenvolver meu serviço, minha família e essa importante iguaria do Ceará”, comemora.
Ventos que inspiram
Sabe o que também revigora o cearense? Brisa no rosto, vento soprando por entre o corpo e a alma. O precioso ar que balança a rede igualmente movimenta as jangadas, acalma os ânimos em meio às altas temperaturas de nosso chão. Gera inspiração, energia e sobrevivência.
Gira as hélices dos cataventos de Mestre Cheirinho, por exemplo. Na oficina que o artesão mantém na comunidade quilombola do Cumbe, em Aracati – município famoso por ser a “Terra dos Bons Ventos” – é possível perceber o quanto esse elemento natural movimenta as realidades. “Aprendi a fazer esses cataventos porque tinha muitos, aqui no Cumbe. Via os mais velhos fazendo, fiquei curioso e aprendi”, conta o Mestre.
Hoje, ele soma mais de 40 anos dedicados a esse ofício de preservar a memória de uma comunidade por meio de objetos repletos de vida. Os cataventos são miniaturas dos tradicionais equipamentos de carnaúba que constituíam a dinâmica de subsistência do território quilombola. As pequenas peças servem não só para angariar renda, mas preservar a memória.
“O vento me ajudou muito. Se não fosse ele, meus cataventos não rodavam. Ele foi e continua sendo uma mão amiga. Ensinei também meu filho a fazer o meu trabalho. Temos que repassar essa tradição”, acredita Mestre Cheirinho.
História e memória
A mesma ideia perpassa o relato do educador popular e historiador João do Cumbe. Segundo ele, a presença de cataventos na região do Cumbe é bastante antiga. Cartas de uma expedição científica do Ceará, datadas do século XIX, demonstram que, naquele tempo, os equipamentos eram chamados de “bombas de puxar água” e eram desconhecidos tanto em outras partes da província quanto no restante do território nacional.
“Inicialmente, eram utilizados para fazer a irrigação da zona canavieira. Naquele tempo, existiam nove engenhos no Cumbe trabalhando dia e noite na fabricação de cachaça e rapadura, o que justificava a presença de muitos moinhos de vento, puxando água para estar irrigando todo o canavial”, descreve.
Hoje, são poucas as estruturas presentes na comunidade, mas elas ainda existem e auxiliam no sustento próprio das famílias. Na propriedade mesmo em que João do Cumbe reside, há três: dois destinados para a irrigação de capim e outro para as plantações de banana, macaxeira e feijão.
“Aqui no Cumbe é onde acontece, então, o parto do vento. Aqui ele nasce, ganha asas e adentra todo o território de Aracati e interior do Estado, mais precisamente a região Jaguaribana”, situa. “Nós temos, assim, a terra, a água, o ar e o sol, o fogo. Não podemos medir, dizer que o vento é mais importante. Porque um vai complementando o outro. O vento nos dá essa brisa que tranquiliza e nos leva a sonhar alto, ao mesmo tempo que traz fartura e outras possibilidades, assim como os outros elementos”.
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