Quem é David Lynch

Neste artigo, o crítico de cinema LG de Miranda Leão faz um apanhado da vida e obra do criador de Twin Peaks

Escrito por LG de Miranda Leão , verso@svm.com.br
Legenda: David Lynch, em cena de seu curta -metragem 'What did Jack do?"
Foto: Divulgação/Netflix

Cineasta premiado e roteirista, pintor e músico bissexto, David Lynch, de quem vimos há pouco este insólito "Mulholland Drive" (A Cidade dos Sonhos), nasceu em 1946, em Montana. Seu pai era cientista do Departamento de Agricultura dos EUA, cujo trabalho de pesquisador o levava a deslocar-se com a família para várias cidades, símbolo de uma nação a cavalo, sem tempo para criar vínculos ou raízes. Essa instabilidade por certo contribuiu para uma indefinição do jovem Lynch sobre sua identidade profissional.

Com talento para a pintura, Lynch estudou nas escolas de arte de Washington D.C. e Boston, matriculando-se depois na Academia de Belas Artes da Pensilvânia. Casado e pai de uma criança, sem emprego definitivo, nem sempre tendo êxito em vender suas telas, Lynch teve de morar em casa dilapidada, com vizinhança propensa à delinquência e ao crime. Para autores como Ephraim Katz, essa atmosfera criminogênica pode ter alimentado a visão pesadelesca dos seus futuros filmes.

Passar dos seus quadros, ora expressionistas, ora surrealistas, para o cinema era só uma questão de tempo. A oportunidade de um contato com um mecenas das artes resultou num contrato para Lynch fazer uma "pintura em movimento" para uma sala de estar, um "clip" de poucos minutos intitulado por ele de "The Alphabet". O trabalho chamou a atenção e lhe serviu para receber um subsídio de U$ 5 mil e criar "The Grandmother", um curta de animação em 35mm, contando a história de um garoto atormentado por seus pais, porque sofria de enurese, e fazia nascer de uma semente a adorável vovó dos seus sonhos.

Estranho e pesadelesco

O curta ganhou prêmios e festivais e contribuiu para dar a Lynch uma bolsa no Centro de Estudos Avançados de Cinema em Beverly Hills, em 1970. Foi lá, em 1971, quando começou a planejar seu primeiro longa, "Eraserhead" (ainda inédito no Brasil), a descoberta de sua vocação de cineasta. Lynch começou a rodar esse filme em 1972, trabalhando principalmente à noite, enquanto fazia biscates distribuindo jornais e coletando assinaturas. Processo lento, estafante, durante o qual seus recursos de subsistência minguaram e seu primeiro casamento entrou em colapso.

Legenda: Cena de "Eraserhead", filme de estreia de David Lynch
Foto: Divulgação

Lançado finalmente em 1976, "Eraserhead" - estranho e pesadelesco filme em preto & branco, pleno de imagística surrealista e frequentemente repulsiva, segundo analistas e historiadores de renome, como Fred Klein e Ronald Dean Nolan - não teve êxito junto aos críticos e bilheterias. Mas logo encontrou nicho no circuito cinematográfico da meia-noite e obteve popularidade como "cult" favorito. A partir daí Lynch ganhou respeitabilidade junto à tendência dominante da crítica com "O Homem Elefante" (The Elephant Man), dramatização para a tela de um caso real, no período vitoriano, de um jovem monstruosamente deformado por linfogranulomatose. O filme foi indicado para 8 Oscars, incluindo o de melhor película, melhor diretor e melhor roteiro adaptado.

Na crista do sucesso, recusou-se a dirigir, para George Lucas, "The Return of the Jedi", e preferiu fazer "Dune" (1984), adaptação excessivamente elaborada de ficção-científica do ano 10.991, de autoria de Frank Herbert. Apesar do domínio da técnica por parte de Lynch e de algumas sequências incrivelmente belas e pesadelescas, o filme redundou em fracasso junto ao público e crítica. Os produtores remontaram uma versão para a TV, logo desacreditada pelo diretor, o qual mandou tirar seu nome dos créditos. Triste epílogo para uma produção milionária.

