Qual a herança modernista para as políticas culturais cem anos depois da Semana de 22?

Reverberações implicam na construção de pautas alinhadas à diversidade cultural brasileira

Escrito por Roberta Souza , roberta.souza@svm.com.br
Legenda: Arte: Lincoln Souza e Louise Anne Dutra

Os ideais soprados pelos intelectuais que promoveram a Semana de Arte Moderna de 1922 envolveram, além de uma reformulação estética do que se entendia pela arte brasileira, um passo além na construção de uma política cultural vinculada a este anseio. 

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Inspirados pelo fortalecimento de uma consciência e identidade nacional, aqueles artistas encontraram um terreno fértil nos primeiros anos da Era Vargas (1930-1945), desenhando algumas iniciativas cujas heranças são alvo de reflexão até os dias de hoje.

“Quando você tem um governo centralizador, que está construindo um Estado forte, que era o caso de Vargas, você tem um ambiente propício para que haja um encontro entre os interesses dos intelectuais modernistas com os do Estado, ambos em busca de uma modernização econômica, social e cultural”, explica o professor da Universidade Estadual do Ceará e pesquisador de políticas culturais Alexandre Barbalho.

É neste cenário, mais precisamente no mandato do Ministro da Educação e Saúde Gustavo Capanema, entre 1934 e 1945, que estas aproximações vão se consolidar, independentemente de um alinhamento político direto ao regime. Basta lembrar seu chefe de gabinete, o poeta modernista Carlos Drummond de Andrade, e a participação de nomes como Cândido Portinari e Oscar Niemeyer.

Criação das bases para o Iphan

Mário  de  Andrade foi outro expoente do movimento a somar esforços no que são consideradas as primeiras políticas culturais brasileiras. Além de assumir o Departamento de Cultura da Prefeitura da cidade de São Paulo (1935–1938), em 1936, ele foi convidado por Capanema para redigir o anteprojeto do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan). Criado oficialmente em 1937, mais tarde este órgão seria consolidado como Instituto (Iphan), permanecendo em atividade até os dias de hoje.

Cândido Portinari, Antônio Bento, Mário de Andrade e Rodrigo Melo Franco de Andrade consolidaram as bases do que conhecemos hoje como Iphan
Legenda: Cândido Portinari, Antônio Bento, Mário de Andrade e Rodrigo Melo Franco de Andrade consolidaram as bases do que conhecemos hoje como Iphan
Foto: Acervo Iphan

No trabalho “Em busca de uma modernidade nacional: o movimento modernista e o projeto político-cultural do regime Vargas”, o pesquisador Bruno Gontyjo do Couto destaca o papel de Mário e também do arquiteto Lúcio Costa, que chegou a ocupar o cargo de Diretor de Estudos e Tombamentos no Sphan.

“Inúmeros intelectuais modernistas participaram das atividades organizadas pelo diretor Rodrigo Melo Franco de Andrade,   colaborando   de   diversas   maneiras   para   o desenvolvimento  de  um  propósito  que  era  excepcionalmente  modernista: pesquisar  e  preservar  bens  móveis,  imóveis - inclusive,  paisagens - que apresentem   valor  histórico,  etnográfico   ou   artístico   de   acordo   com   o interesse nacional”, escreve.
Bruno Gontyjo do Couto
Doutor em Sociologia pela UNB

O professor Alexandre Barbalho endossa esta herança, ressaltando a longevidade de uma política que segue atravessando diferentes contextos. “Só teve um momento em que o Iphan foi extinto, na época do governo Collor, mas foi por pouco tempo, dois anos basicamente. Então, ele me parece ser a referência, o paradigma desta atuação dos modernistas na política cultural de Vargas que chega até o século XXI”.

Revista do Sphan
Legenda: Reprodução da Revista do Sphan

No rastro nacionalista e modernizador daqueles anos, foram criados ainda:

  • Superintendência de Educação Musical e Artística (1936); 
  • Instituto Nacional de Cinema Educativo (1936); 
  • Serviço de Radiodifusão Educativa (1936); 
  • Serviço Nacional de Teatro (1937); 
  • Instituto Nacional do Livro (1937);
  • Conselho Nacional de Cultura (1938). 

