'Resistência': em qual mundo viveremos quando a Inteligência Artificial prescindir de humanos?
Com estética cyberpunk, o filme em cartaz nos cinemas de Fortaleza oferece uma boa oportunidade de refletirmos mais sobre o uso que fazemos das novas tecnologias
A relação entre os humanos e os seres criados pela Inteligência Artificial (IA) já rendeu livros, série e filmes antológicos. A premissa de máquinas inteligentes e autosuficientes no comando do mundo vem atiçando a criatividade de algumas mentes brilhantes, muito antes de sonharmos com a Quarta Revolução Industrial.
Apenas seis anos após Alan Turing ter criado as bases da computação, o russo Isaac Asimov nos assombrava com “Eu, Robô”, uma coletânea de nove contos que ajudaram a dar visibilidade a obras literárias do gênero. Além dele, Philip K. Dick e Arthur Clarke leveram a ficção científica a um patamar onde a tecnologia se entrelaça a questões morais e éticas, resultando em obras-primas.
O diretor britânico Gareth Edwards é um dos fãs confessos do gênero. Depois do sucesso de “Rogue One”, longa que faz parte do universo “Star Wars”, ele apresenta seu novo filme, “Resistência”. A produção é menos ambiciosa, mas tem roteiro original e, além da ficção, entrega drama e ação em um espetáculo visual no melhor estilo cyberpunk.
Para abraçar esse projeto, o cineasta ficou quase sete anos, ausente da cena. Voltou com vontade de explorar um tema que divide opiniões: o uso que estamos fazendo da Inteligência Artificial. O longa é visualmente impecável, mas derrapa no excesso de referências a outros filmes marcantes, principalmente a saga “Guerra nas Estrelas”.
Há também outros elementos que nos levam a histórias já contadas. Para compensar um pouco a sensação de “Dèjávu”, o filme se vale de um trunfo, digamos, ambíguo. Vilões e heróis não são tão óbvios.
Criador e criatura
“Resistência” - cujo título original é “O Criador” que, diga-se de passagem, faz muito mais sentido - se passa em meio a uma guerra futura entre a raça humana e as forças da inteligência artificial.
Vá lembrando aí quantos longas já exploraram esse argumento além dos icônicos “Exterminador do Futuro”, “Matrix” e, claro “Eu, Robô”... Ainda assim, o filme guarda uma boa surpresa para o final.
Na trama, o espectador é colocado em meio a uma guerra que começa após um incidente no qual a IA criada para proteger a humanidade lança uma ogiva nuclear nos Estados Unidos.
John David Washington (de “Tenet” e “Infiltrado na Klan”) é Joshua, um ex-agente das forças especiais que tem a vida devastada pelo desaparecimento de sua esposa Maya (Gemma Chan).
Amor antes da paz
Recrutado para uma missão que pode acabar com o confronto definitivamente, Joshua aceita a empreitada não pensando na paz ou na humanidade, mas sim em conseguir encontrar a mulher que ama.
Para cumprir a missão, Joshua terá que destruir a IA chamada Nirmata (O Criador) que supostamente teria desenvolvido uma arma (Alpha-01) com o poder pode dizimar a humanidade. Parece irônico, quando lembramos que o ser humano é, na verdade, o grande mestre em criar armadilhas apocalípticas.
Nessa distopia, a humanidade é caçada e precisa se defender de sua própria criação: a IA, uma força que evoluiu de forma exponencial à medida que os homens se tornavam cada vez mais dependentes das comodidades atreladas às tecnologias. Afinal, como viveríamos sem internet, sem celulares, computadores? Como manter a economia mundial sem os sistemas ciber-físicos, a Internet das Coisas e a revolucionária Nuvem? Enfim...
Para garantir que a humanidade não seja extinta, Joshua e sua equipe partem para um território sombrio ocupado pelas máquinas e onde ele supõe que Maya esteja.
Frente à realidade
É nesse ponto que o filme toma um rumo mais dramático. O homem escolhido para eliminar a máquina mortífera descobre que a arma é, na verdade, uma IA em forma de criança asiática (Made in China? Será?!).
De aparência andrógina, Alphie (o Alpha- 01) é interpretada pela atriz Madeleine Yuna Voyles, de 9 anos. Sua caracterização, aliás, nos faz lembrar de Ava, a andróide de “Ex-Machina - Instinto Artificial”.
Sorridente, esperta e com uma incrível capacidade de confrontar idéias humanas, Alphie é uma criança-robô, com inteligência e doçura semelhantes às de David, de “A.I”, obra idealizada por Stanley Kubrick e concretizada por Steven Spielberg.
As questões metafísica e filosóficas perpassam as falas. “O que é o Paraíso”?, questiona o pequeno robô ao seu provável algoz. Ouve então que o Paraíso é o “céu”, lugar para onde vão apenas as pessoas boas. “Você, vai pro céu”?, continua a “criança”. Ao que ouve um não. O homem diz que não é uma pessoa digna. “Então, nós dois não vamos para o céu. Você porque não é bom. E eu não sou uma pessoa”, confirma máquina revestida de infância.
Além da dialética e de perguntas profundas, Alphie carrega consigo um segredo, envolvendo sua criação, capaz de mudar tudo em que se acredita.
Ecos da vida real
No elenco estão Ken Watanabe, Sturgill Simpson, Yuna Voyles e a premiada Allison Janney. Todos nomes festejados da indústria cinematográfica. A mesma indústria que atualmente assiste a greves de atores que temem perder seus empregos para a tecnologia. Faz a gente pensar no paradoxo, não?
No filme, os complementos digitais são usados na medida certa. É um componente importante, mas não se sobrepõe à história. Com um orçamento de US$ 80 milhões, valor considerado baixo para um projeto do gênero, o diretor e sua equipe de efeitos especiais criaram um mundo rico em detalhes, com cenários grandiosos e desgastados pela guerra.
A fotografia é irretocável, daquele tipo que enche os olhos. E tem um bom motivo para provocar essa sensação. A equipe de produção gravou parte das cenas em locações reais no Vietnã, no Nepal e na Tailândia. Os toques digitais só foram incluídos depois da pré-edição.
Referências
Ainda assim, os fãs da ficção científica raiz, podem se incomodar com a quantidade de referências - no roteiro e na criação de personagens - pulando na tela a todo instante.Por outro lado, há os entusiastas do roteiro original. O filme não se baseia em nenhum livro, conto, dissertação ou artigo. Outro ponto a favor é a forma como os arcos se fecham até a grande reviravolta que abala esse futuro disruptivo.
Um dos maiores acertos é a representação das inovações tecnológicas na pele de uma criança - que em tese pode crescer, ser educada e preparada para o bem ou para o mal - e nos remete ao uso que estamos fazendo da IA, uma força que pode nos dar esperança ou abalar sociedades com um simples bug.
Sim, a abordagem e a atualidade do tema, sobre o qual muitos falam e tomam diferentes posicionamentos, faz “Resistência” valer o ingressso.