Confira lançamentos editoriais para pensar a negritude sob diferentes perspectivas

Novos títulos no mercado editorial contemplando a temática, por meio da ficção e da não-ficção

Escrito por Diego Barbosa , diego.barbosa@svm.com.br
Legenda: Livro da escritora e ativista social Françoise Ega, com cartas direcionadas a Carolina Maria de Jesus, é publicado pela Todavia
Foto: Divulgação

A questão negra pauta alguns dos recentes lançamentos do mercado editorial brasileiro, adentrando em conceitos e reflexões cujo alcance ora revisita trajetórias, ora nos apresenta a outras. O recorte é múltiplo, em sintonia com a pluralidade que o assunto possui. 

Seja por meio da ficção ou não, voltados para o público infantil ou adulto, os títulos agregam novos conhecimentos sobre uma temática repleta de trabalhos que rompem com o lugar comum, imergindo em ancestralidades e perspectivas merecedoras de amplos olhares.

É o caso de “Cartas a uma negra”, da escritora e ativista social Françoise Ega (1920-1976). Publicado pela editora Todavia, com tradução de Vinícius Carneiro e Mathilde Moaty, o livro reúne uma série de textos desenvolvidos pela autora direcionados a um dos maiores nomes da literatura brasileira, Carolina Maria de Jesus (1914-1977).

Françoise nasceu nas Antilhas, mas trabalhava em casas de família em Marselha, na França. Um dia, ao ler a revista Paris Match – um pequeno prazer em meio ao duro cotidiano – ela foi atravessada por algumas linhas a respeito da obra “Quarto de despejo: Diário de uma favelada”, escrita por Carolina. 

Identificada com aquelas palavras, passou, então, a escrever “cartas” que jamais foram entregues à preterida literata. Nelas, contudo, é possível conhecer a opressiva realidade de trabalho e exploração em território francês naquela época. 

O livro, assim, torna-se um importante registro literário ao tecer detalhes sobre injustiças nas relações sociais, as inúmeras dificuldades na rotina da escritora e as situações humilhantes pelas quais mulheres feito ela, de cor negra, passaram e continuam a vivenciar. 

Apesar de todo o intrincado panorama, Ega tornou-se uma das mais relevantes figuras da sociedade civil francesa. No posfácio da edição, Vinícius Carneiro e Maria-Clara Machado destacam o caráter multifacetado de seus relatos.

“‘Cartas a uma negra’ entrelaça os gêneros autobiográfico e epistolar e o subgênero prosa de autoria feminina, adicionando a isso pelo menos mais uma tradição literária: a do romance de autoria negra”, destacam. 

Os estudiosos também sublinham que as narrativas de Ega se inscrevem, sobretudo, numa outra linhagem literária, que vem se fortalecendo nas últimas décadas, tendo surgido como resposta à pergunta da pensadora Gayatri Spivak: pode o subalterno falar?

Contundentes observações

Da ambientação francesa para o plano de fundo da sociedade estadunidense. Em “Cidadã - Uma lírica americana”, a poeta, ensaísta e dramaturga jamaicana Claudia Rankine traça pungentes percursos frente às relações raciais nos Estados Unidos. 

A investigação da escritora intercruza poesia, ensaio e artes visuais nas páginas da premiada obra – lançada originalmente em 2014 e publicada, no Brasil, pelas Edições Jabuticaba, com tradução de Stephanie Borges.

Legenda: A poeta, ensaísta e dramaturga Claudia Rankine: perspicazes observações para falar da sociedade americana
Foto: Divulgação

Uma das mais contundentes contribuições de Rankine é considerar a dificuldade de existir em ininterrupto contraste com o contexto demasiadamente branco da supremacia racial. Assim, gradações variadas de violência contra pessoas negras são exploradas no exemplar – não sem, entretanto, indagar sobre a própria imaginação branca que as produz

“Você lida com coisas que não quer o tempo todo. No instante em que você ouve ou vê algum momento corriqueiro, todos os alvos na mira, todos os significados por trás dos instantes batendo em retirada, a se perderem de vista, tudo entra em foco. Espera aí, você ouviu, você disse, você viu, você fez isso? Então as vozes na sua cabeça dizem silenciosamente para você parar de se torturar porque não deveria ser uma ambição apenas conviver”, escreve a autora.

Após o lançamento nos Estados Unidos, “Cidadã: Uma lírica americana” levou mais de 10 prêmios de crítica e foi eleito o melhor livro do ano por uma série de periódicos. Rankine ganhou o Jackson Poetry Prize em 2014 e recebeu, em 2016, um MacArthur Fellowship.

Legado de confronto

Outro incontornável pensador com livro recentemente lançado em solo nacional é Frantz Fanon (1925-1961). “Por uma revolução africana - Textos políticos”, publicado pela Zahar com tradução de Carlos Alberto Medeiros, compila artigos, ensaios e cartas escritos entre 1951 e 1961 pelo psicanalista e filósofo.