“Além da orientação das ideias, de dar um norte para a política cultural do País na época de Vargas, a gente pode pensar que várias destas instituições e equipamentos avançaram e pautaram a política cultural brasileira por muitas décadas”, reconhece Barbalho. 

De olho na diversidade 

É também pelas ausências que a Semana de Arte Moderna de 22 e suas implicações políticas nos anos seguintes podem ser analisadas. Ainda que defendessem um mergulho nas tradições históricas, populares e regionais do país, os intelectuais modernistas faziam isso de um lugar de privilégio - a maioria era de homens brancos da elite paulista. E este distanciamento já era questionável no passado, sendo ainda mais nos dias de hoje.

“O próprio Mário de Andrade criticou o movimento do qual ele fez parte, 15, 20 anos depois, afirmando que a geração dele foi aristocrática e não capturou bem a realidade brasileira naquele momento”, lembra o secretário da cultura do Estado do Ceará, Fabiano Piúba.

Em diálogo com pesquisadores que questionam aqueles dias de fevereiro de 1922 como o grande marco modernista no País, Piúba entende o evento como uma Semana de Arte Moderna de São Paulo, com alguns convidados externos, mas cuja dinâmica não conseguiu traduzir a diversidade nacional.

Artistas da Scap
Legenda: O grupo de cearenses que integrou a Scap teve papel importante na afirmação da arte moderna no Ceará
Foto: Acervo Hélio Rola

No Ceará, por exemplo, os ecos deste período ficam mais evidentes somente na década de 1940, com a criação do Clube de Literatura e Arte Modernas (Clam ou Clã) e da Sociedade Cearense de Artes Plásticas (Scap), iniciativas que reuniram nomes como Antônio Bandeira, Mário Barata, Antônio Girão, Artur Benevides, Zenon Barreto, Estrigas, entre outros.

“O grande barato daquela Semana foi o que ela reverberou e continua a reverberar. Mais do que ela de fato fez emergir, são as suas ausências. E tem muito a ver com a questão da diversidade étnica, territorial, mesmo artística e cultural do Brasil”.
Fabiano Piúba
Secretário da Cultura do Estado do Ceará

Política cultural em 2022

Ao lançar um olhar sobre os desafios atuais da política cultural brasileira, o pesquisador Alexandre Barbalho levanta como questão fundamental o enfrentamento a essas relações de poder, a esses lugares desiguais no processo de criação.

“A grande contribuição e o grande dilema da política cultural é como incorporar, como lidar, como favorecer no sentido de pensar políticas voltadas para o fomento, para o fortalecimento dessas expressões culturais  que a gente pode chamar de minoritárias, não porque elas sejam quantitativamente minoritárias, mas porque estão hoje submetidas a uma cultura hegemônica, que é uma cultura de base europeia, eurocêntrica. Estou falando das culturas afro brasileiras, indígenas, resultado dessas misturas em todo País”, salienta.
Alexandre Barbalho
Professor da UECE e pesquisador de Políticas Culturais

A este respeito, o secretário da Cultura estadual, Fabiano Piúba, reforça que “hoje é impossível pensar política pública sem essa premissa da diversidade em sua plenitude, porque também isso é um posicionamento político”.

“Se você pega dentro do contexto federal, essa ausência se agravou… É uma ‘guerra cultural’ que parte desse pensamento de que a diversidade não é objeto de uma política pública e isso é muito ruim. Então, coube aos estados e municípios, destaque para o Nordeste, afirmar o contrário”, entende.

Por aqui, ele apresenta essa resposta com o lançamento de editais que antes não existiam, voltados à cultura indígena, afrobrasileira, lgbtqia+ e também acessibilidade, mas reconhece que muito ainda precisa ser feito.

“Uma semana moderna de 2022 seria muito mais nesse sentido de redemocratização, regeneração do Brasil a partir da diversidade cultural brasileira”, projeta Piúba sobre como realmente deve ser encarada esta efeméride.


 

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