Êxitos

Lynch retornou ao seu elemento com "Veludo Azul" (Blue Velvet, 1986), "um mistério erótico e bizarro, com sexo perverso, não convencional e obsessivo, acrescido de violência psicopática, o qual parecia espelhar as fantasias moralmente objetáveis de Lynch e talvez da própria América". O público achou o filme, ao mesmo tempo, repulsivo e fascinante e colaborou para o êxito bilhetérico. A crítica se dividiu, mas muitos analistas, segundo lemos, admitiram"a ousadia de Lynch, seu humor pervertido e fértil imaginação".

Legenda: O diretor David Lynch, com a atriz Laura Dern, nos bastidores de "Coração Selvagem"
Foto: Divulgação

Em 1990, aos 44, Lynch fez jus à Palma de Ouro em Cannes com "Coração Selvagem" (Wild at Heart), um conto de fadas perversamente cômico e revelador de sua imaginação extravagante. Na mesma época realizou "Os Últimos Dias de Laura Palmer" (Twin Peaks), serie de TV imensamente popular durante um ano, "antes de exaurir-se numa corrente de episódios ilógicos, interpretação afetada e elementos paralelos horripilantes". A série ecoou "Veludo Azul", com sua exploração do lado sombrio e frequentemente patológico-sexual da pequena cidade americana, e atraiu audiência mundial, tendo sido vista em versões não-expurgadas por plateias europeias e japonesas, as quais adoraram o mistério.

Tempos depois, quando o interesse pela série começou a fenecer, Lynch levou-a para o cinema, mas só obteve fracasso artístico e comercial, acompanhando outro mau momento em sua acidentada carreira artística. Conforme ainda esta enciclopédia de cinema chamada Ephraim Katz, a urgência criativa de Lynch continua a estender-se em direções versáteis. Prossegue sendo fotógrafo de primeira, um pintor de telas suaves, soturnas e semi-abstratas, um desenhista de "cartoons", letrista, produtor de gravações, e entusiasta dos efeitos sonoros e da música como criadora de profundas emoções no conjunto do filme.

Por isso mesmo, Lynch, louva a valorização dos silêncios, dos tempos mortos e das reticências, daí talvez o motivo para sua descrença no mito da superioridade do cinema mudo. Acresça-se ter ele criado com o maestro e compositor Angelo Badalamenti (seu parceiro em "Cidade dos Sonhos") o trabalho experimental teatral "Sinfonia Industrial n. 1". O primeiro casamento de Lynch, em 1967, com uma colega estudante de arte, produziu uma filha, Jennifer Lynch, realizadora de "Boxing Helena", com roteiro dela mesma. Em 1977 casou-se com Mary Fisk, irmã do velho amigo, o diretor Jack Fisk, de "The Violets Are Blue"(1996), entre outros.

Legenda: Isabella Rossellini e David Lynch, no set de "Veludo Azul" (1986)
Foto: Divulgação

Tiveram um filho em 1982, mas se divorciaram depois, pois Lynch se envolveu romanticamente com Isabella Rossellini, sua estrela de "Veludo Azul". Seus últimos filmes exibidos foram o instigante "A Estrada Perdida" (merecedor de profundo ensaio psicanalítico de Jurandir F. Costa, na Folha de S. Paulo, em 1997), o atípico "Historia Real" (1999) e a "Cidade dos Sonhos", com o qual ganhou o prêmio do Festival de Cannes de 2001, 4 indicações para o Globo de Ouro e outra para o Oscar de melhor diretor. Ron Howard ganhou a estatueta, quando muito mais ricas foram as realizações de Robert Altman e Lynch, dois dos injustamente preteridos homens de cinema. Coisas de Hollywood.

* Artigo originalmente publicado no dia 21 de julho de 2002, no suplemento Cultura do Diário do Nordeste. O texto complementava o ensaio sobre o filme "Cidade dos Sonhos" (2001), de David Lynch

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