Sereia de Ouro: Ceará pioneiro

Capacidade de reverter as adversidades e criatividade. São marcas constantes ao longo da história do povo cearense celebradas pela comenda Sereia de Ouro

Escrito por Antônio Laudenir ,

A pena de Thomaz Lopes (1879-1913) imortalizou o Hino do Estado do Ceará. Os versos do intelectual decifram retrospectos vitais da “Terra do sol, do amor, terra da luz”. Bravura é forja mor, e o atributo é destacado na persona do jangadeiro. “Que importa que teu barco seja um nada, na vastidão do oceano. Se à proa vão heróis e marinheiros”, exalta o poema. 

>O legado do Troféu Sereia de Ouro

Subjugar intempéries é familiar ao cearense. A grandeza de um povo é exaltada no constante refletir de sua história. E, na esteira do desenvolvimento do Ceará, inúmeras foram as vezes em que o caráter pioneiro, a capacidade de superar adversidades, a criatividade e a alegria se firmaram enquanto farol. São marcas distintivas do povo, manifestas em tantos quantos sejam os empreendimentos a que ele se lance. 

A imersão na história do Estado mostrará o quão rica nesses atributos é a sua trajetória; o olhar atento para o presente os encontrará, também, tanto em projetos inovadores quanto no cultivo da tradição. Ao longo de meio século, o Troféu Sereia de Ouro tem condecorado cearenses que contribuem de maneira irrestrita à persistência dessas qualidades. 

São exemplos de trajetórias e feitos que reafirmam a riqueza de nossas raízes e valores. Duas autoridades – com biografias marcadas por pesquisas que perpassam episódios e personagens decisivos de nossa história – ajudam a adentrar e iluminar vultos memoráveis que encarnam os melhores traços da cearensidade. 

Bibliófilo e empresário, agraciado com o Troféu Sereia de Ouro no ano de 2010, José Augusto Bezerra afere que tais características denotam profunda interligação entre si e são uma constante na odisseia do Ceará. “A saga cearense é marcada pela capacidade de superação, o que implica, na maioria dos casos, em pioneirismo”, explica. 

“A alegria e o humor também parecem ser naturais nesse povo que se tornou resistente às provações da natureza, entendendo que seria melhor sorrir e inovar do que chorar, perante as adversidades”, defende o intelectual. A linhagem dessa tradição é antiga e abunda em figuras exemplares, caso de gênios do gênero, reconhecidos nacionalmente, como Renato Aragão e Chico Anysio, ambos já homenageados pelo SVM com o Troféu Sereia de Ouro. 

Outro aporte precioso é a análise compartilhada pelo historiador e escritor Juarez Leitão. “O cearense é um povo original. Em muitos aspectos, ele chegou à frente de acontecimentos tidos como transformadores. Foi assim em iniciativas culturais e políticas. Ao longo da história do Estado, podemos pontuar vários episódios em que o cearense – o ser cearense – exerceu o seu papel de criador – ele tem uma inteligência muito desenvolvida – e também a sua cidadania, no aspecto político propriamente dito”, ensina. 

Perspectivas 

Ambos os olhares entregam credenciais precisas dos embates do cearense contra as adversidades a ele imposta, mas não apenas para esse fim. Ir além é um desejo comum, como a história mostra. O solo árido, amaciado pela brisa atlântica, denota a união étnica de três continentes. Formaram o Ceará as nações indígenas, o povo africano e o conquistador europeu. “Em contrapartida à escassez de recursos naturais, os recursos humanos são extraordinários”, distingue José Augusto Bezerra. 

Notabilizado pela dedicação aos livros e documentos raros, retrato de uma personalidade que, seletivamente, reúne preciosidades e as guarda e organiza com cuidado e referência, o bibliófilo denota que a seara científica é prodigiosa em desvendar a força deste povo. Ele cita a recém-publicada pesquisa “O Cearense Revelado: uma jornada via DNA desvenda nossa ancestralidade”, trabalho que articula estudos de história e genética, retomando ideias lançadas pelo professor e ex-governador José Parsifal Barroso (1913-1986), no clássico ensaio “O Cearense” (1969). 

“Como as modernas pesquisas feitas através do DNA indicam uma forte predominância dos povos nórdicos – grandes navegadores e comerciantes – na nossa genética, talvez isso justifique, em parte, a habilidade e a inventividade natural do cearense, tanto em enfrentar o mar, com os jangadeiros, quanto em comercializar, não só os artesanatos, mas tudo o mais”, reflete Bezerra. 

Professor de história e membro do Instituto do Ceará – Histórico, Geográfico e Antropológico e da Academia Cearense de Letras (ACL), Juarez Leitão conta em sua bibliografia com livros que reconstituem trajetórias pessoais e episódios de relevo de tempos remotos do Estado. Ele relembra que, diante dos desafios impostos, no campo da economia, há casos exemplares de aproveitamento dos recursos naturais. “Por muito tempo, exploramos a cera de carnaúba; e o algodão mocó, um tipo resistente, que superava até a seca. Somos pioneiros das charqueadas, um reaproveitamento do rebanho, que eliminava a dificuldade tremenda da travessia. A criatividade nordestina, e cearense sobretudo, é o que justifica a nossa sobrevivência”, diz.

No campo da política, ele salienta nossa participação nos movimentos libertários do Nordeste. Já em 1817, o Ceará integrava a chamada Revolução Pernambucana. “Temos aí, nesse episódio, o destaque de uma mulher. Bárbara de Alencar. Mãe de José Martiniano de Alencar (1794-1860, pai do autor de ‘Iracema’) e de Tristão Gonçalves (1789-1825): mãe de heróis”, conta. Pernambucana de nascimento, a heroína republicana representa bem os cearenses por escolha, gente que encontra aqui o seu lugar no mundo e se reconhece nos predicados próprios do cearense.