Referenciado por Angela Davis como o mais poderoso teórico do racismo e do colonialismo do século XX, Fanon construiu um grandioso legado por meio de teses políticas, filosóficas e psicanalíticas. Nelas, o intelectual confronta e esquadrinha a dominação imperialista em busca de autonomia, justiça e libertação para os povos subjugados, tomando como norte sobretudo a experiência em meio à Guerra da Argélia.

Legenda: O psicanalista e filósofo Frantz Fanon é referenciado por Angela Davis como o mais poderoso teórico do racismo e do colonialismo do século XX
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No prefácio do livro – escrito por Deivison Faustino, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e especialista na obra de Frantz – é possível conferir que “Por uma revolução africana” possui temática cambiante, iniciando com a discussão das relações étnico-raciais entre negros e brancos, e finalizando com a projeção dos movimentos de desconolização na África como lutas de libertação.

Dividido em cinco partes, o exemplar é uma leitura imprescindível não apenas pelos fatos e conceitos que apresenta – com uma série de respostas historicamente localizadas a muitas questões do hoje – mas, principalmente, pelos questionamentos que lança. 

Um deles, Deivison Faustino traz à tona:

“Quais as tarefas e posturas a serem desempenhadas pelos ‘condenados da nossa terra’, mas também pelo conjunto de forças progressistas, diante do atual genocídio e da intensificação da precarização da vida?”.

Valor à memória

“Enciclopédia Negra” percorre essa mesma trilha de inquietações ao elencar 416 verbetes biográficos que encenam um reencontro do Brasil com a memória silenciada de milhões de pessoas negras, resgatando seu protagonismo.

Escrito pelos historiadores Flávio dos Santos Gomes, Jaime Lauriano e Lilia Moritz Schwarcz, o livro, publicado pela Companhia das Letras, é descrito como uma obra que contribui para conformar um seguro repositório de experiências individuais e coletivas às quais, como pessoas e como sociedade, podemos recorrer em busca de inspiração e orientação.

416
verbetes biográficos compõem o livro "Enciclopédia Negra

São profissionais liberais, líderes religiosos, mães que lutaram pela alforria da família, curandeiros, ativistas e revolucionários, médicos, um mosaico de personalidades outrora anônimas que reinventaram outras Áfricas no Brasil. Indivíduos cujas feições foram apagadas pela história.

A fim de conferir ainda maior fôlego ao título, foram desenvolvidos também retratos, inspirados pelos verbetes da presente enciclopédia. As peças são realizadas por 36 artistas negras e negros e compiladas em um caderno de imagens.

Ao término da leitura, que contorna nomes do século XVI até hoje, é inevitável a provocação: quais são os nossos esforços para tirar do limbo trajetórias tão singulares?

Lúdico debate

Por fim, um livro dedicado às crianças, embora válido para públicos de todas as idades. “Corvo-correio”, saído pela Mazza Edições, conta a história de José, um corvo que sonhava voar ao lado dos imponentes pombos brancos.

Na busca por esse desejo, ele confronta a Coruja Mafalda, chefe do serviço postal, e imerge em questões pertinentes a si próprio, mudando suas perspectivas.

Escrita pela paulista Isabel Cintra e ilustrado por Zeka Cintra, irmão da autora, a obra foi lançada também em solo angolano, repercutindo a engenhosidade da trama, cujo principal mérito é trazer debates sobre exclusão e preconceito de forma lúdica e criativa.

Legenda: Isabel já afirmou que “Corvo-correio” é uma forma de falar de racismo sem mencioná-lo
Foto: Divulgaçãp

Não sem motivo, Isabel já afirmou que “Corvo-correio” é uma forma de falar de racismo sem mencioná-lo, pluralizando as discussões a respeito de tolerância, igualdade e representatividade entre as crianças e as famílias.

Sutileza e leveza, portanto, são palavras-chave para descrever este trabalho que, como tantos outros, vale-se de apurada pesquisa e imaginação como modo de convocar outras abordagens sobre assuntos tão complexos quanto indispensáveis.

 

Cartas a uma negra
François Ega
Tradução de Vinícius Carneiro e Mathilde Moaty

Todavia
2021, 252 páginas
R$ 59,90

Cidadã - Uma lírica americana
Claudia Rankine
Tradução: Stephanie Borges

Edições Jabuticaba
2021, 184 páginas
R$ 50

Por uma revolução africana - Textos políticos
Frantz Fanon
Tradução: Carlos Alberto Medeiros

Zahar
2021, 276 páginas
R$ 64, 90

Enciclopédia Negra
Flávio dos Santos Gomes, Jaime Lauriano e Lilia Moritz Schwarcz

Companhia das Letras
2021, 720 páginas
R$ 89, 90

Corvo-correio
Isabel Cintra
Ilustrações: Zeka Cintra

Mazza Edições
2020, 32 páginas
R$ 28, 50

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