Premiado livro “A visão das plantas”, de Djaimilia, aprofunda reflexão sobre as fronteiras da moral
Romance da escritora portuguesa Djaimilia Pereira de Almeida é publicado no Brasil pela Todavia
É permeado de sombras o mais recente romance da escritora portuguesa Djaimilia Pereira de Almeida, “A visão das plantas”. Desde a cena inicial – ambientada em uma casa onde “o pó, tornado um ser, animava o espaço” –, a atmosfera de constante penumbra percorre horizontes internos e externos, trazendo à tona uma profunda meditação sobre as fronteiras da moral. As ponderações acontecem a partir, e sobretudo, do protagonista da trama, capitão Celestino.
Homem de passado sombrio, ligado a um dos capítulos mais tristes e hediondos da História da humanidade – era comandante de um navio negreiro –, já velho ele retorna ao lar da infância em Portugal. Ali, começa a desenvolver uma distinta relação com o jardim. Empenhado em cuidar da ramagem, passa a amá-la. E é esse contato entre o Mal e a amoralidade dos vegetais que vai guiar a audiência pelas linhas de Djaimilia.
A romancista, segundo lugar no Oceanos de Literatura no ano passado com a referida obra, parte de uma frase do livro “Os Pescadores”, do português Raul Brandão (1867-1930), para tecer a narrativa deste seu novo título. “tendo começado a vida como pirata, acabou como um santo, cultivando com esmero um quintal de que ainda hoje me não lembro sem inveja”, expressa o trecho.
Munida de refinado lirismo e um enredo que se beneficia de constantes ambiguidades, a breve obra, publicada pela editora Todavia, lança mão de um acurado olhar sobre a condição humana. Desbrava os territórios íntimos de uma enigmática figura de poucas palavras, temido pela vizinhança, visitado somente por um padre.
Alguém que “talvez tivesse um coração escondido atrás das tatuagens”.
Universo de contrários
Dada a maior protuberância de verde nos domicílios em meio à pandemia – presença cada vez mais recorrente nas residências Brasil afora – é quase inevitável a visita aos silenciosos cultivos caseiros após a leitura do livro. Experiência própria.
Terminado o percurso, fôlego suspenso, fui regar os tímidos arbustos do jardim. Em tudo morava uma inquietude e um fascínio, das frases que ribombavam no íntimo; da atmosfera que, contida, sacolejava tudo.
Isso porque, sem sobrar nem minar palavras, em um engenhoso trabalho de lapidação verbal, a história mergulha no interior do interior, num universo de contrários que se encontram e germinam melancolias.
Envereda também por verdades tantas vezes inconfessáveis, junto a uma vontade irrepreensível de cavar o profundo das coisas.
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A construção dessa topografia de sentimentos, composta de uma aura pesada e simultaneamente magnética, talvez seja o maior trunfo de Djaimilia. O singrar narrativo que empreende entrega ao público frases que desestabilizam a todo momento.
A certa altura, ela questiona: “Seria aquele o diabo? Era forte e espadaúdo, mas tinha tantas flores e tanta paciência para elas”.
Em outro instante, mais à frente, diz: “Não era mais ele que tomava conta das flores, mas elas que tomavam conta dele. Tinha medo delas, medo de que o agarrassem pelas pernas e o estrangulassem”. Logo, é esse processo de o jardineiro deixar de ser o jardim, mas o próprio jardim se tornar o jardineiro do jardineiro, como o próprio livro destaca, que acaba trazendo à superfície uma variedade de reflexões acerca desse homem, dessa conjuntura.
A força do entorno
Sendo trama de um personagem só – este amalgamado pelo olhar de si, dos outros e do próprio percurso da existência – “A visão das plantas” passeia ainda pela força das estruturas ao redor, no quanto elas incidem em nós. Celestino, tão sozinho, de repente se apercebe em meio a constituições poderosas, que gritam em seus silêncios.
O lar, recanto dos primeiros anos de vida, mantenedor das antigas quimeras e vontades, ao mesmo tempo que ambiente último do existir; e as plantas, todos os dias diferentes, sem jamais se entediar, necessitando apenas dos cuidados da própria natureza ou de qualquer outro ser vivente para que as regue, mantendo a seiva ativa.
Elas não disputam a atenção, não clamam por olhares, não julgam. Apenas estão. E o fato de assim procederem, natural comportamento, desabrocha mais perguntas que respostas. São feito as sombras, aqui cumprindo papel inverso: no lugar de eclipsar verdades, aclaram as dúvidas. Percorrem um desfiladeiro de avessos. Até o fim.
A visão das plantas
Djaimilia Pereira de Almeida
Todavia
2021, 88 páginas
R$ 49,90/ R$ 29,90 (e-book)