Sete anos depois daquela insurgência de espírito republicano, foi a vez da Confederação do Equador. Na ocasião, um grupo de revolucionários da terra pleitearam que o Ceará se integrasse a outras províncias do País e formassem assim uma unidade política, independente da monarquia. Inúmeros conterrâneos ocuparam postos de liderança no movimento. Padre Mororó (1774-1825), Miguel Ibiapina (1774-1825), Pessoa Anta (1787-1825), Azevedo Bolão (1785-1825) e Tristão Gonçalves são alguns desses nomes ilustres. 

Terra da luz 

Outro insofismável traço de pioneirismo materializou-se em grito de liberdade. No final do século XIX, o Ceará proclamou a libertação dos escravos – quatro anos antes de que a Lei Áurea estendesse a abolição para todo o Brasil. O 25 de Março de 1884 ainda ecoa e coloca o Ceará no mapa fundamental da campanha abolicionista. 

“Criamos um movimento. Um movimento de caráter cívico que teve repercussão nacional. Desenvolvemos, naquela época, uma ideologia e foi disseminada a ideia de que um homem não pode escravizar outro homem”, ensina Juarez Leitão. 

Esse ideal de Justiça reverbera e se renova. “O epíteto nos foi dado por José do Patrocínio, um dos maiores abolicionistas. No momento em que ele soube que o província havia libertado seus escravos, imediatamente fez seu discurso em que se refere ao Ceará como a ‘Terra da Luz’”, detalha o estudioso. Numa terra ensolarada a maior parte do ano, a luminosidade destacada foi outra e não a do astro. A luz pela qual o cearense é conhecido, mundo afora, é a dos seus feitos.

A arte de transcender

A cearensidade é tratada como objeto de estudo, estabelecendo reflexões de como as tradições, manifestações e valores do Estado são responsáveis por estabelecer os perfis de sua população. “O cearense tem demonstrado uma grande capacidade de criar. A nossa história de olhar o mundo é de maneira original. Temos um jeito próprio, um jeito nosso de olhar a vida, de enxergar além da pedra, de fazer a transcendência dos fatos, acontecimentos e das atitudes humanas”, elabora Leitão. 

O aspecto inventivo e desbravador alçou as letras do Estado a um patamar único. Com biografia marcada pelo incentivo aos saudáveis hábitos da leitura e busca por conhecimento, José Augusto Bezerra explicita que, considerando seu tamanho e população, nenhum estado brasileiro contribuiu tanto para a inteligência nacional.

“José de Alencar foi o criador do romance brasileiro. Tomás Pompeu de Sousa Brasil (II) foi o primeiro presidente da Academia Cearense de Letras, que, por sua vez, é a primeira academia do gênero no País, pois antecede, em três anos, a própria Academia Brasileira de Letras”, exemplifica. 

A lista de notáveis ainda inclui, entre tantos outros, Capistrano de Abreu (considerado por muitos o maior historiador brasileiro), Clóvis Beviláqua (autor do primeiro Código Civil Brasileiro), Alberto Nepomuceno (o pai do nacionalismo na música erudita brasileira), Farias Brito (o maior filósofo brasileiro), Rachel de Queiroz (primeira mulher a entrar na Academia Brasileira de Letras) e a irreverente Padaria Espiritual. 

Modernidade 

Este último exemplo é brilhante por manifestar o pioneirismo cearense na literatura de vanguarda. Em 1892, liderados por Antônio Sales (1868-1940), um grupo de rapazes cria a Padaria Espiritual, grupo literário que fugia das convenções. Segundo Juarez Leitão, este “pão” simboliza o alimento da alma. A literatura era o pão dos padeiros intelectuais de 1892. Antecedeu, em 30 anos, feitos da Semana de Arte Moderna de 22. 

“Hoje, na literatura, você tem, como parâmetro da criação do modernismo, a Semana de Arte Moderna de 22, que aconteceu em São Paulo. Pois bem, três décadas antes, fazíamos aqui uma revolução: a Padaria Espiritual. Exatamente pregando as teses que depois seriam desenvolvidas pela Semana de 22 de São Paulo”, argumenta Leitão, também poeta, cronista e conferencista. 

Altivez e ímpeto associam-se à ternura e leveza. Diante do desterro e da miséria, quis a eternidade identificar o povo cearense pelo retrospecto da alegria. Aos olhos de José Augusto Bezerra, a construção social e as circunstâncias históricas compõem a representação que é a alegria desta gente. “O cearense, além disso, é conhecido por sua sabedoria na arte de viver. O clima, a arquitetura, as praias, os bares, os clubes, a culinária, os humoristas, etc, transformaram Fortaleza na Capital Brasileira da Alegria”. 

Tal excelência desnuda uma sociedade umbilicalmente ligada com a criatividade. Adversa, a natureza que cerca o Ceará exigiu sabedoria e dedicação. Arcabouços vitais à consolidação da economia. A luta pela industrialização foi vigorosa e colocou o Estado em posições privilegiadas, despertando desenvolvimento e tecnologia.

“Sendo a terra das secas, no Ceará está a organização que tem a maior indústria de águas minerais do Brasil, com 41 fontes em 15 estados. Na terra onde não se produz nenhum trigo, temos a empresa líder no ramo de massas alimentícias do País, com 14 unidades industriais e 25 centros de distribuição no Brasil. Isso é pioneirismo e superação”, conclui José Augusto Bezerra.

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