Atriz cearense Nádia Fabrici questiona os limites da visão em livro de estreia
Lançamento virtual de “Prelúdio para os olhos” acontece neste sábado (3), por meio do perfil da autora e da Livraria Lamarca, no Instagram
Que olhos se abrem quando aqueles na superfície se encerram? Diversos percursos investigativos já foram trilhados pela arte a fim de sanar a incógnita. Na pintura, por exemplo, é famosa a cegueira gradual pela qual passou Claude Monet (1840-1926), mais célebre nome do Impressionismo, acometido de severa catarata.
Nas artes cênicas, por sua vez, o Teatro Cego é um formato no qual os espetáculos acontecem em completa escuridão. Desta feita, a audiência é convidada a abdicar da visão e acompanhar tudo por meio dos outros sentidos. Assim também é na música, na escultura, na performance.
Tratando-se da literatura, “Ensaio sobre a cegueira”, de José Saramago (1922-2010), geralmente irrompe primeiro na memória quando o assunto aparece. E trajetórias de escritores como Jorge Luís Borges (1899-1986), João Cabral de Melo Neto (1920-1999) e James Joyce (1881-1941) – cegos ou com a visão quase totalmente comprometida – aquecem a frente de debates sobre a temática da criação artística dentro dessas condições.
No Ceará, para citar apenas dois casos, o poeta popular Cego Aderaldo (1878-1967) descobriu o dom da rima pouco depois de perder a visão em um acidente; e Tércia Montenegro tratou da questão no premiado “Turismo para cegos” (Companhia das Letras, 2015). Agora, neste 2021, é Nádia Fabrici que se lança ao tema com “Prelúdio para os olhos”.
Publicado pela Chiado Books, o romance de estreia da atriz e bailarina cearense será lançado neste sábado (3), às 16h, por meio de live transmitida pelo perfil da própria autora (nadiafabrici.atriz) e da Livraria Lamarca (livraria.lamarca), um dos vários pontos de venda da obra. Durante, haverá o sorteio de um exemplar. A mediação fica por conta da escritora, atriz e professora Sara Síntique, também revisora e leitora crítica da obra.
No centro da trama, a história de Marie De Lavor e Bernard Chevalier. Ela, a milionária estudante de um colégio interno de Nice, na Riviera Francesa; ele, um professor que acaba de chegar na cidade para dar aulas na instituição. No correr das páginas, ambos desenvolverão uma conexão que colocará em destaque temas como acessibilidade, ética profissional, os interditos do amor, as relações de poder nos ambientes escolares, entre outros.
Desejo de mar
Ao Verso, Nádia Fabrici conta que o enredo nasceu há nove anos, quando cursava Teatro na Universidade Federal do Ceará (UFC). Em uma das disciplinas, dedicadas ao estudo do Cinema, ela assistiu a um curta-metragem que a catapultou para as águas do mar da França.
“O filme era de um dos alunos do curso e tratava da amizade entre um soldado morador de Nice e uma senhorinha no fim da vida, aqui de Fortaleza. Eles só se correspondiam por cartas, e o curta, de caráter experimental, mostrava apenas o mar das duas cidades”, explica.
“Assim, acidentalmente, vi o mar de Nice. E, naquele instante, acho que tive um encantamento, um vislumbre, um arroubo por aquele mar”, recorda. O arrebatamento a fez jurar a si mesma que escreveria sobre a paisagem – o modo como as ondas quebravam, a disposição das pedras, o singular fluxo da corrente.
Apesar de não possuir experiência anterior na seara literária, quando se deu conta Nádia já estava enrodilhada na tessitura do romance que chega agora ao público. Nele, as linhas são narradas em primeira pessoa, sob a perspectiva de Bernard Chevalier. Sensível e solitário, o professor de Literatura tem como uma das principais características o constante devanear. Não à toa, a cena que dá início ao livro descreve um sonho.
Por ser instruído nas letras, o personagem também faz da própria narração um bem-vindo desfile de referências, de Arthur Rimbaud (1854-1891) a Chopin (1910-1849), passando pelos mitos gregos e inúmeros outros artistas da palavra.
Além de conferir novo frescor a nomes canônicos, Nádia Fabrici percebe que as citações são também produto de suas imersões pelo teatro e a dança, e que elas poderão chegar, de forma atraente, aos jovens leitores, público-alvo do trabalho.
“Ao mesmo tempo, existe toda uma brasilidade com o personagem Francisco Garcia. Ele vai falar sobre Tom Jobim, Patativa do Assaré, então eu queria trazer essa amálgama de referências”, situa a autora, mencionando o personagem brasileiro vizinho de Bernard.
De igual forma, Nádia sublinha que algumas de suas principais inspirações para desenvolver a trama são Samuel Beckett (1906-1989), Lygia Fagundes Telles, Fernando Pessoa (1888-1935), Henry Miller (1891-1981) e a já mencionada Tércia Montenegro.
Múltiplos detalhes
A partir do contexto de Marie De Lavor, são destacados, sobretudo, os apurados sentimentos que integram o espírito da jovem. Forte, ciente das próprias potencialidades e desejos, a estudante seduz a audiência pela coragem com a qual encara a vida e se permite viver.
Marie, por exemplo, não se enxerga inferior por ser cega. Por meio do sistema de escrita braille, ela recita poesias, acompanha a turma nas lições, se diverte, faz amizades, se apaixona. Não sem motivo, quando questionada sobre que tipo de reflexões o livro deve suscitar, Nádia frisa a capacidade que a narrativa tem de invocar perguntas.
“O que fica é: o que vem antes do impulso dos olhos? Será que a cegueira é tão ruim assim? Será que a gente não pode, por meio da cegueira, encontrar outros modos de enxergar? A visão é tão superlativizada. A gente toma esse sentido quase como inaudito, majoritário, gigantesco. É tanto que, quando te tiram a visão, você perde o eixo, o mundo. É como se fosse reduzido ao tamanho de uma formiga e tudo pode ser perigoso ao seu redor”, compara.
“Marie, de uma certa forma, impulsiona o Bernard, e eu acho que é isso que o faz se apaixonar por ela. É como ela vê o mundo e escolhe habitá-lo que o fascina. Porque, para além de tudo, o livro é uma história de amor entre um professor e uma aluna – mas, antes disso, entre um homem e uma mulher. É um assunto bastante delicado porque a gente sabe que ele está na condição de influenciador e, ela, de influenciada. Porém, ao mesmo tempo, como tudo é narrado na versão dele, vamos acompanhando esse sentimento nascer. Sabemos o que está por trás das emoções do Bernard, estamos juntos nessa construção”.
Assim, a escritora percebe o título como um instrumento de compreensão de que nem toda relação nesses moldes pode ser pautada pelo assédio ou a amoralidade. “Não estou defendendo ou impulsionando isso, longe de mim. Mas o livro aborda esse assunto de uma maneira muito ingênua e sutil. Eu quis fazer uma inversão dos arquétipos, trazendo para o Bernard aqueles que normalmente são atribuídos a personagens femininas, como fragilidade, romantismo e ingenuidade; e, para Marie, a determinação, a sagacidade, a lucidez”, completa.
Acessibilidade
Ambientado na França a partir dos detalhes que Nádia colheu com os moradores de lá, sem sair de Fortaleza – a atriz e bailarina viajaria para o lugar apenas depois de concluída a história, impressionando-se de como as descrições e cenários se complementavam – “Prelúdio para os olhos” está disponível de forma a contemplar os mais diferentes públicos, incluindo, claro, as pessoas que não enxergam.
O livro está disponível em várias plataformas digitais, a exemplo de e-book, uma versão em podcast – disponibilizada em canal no Youtube – e audiobook. Este, vale mencionar, é um projeto contemplado pela Lei Aldir Blanc, por meio da Secretaria Municipal da Cultura de Fortaleza (Secultfor).
A narrativa de Nádia Fabrici possui 33 capítulos, distribuídos em 374 páginas. Em áudio, elas são delineadas pelo ator Diego Landin.
“É bom frisar que acessibilizar – essa palavra é muito delicada – não é um favor. Na verdade, ao assim proceder, não estou fazendo mais do que a minha obrigação”, considera a literata.
“Acredito que todos nós – artistas, escritores, enfim, pessoas que criam obras nesse formato – temos que tentar cada vez mais acessibilizar. Sei como é difícil porque não temos apoio, muitas vezes são trabalhos independentes. Mas, ao mesmo tempo, insisto nesse papel de tentar fazer algo para que todos possam fruir. Todos temos direito à arte e isso é inerente a qualquer coisa. A realidade não é essa, infelizmente, a gente sabe; mas deveria ser”.
Neste momento vivendo uma “felicidade inimaginável" e um “vazio gigantesco”, por encerrar um longo período de gestação e acompanhamento de cada situação e personagem, Nádia comenta o interesse pela adaptação do romance em audiovisual daqui a quatro anos. “Enquanto não acontece, estou curtindo os comentários dos amigos, aprendendo com alguns pontos de vista e vivendo um detox desse livro”, ri.
“É o projeto da minha vida. Eu sempre fui a Nádia que participou do projeto dos outros, e esse livro tem muito de mim. Cada personagem é destrinchado de uma forma, mas todos eles são um membro meu, com pedaços muito densos e leves de mim”.
Serviço
Lançamento do livro “Prelúdio para os olhos”, de Nádia Fabrici
Neste sábado (3), às 16h, por meio do perfil da da autora (@nadiafabrici.atriz) e da Livraria Lamarca (@livraria.lamarca), no Instagram. Os pontos de venda e apreciação da obra estão disponíveis neste link.
Prelúdio para os olhos
Nádia Fabrici
Chiado Books
2021, 374 páginas
R$ 50/ R$ 20 (e-book)/ audiobook gratuito